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terça-feira, 12 de março de 2024

O CANIVETE E EU

 



Os homens, incidentemente, se dividem também em duas categorias: os que são e os que não são de canivete.

(Fernando Sabino)

 

No final dos anos 80 do século XX, comprei um Victorinox. Perdi o canivete algum tempo depois. O meu nome estava gravado no dorso vermelho. Em diversas oportunidades quase comprei outro. Em algumas lojas de importados (Florianópolis e Joinville) pedi para ver aqueles que estavam expostos nas vitrines. Durante alguns minutos manipulei réplicas do desaparecido. Perguntei pelo preço. Não era caro, nem barato – cabia no meu orçamento. No entanto, lutando contra todas as forças do universo, resisti. Preferi continuar sem canivete. 

Aconteceu assim. Fui a São Paulo no início do século. O canivete estava unido ao molho de chaves. No aeroporto, em Florianópolis, nenhum problema. Na volta, a Polícia Federal imaginou a prática de alguma ação terrorista. Os protocolos de segurança depois de 11 de setembro de 2001 ficaram mais paranoicos. O voo estava quase saindo, não tive tempo para encontrar alguma alternativa. Vão-se os anéis, ficam os dedos.

Para ser bem sincero, o canivete não era muito utilizado. Nunca o usei para descascar laranjas. Como não sou da turma do cigarro de palha, também não piquei fumo-de-corda. Aliás, nem fumante sou. Apontar lápis é outra atividade que não executei. Escrevo a caneta ou no computador. Então, para que precisava do canivete?

Para lembrar. Era a recordação física de um período que considero importante na minha vida. Sim, algumas marcas ficam gravadas na pele da gente. Ver o aço da lâmina brilhando tinha como significado principal impedir que o passado fosse tratado como algo descartável ou substituível. Com o poder simbólico que atribuímos às relíquias, sentir o peso do objeto nas mãos ou no bolso equivalia a um ritual de celebração da memória.   

A ausência, mais do que assumir a forma de luto, amplia a frustração. É a potência da descontinuidade, o império da interrupção. De repente, sem que fosse permitido escolher em manter ou apagar o registro de algo que se destacou, o canivete servia de ponte entre o presente e o passado que deixou de existir.

Provavelmente, em algum momento impreciso, será como se o canivete nunca tivesse existido. A névoa do esquecimento encobrirá o percurso. E todas as coisas que a ele estão relacionadas também desaparecerão na bruma. 

Antes cair das nuvens, que do terceiro andar, observou o cínico Machado de Assis, fingindo não compreender a intensidade de alguns sentimentos. Renato Russo foi mais cruel: (...) a gente chegou um dia a acreditar / Que tudo era pra sempre / Sem saber / Que o pra sempre / Sempre acaba!


segunda-feira, 4 de março de 2024

FIM DE TARDE EM UM DOMINGO QUALQUER

 


Exercendo o hábito de postergar tudo o que está ao seu alcance, ele deixou a visita ao supermercado para o final da tarde. No momento em que – finalmente – decidir ir, estava garoando. Mas, como se fosse um farol a iluminar o desatino, havia uma réstia de sol no horizonte. 

Embora a sua famosa expertise meteorológica não mereça confiança, calculou que dava para ir e voltar antes da chuva se tornar mais forte. Por isso, armado de coragem e determinação, deixou o guarda-chuva em casa. Isso não faria diferença ao final das contas – mas, naquele momento, não era possível prever o futuro. E ele precisava de pão, iogurte e aquelas bobagens que, se não modificam a vida, acrescentam um pouco de açúcar nas agruras do existir.

Foi. E não se incomodou com os esparsos pingos d’água que o céu derramava sobre o corpo. Fez as compras, acrescentando algumas coisas que não estavam na lista (e que lembrou estar em falta), pagou e, carregando as sacolas, voltou à avenida. Depois de ter caminhado umas duas quadras, foi atingido pelo aguaceiro. Em tempos de calor vulcânico, uma chuvinha de verão é sempre bem-vinda – disse para si mesmo.

Em uma avenida de poucas marquises, esse tipo de atitude não pode ser considerada uma prova de inteligência. A tempestade se intensificou – quase um dilúvio. Como era impossível ver um palmo diante do nariz, guardou os óculos em um dos bolsos da bermuda. Os chinelos e a camiseta estavam ensopados.  

Poderia ter se abrigado no ponto de ônibus ou no posto de gasolina. Poderia. Molhado da cabeça aos pés, preferiu continuar a jornada. Faltava pouco. Muito pouco. Por isso, abstraiu a umidade e se concentrou nos compromissos do dia seguinte. Repassou o pagamento do aluguel, a compra do bilhete de loteria, a visita ao barbeiro. Coisas miúdas da segunda-feira. 

Esse momento de afastamento da realidade não serviu como escudo contra a tempestade, que tinha aumentado. O vento também se fez presente – e certamente teria destruído o guarda-chuva que ele deixou em casa.     

