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quarta-feira, 2 de março de 2011

MINHA CIDADE

Houve um tempo em que esta cidade me lembrava as maçãs cultivadas no quintal de minha infância: ácidas – para surpresa geral, minha avó conseguia transformá-las em geléias dulcíssimas!

Todas as manhãs, ao abrir as cortinas, uma luz triste, plúmbea, entra pela janela, com uma violência assustadora. É um pequeno esplendor silencioso, que parece conversar com o vento – essa insensatez que enche de ruídos os vazios construídos pela imensidão do planalto. Ao longe, o sol fraco, quase ausente, parece estar guardando o seu calor para outro lugar.

Ouço a voz dos lageanos, as sílabas espaçadas, ôôôô de ca-sa!, entrecruzados o “l” e o “r” trocam figurinhas, borso, carçado, a construção da linguagem em sua forma mais primitiva, quequiéra?, tresantonte, trupicou, minhazarminha-du-céu, faz muito tempo que deixei de me incomodar com o atropelar da gramática, é sempre um prazer arremessar palavras no mundo – como se fossem canções.

Saudades daquilo que não pode mais ser recuperado: a argila nos pés, conga em uma das mãos, pasta da escola na outra, a chuva imensa a devorar o céu, o sem-fim que ligava a casa em que morávamos e o Colégio Industrial. Naquele tempo, o Coral era muito longe, a Presidente Vargas quase conduzia até outra cidade – onde era impossível ouvir a sirene da Rádio Clube e os sinos da Catedral.

Tardes devoradas no café-com-mistura, o avião amarelo – de plástico – que foi presente da madrinha em um Natal, os livros amontoados em cima do guarda-roupa, as vacas mugindo logo ali, no campinho onde a gurizada jogava futebol.

Domingo era dia de matinê, Tamoio ou Marajoara, farvestão daqueles, daqueles que nunca mais foram os mesmos, mesmo agora, muitos anos depois, quando os vejo na televisão a cabo, apenas para lembrar que algo se rompeu, foi embora.

Meu avô tinha um Jeep – que meu pai detestava. Na cabine do Chevrolet, fumando Continental sem filtro, dizia que não gostava de dirigir “caixa de fósforo”. Nas férias, íamos para Morrinhos, lá no meio da Coxilha Rica, brincar de fazendeiros, ordenhar as vacas, cavalgar, tosquear ovelhas, ouvir histórias de família, causos de assombração, as profecias de são João Maria e a lenda da serpente do Tanque.

Houve um tempo em que esta cidade me lembrava fotografias em preto-e-branco, gatos dormindo na varanda, vizinhos que sempre trocavam entre si um dedo-de-prosa, partidas intermináveis de dominó, pedaços de doce de gila brincando de espalhar sabor na boca, a beleza devastadora de viver em um lugar que nunca deixei de chamar de lar.

Um comentário:

  1. Já li trocentas vezes e sempre me emocionou. O texto é um start pra essas lembranças que são muito parecidas e muito queridas. Será que estamos ficando velhos e cada vez mais cheios de "añoranzas"? Capaz!

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