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domingo, 16 de dezembro de 2018

CLORO


A masculinidade exige esforços insuspeitáveis. Aos oito anos de idade, Constantino Curtis, protagonista de Cloro (Alexandre Vidal Porto, 2018), ouve o insulto proferido por um colega de aula. Imediatamente o instinto acionou o alarme: Aquela palavra, “bicha”, que me definia contra minha vontade, tirava de mim a possibilidade de inocência. Depois daquela revelação, caberia a mim a responsabilidade de quem eu iria ser ou me tornar.

Antecipando qualquer situação ambígua, Constantino resolveu ser homem. E isso significa que namorou, casou, teve dois filhos (André e Léa), e procurou evitar situações em que a sua sexualidade pudesse ser colocada em xeque.

Aos cinquenta e um anos de idade, teve um enfarte. Prisioneiro em alguma espécie de limbo, espaço impreciso entre a vida e a morte, Constantino relata para o leitor a história de sua vida. Morri, mas não vi a cara da morte, escreve, tentando explicar a circunstância inusitada.

Nessa confissão póstuma, a angústia de quem precisou reprimir o desejo está descrita de maneira límpida. Em nenhum momento, Constantino tenta negar que sempre se sentiu atraído por homens. Ao mesmo tempo, ciente de que não possuía estrutura psicológica para pagar o preço social, defende que foi necessário manter as aparências. Essa postura se sustenta durante muitos anos. Uma tragédia familiar o faz reavaliar procedimentos e ações: (...) a morte de André acabou me abrindo para o mundo, e isso foi uma coisa positiva, se é que algo positivo pode advir da perda de um filho. Para sobreviver a sua morte resolvi mergulhar na minha vida, coisa que nunca tinha feito antes.

O sentimento escondido durante tanto tempo se manifesta. Com quase 50 anos de idade, Constantino, ao ver uma cena de ménage à trois em uma série televisiva, fica excitado. Depois, quase como consequência imediata, se torna assíduo nos sites de pornografia: (...) acabei pulando de um extremo ao outro. Passei da abstinência à masturbação compulsiva.

Faltava o contato físico. Em Brasília conhece Alano. Uma breve conversa, algumas caipirinhas e o quarto do hotel. Sem traumas, sem arrependimento. Vida que segue.

Uma vez que as barreiras são destruídas, não há mais como retornar ao ponto de partida. O prazer demanda por repetir a experiência – o medo e a adrenalina se confundem e estimulam. Algum tempo depois, encontra um parceiro regular – por quem se apaixona. As viagens “de trabalho” se tornam mais frequentes.

A situação perfeita desaparece diante das forças do destino. O amante, por razões profissionais, precisa deixar Brasília. O castelo de cartas desmorona. Constantino volta ao celibato.     

Um dia, em Tóquio, talvez para reavivar o passado, resolve visitar uma sauna gay. Em meio ao vapor e o cheiro de cloro, Átropos (uma das Moiras) corta o fio da sua vida. Um cadáver encontrado nas condições em que foi o meu perde todo direito à privacidade.

Não houve nenhum contato sexual, mas a presença física em lugar inadequado configura o delito. A partir desse instante, as peças vão se encaixando no quebra-cabeça. A esposa e o cunhado começam a lembrar de alguns detalhes. A perplexidade inicial se transforma em sentimento impreciso. O morto passa a ser visto com outros olhos.

Cloro está dividido em três partes. Na primeira, composta por 24 capítulos curtos, quatro ou cinco páginas no máximo, Constantino revela os limites impostos à sua identidade. Na segunda, há o depoimento de vários personagens importantes na trama. No epílogo, a morte.

A linguagem que Alexandre Vidal Porto utiliza em Cloro é cristalina. Os acontecimentos são descritos em ordem direta, sem deixar espaço para mistérios ou alusões. Tudo está no lugar certo, no tempo adequado, sem pressa, sem complicações.


TRECHO ESCOLHIDO


Constantino Curtis e eu tínhamos amigos em comum. Sabíamos da existência um do outro, mas não nos conhecíamos pessoalmente. Ambos estudamos direito na São Francisco, mas sou de uma turma dez anos antes da dele. O almoço que não ocorreu teria sido nosso primeiro encontro.


O escritório de advocacia que Constantino Curtis mantinha com o irmão George era muito respeitado. Tinha filiais em várias cidades do Brasil, e a firma Curtis e Irmão era uma espécie de grife nos meios jurídicos nacionais.


Ele e a mulher, Débora, haviam perdido um filho de forma muito violenta. Parece que, depois disso, ele quase parou com a advocacia e começou a se envolver mais e mais com uma organização não governamental para combate da criminalidade – chamada Semprepaz. Me falaram que a mulher deu uma pirada e vive à base de remédios. Mas ao telefone hoje, quando falamos, ela me pareceu normal, equilibrada. Vou conhecê-la assim que chegar a Tóquio.


E aí o cara tem um avc numa sauna gay numa viagem de trabalho e cai morto dentro de um quarto escuro. Que puta cagada. Ninguém merece isso.


Provavelmente a mulher dele não sabe de nada. O coitado devia ter o maior cuidado para deixar tudo em sigilo e é desmascarado na hora da morte. Que ironia triste...


Lembro de uma história semelhante de quando servia em Buenos Aires. O maior criador de cavalos árabes de lá, tipo supermachão, totalmente no armário, foi encontrado pela irmã, freira, morto em sua cama, de bunda para cima, assassinado por um michê. Saiu em todos os jornais. Foi a imagem que ficou do cara.


Eu não mencionei nada à mulher do Constantino sobre o tipo de clientes que o spa onde o encontraram atraía. Ela recebeu a notícia com calma, como se soubesse que ele poderia morrer a qualquer momento.


Se ela tivesse me perguntado algo, eu falaria de forma objetiva, ainda que com algum eufemismo. Mas ela não me perguntou nada. Parecia que o marido havia morrido no leito de um hospital. Aí, eu pensei: para que enfear uma situação que já é horrível?