Fazer o quê? Mais uns 200 metros e as compras seriam salvas. Raios riscavam o horizonte, trovões assustavam quem estava na rua. A nostalgia o pegou pelo braço e o fez voltar no tempo. Lembrou dos seus barquinhos de papel protagonizando aventuras por oceanos distantes. Naqueles momentos, pouco se importava com a briga – quando chegava em casa molhado como um pinto.

Junto com essas recordações de um passado que estava perdido, vieram outras, os irmãos correndo pela casa, as manhãs e as tardes na escola, as vozes da mãe e da avó repetindo ditados populares (não adianta chorar pelo leite derramado, cada um sabe onde lhe aperta o sapato). All those moments will be lost in time, like tears in rain...

Na porta do prédio, respirou demoradamente, o ar entrando nos pulmões como se fosse a brisa da primavera. Enfrentou as escadas, abriu a porta do apartamento, guardou as compras, tomou banho, e, como compete aos que cultivam desastres como se fossem flores, sentiu o quanto é bom estar vivo.    


sexta-feira, 1 de março de 2024

UM CRIME BÁRBARO

 



A morte violenta de Soeli Volcato, 13 anos, em uma localidade no interior do oeste catarinense, no dia vinte e um de agosto de mil novecentos e oitenta e um, é o ponto de partida do romance Um crime bárbaro (Autêntica Contemporânea, 2022).

Ao contar (de uma maneira muito particular) essa história, a narradora (em primeira pessoa) percebe que muitas lembranças não podem ser soterradas (alguns gatilhos remetem ao passado). Também descobre que o tempo não gosta de fornecer respostas às perguntas incômodas.

Ciente do quanto é difícil preencher o hiato que separa a tragédia e o momento da escrita, a narradora se desloca várias vezes do Rio de Janeiro até o local do homicídio. Quer encontrar algum tipo de explicação. Quer descobrir o que motivou a tragédia. Mesmo assim, depois de quarenta anos, é improvável que surja algo próximo da verdade (se é que isso algum dia foi possível).

No entanto, nesse tipo de investigação, urge ser persistente. Então, ela conversa com algumas pessoas (correndo o risco de que a memória distante distorça os fatos), estabelece a cronologia dos acontecimentos, imagina o que algumas pessoas fizeram naquele dia e, por fim, relaciona os prováveis responsáveis pelo crime e os motivos.

Infelizmente, nada se mostra sólido. Na estrutura do texto, a ficção possui maior relevância do que a realidade – talvez seja por isso que o texto está carregado de suposições. Nem mesmo a última parte da narrativa é capaz de fornecer uma explicação razoável. O homem entrevistado está doente (um câncer terminal) e morre antes de confirmar ou desmentir a acusação de que foi um dos responsáveis pelo assassinato.

Uma das qualidades de Um crime bárbaro está em mostrar um pouco de sociologia da literatura. Isto é, há descrições da mentalidade predominante nas pessoas que moram (moraram) nas áreas interioranas de Santa Catarina. Principalmente, a xenofobia (repulsa aos que não pertencem ao grupo estratificado) e a glorificação do trabalho como recompensa por uma vida sem perspectiva. Então, nos momentos de lazer (churrascos, festa de igreja ou da escola), surgem as desavenças entre vizinhos e as bebedeiras – compensação pelas horas de serviço braçal nas plantações, na lida com os animais (vacas, porcos, cavalos). Nessas ocasiões, as palavras expressam o que, no dia a dia, está interditado. Se as ameaças vão se concretizar, ninguém garante – mas, o sossego deixa de existir e o medo se torna constante.

Nesse mundo, as dificuldades da vida social se multiplicam. Algumas moradias são precárias, a evasão escolar não incomoda (sequer é percebida), faltam hospitais, os bens de consumo não estão acessíveis, a repressão policial conta com o apoio popular. O recorte da vida rural (e que não está restrito aos anos 80) revela uma estrutura que poucos desejam modificar – inclusive porque pode alterar os mecanismos de poder (principalmente na base eleitoral conservadora).

O romance de Ieda Magri, mais do que uma tentativa de esclarecer um episódio que provavelmente estava fadado a permanecer nas sombras da história, propõe um contraste entre a civilização e a barbárie. O final aberto, onde a incerteza se apresenta, revela que o horror está em vantagem.   


terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

SOBRE A POESIA

 


A poesia não vale o papel em que é impressa. Incontáveis vezes esse tipo de argumento se repete. E parece estar absolutamente correto – mas por motivo oposto ao do declarante. A poesia não tem preço. Não é mercadoria.

Sequer há utilidade para a poesia. Usualmente trata-se de algo que atrapalha os dias de praia e sol, que incomoda aos que gostam de astronomia e astrologia, que tem a aparência dos peixes abissais ou dos animais extintos.

Um verso expande a potência do verbo, despreza a verba, reverbera o vazio e institui o caos. O pensamento se desdobra em novas presenças, ausências, referências e reticências. A árvore que recusa o asfaltamento do bom gosto.

Uma estrofe não compactua com o silencio e institui as frases com a violência dos vulcões que entram em erupção na primavera – exatamente quando todos julgam estar a salvo. A poesia incendeia a planície – ao som da onça com fome.

A linguagem como resistência. Empilhar sentimentos e inaugurar catedrais de vento. A iluminação obliqua, a sombra inesperada, a sobra. A vida dividida entre projetos falidos e noites turbulentas. A prece dos que não acreditam em deus.

A poesia respira a imensidão da Antártida no equinócio. Detesta compactuar com as certezas. Acrescenta novas dúvidas. Sabe que o nascer da manhã confirma a desventura, nega a usura, abomina a clausura.

A poesia não escolhe caminho, nem ordem, nem ideias, nem se detém diante do iníquo. A expansão é o seu destino, desatino de quem escolhe acolher em abraços os que estão satisfeitos com a imensa coleção de equívocos.  

A poesia não faz prosa, não carrega ramalhetes para o amor, não suporta paredes ou comporta escafandros. O poema gosta da palavra sim, mas prefere dizer não. E isso afasta a discussão, propõe a digressão. A poesia é a poesia e em si se basta.  


sábado, 24 de fevereiro de 2024

JORNALISMO: SOMATÓRIO DE DERROTAS

 


Durante muitos anos estive jornalista. Não estou mais. E isso é um alívio. Acreditem. Minha graduação foi no curso de letras, e, mais tarde, especialização em literatura. Ou seja, minha bagagem intelectual se situa em outros referenciais, muitas vezes distantes do profissional “raiz”. Isso é bom e é ruim. Bom porque me colocou em vantagem quando o material a ser trabalhado se referia ao jornalismo cultural. Ruim porque me obrigou a escrever sobre assuntos outros que não são os do meu agrado ou domínio. Tudo bem, uma das regras de ouro da profissão afirma que o jornalista é uma pessoa que sabe de tudo, mas não entende de nada.

Comecei escrevendo crônicas, resenhas de livros e artigos de opinião. Foi divertido – enquanto durou. Isso significa um período de uns 20 anos. Exerci a atividade, basicamente, em três veículos de comunicação: A Notícia (Joinville, SC), O Momento (Lages, SC) e O Escrivão da Serra (Lages, SC). Nesses três empregos o trabalho era remunerado. Esporadicamente, publiquei no Correio Lageano e no Diário Catarinense (o que me causa arrependimento até hoje). A proposição desses dois (falecidos) jornais era simples: a honra de ser publicado constitui pagamento suficiente.

Em determinado momento passei para o lado de dentro do balcão e comecei a viver o "sofrimento" na redação. Não sei se fiz boa troca. A necessidade de pagar as contas me deixou sem alternativas. É um serviço insano e que envolve mil complicações. Reescrever texto de analfabeto funcional é atividade trivial perto do olhar para o outro lado e ignorar que existem – a cada instante – interesses diversos em jogo. O jornalismo é um empreendimento tão desonesto quanto outro qualquer.

Um dos momentos mais interessantes desse percurso foram os 30 dias em que “estagiei” na redação do Anexo (suplemento cultural de A Notícia), no final do século XX. Estava morando em Meia Praia (Itapema, SC) e esperava pelo fim de uma greve na UFSC. Para garantir alguns trocados, escrevia artigos e resenhas e os enviava por fax.  Muitas vezes ocorriam problemas de transmissão – originando erros ou interpretações distantes do propósito inicial. No meio do caos, perguntaram-me se queria substituir alguém que estava saindo em férias. Aceitei. Valeu por uns três cursos universitários, mestrado e doutorado – tudo junto e misturado. Embora tenha sido um aluno indisciplinado (e isso faz parte da minha natureza), o aprendizado rende até hoje.

Tenho cópia física de algumas “matérias” que escrevi nesse período, muitas vezes página inteira, reflexo de um tempo em que o texto era valorizado e as imagens eram apenas complemento. A pasteurização da notícia, promovida por um conglomerado que comprou os mais importantes jornais de SC, não só implodiu a atividade profissional como contribuiu para o empobrecimento do leitor (de várias maneiras).

Com a popularização da Internet, os jornais físicos começaram a desaparecer. Além da competição quase que massacrante dos jornais televisivos, que abocanharam parte substancial dos anúncios, faltou perceber que o mundo estava em transformação. Embora alguns jornais estejam tentando sobreviver com versões on line, a verdade é que muitos profissionais capacitados migraram para outros formatos – onde podem negociar com os patrocinadores sem a intermediação de terceiros. Como afirmou, em outro contexto, Ryszard Kapuscinski, quando se descobriu que a informação era um negócio, a verdade deixou de ser importante.

Escrever em jornal significa “comprar briga” (com a fonte da informação, com o texto, com os editores, com o departamento comercial e – por que não? – com os leitores). Somatório de derrotas é a minha visão sobre essa travessia do mar da intranquilidade. Esclareço que isso não é blague de alguém que prefere, neste instante, ficar longe do olho do furacão.

Por fim, quando se fala em jornalismo, é necessário ter em mente duas versões da mesma tragicomédia: As pessoas não param de confundir com notícias o que leem nos jornais (A. J. Liebling) e, a mais importante, Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados (Millôr Fernandes).