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terça-feira, 29 de dezembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXXXII)

 

Study of Rachel Russel (oil on panel).
Edwin Henry Landseer (1802-1873)


No final de dezembro é comum fazer retrospectivas, resenhas e listas dos melhores livros do ano. Ou então, como prova de leitura, relacionar aqueles de que mais gostamos nos últimos 365 dias. Considerando que não me iludo com as boas intenções que envolvem (com papel de embrulho colorido) esse tipo de interação, deixarei a tarefa para outros. Além disso, gosto se discute – e a minha avaliação (que é bastante limitada) raramente coincide com qualquer coisa que poderia ser chamada de senso comum. 

Prefiro a contenção dos elogios – o de hoje pode ser a vergonha de amanhã. Acredito que o melhor juiz é o tempo, que não se curva à euforia que acompanha a precipitação.

Detesto listas. Não importa o critério adotado, esse exercício está centrado na ausência e seus sinônimos: falta, omissão, negação, exclusão. Muitas vezes também dão um passo na direção do equívoco. Afirmar que estes ou aqueles são os melhores livros do ano é de uma temeridade que assusta. Acaso o autor da classificação leu TODOS os que foram publicados no país? Obviamente que não. Ninguém tem tempo ou paciência para ler cinco mil livros (romances, contos, poemas). Talvez os leitores vorazes consigam ler uns cem. Ou menos. Bem menos.

E os livros premiados em concursos? Também não devem ser acolhidos como integrantes das listas dos melhores? Ora, ora! Cada concurso possui regras específicas e um corpo de jurados que... na falta de expressão mais civilizada, agem de acordo com interesses diversos daquele que os ingênuos chamam de qualidade (um conceito difuso, sem substância). Prêmios (salvo raras exceções) atendem aos interesses da indústria editorial.         

Prefiro continuar incentivando a leitura, sem declarar preferências, sem tentar cooptar seguidores e patrocínios. Quem trabalha com a cultura possui um inimigo muito poderoso: a comercialização (monetização). E, infelizmente, poucos “ativistas culturais” conseguem resistir ao canto da sereia. A sobrevivência sempre foi a desculpa perfeita para aqueles que Circe transformou em porcos.

A Internet está repleta de indicações literárias (vídeos e comentários escritos) que em nada diferem do marketing mais infame. Youtubers transformaram a literatura em carnaval (impulsionados por editoras amigas). Com uma linguagem que se aproxima do coloquial e se afasta da crítica literária, distribuem elogios como se fossem confetes e serpentinas. Em cerca de 80% é mais do mesmo, ignorando a regra básica do minimalismo: menos é mais.

Mas, por favor, não entendam que estou defendendo algum absurdo como a arte pela arte, literatura pela literatura. Nada disso. O que gostaria de destacar é que é necessário, na trincheira, saber o grau de credibilidade de quem está ao nosso lado. Os representantes da indústria literária (e seus vassalos) certamente não são confiáveis. Nunca foram. E não será agora que mudarão o roteiro da procissão. Inclusive porque o santo de devoção é outro.

Por fim, para que não restem dúvidas, qualquer leitura sempre será melhor do que nenhuma. Pouco importa se o leitor gosta dos clássicos ou da literatura erótica, dos dramalhões ou da ficção científica, dos ensaios ou das histórias em quadrinho. O importante é ler. Quanto mais, melhor.   

Que, em 2021, as bibliotecas públicas se multipliquem.   


sábado, 26 de dezembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXXXI)

 


Esta época do ano solicita alegrias, presentes, esperanças e orações. Lamento pelos que pensam assim. Vou quebrar a regra civilizatória do bom comportamento e dizer (escrever) que as festas de dezembro me deixam depressivo. 

O passado costuma costurar de forma descuidada as piores recordações. Em momentos de euforia (ou seja, de descuido), alguns remendos de péssima qualidade fogem das gavetas onde estavam guardados a sete chaves e desfilam pela passarela que chamamos de história pessoal.

Paradoxalmente, todas as complicações (e foram muitas) produziram um benefício: reforçaram a couraça – o suficiente para evitar a dose extra de medicação ou de álcool. Em outras palavras, choro pouco. Cada vez menos. Estou ficando desidratado de sentimentos. O que talvez confirme o que dizem os astrólogos: os aquarianos não possuem coração.   

Morador da aldeia, no alto de um planalto provinciano, longe de tudo e de todos, muitas vezes pensei em fugir. Para onde? Não sei. O canto da sereia tem os seus encantos, acena com recantos escuros e escusos, prazeres que poucos experimentaram. Arrumei as malas e fui (várias vezes). Insisti em deixar para trás as ruas que testemunharam brigas de família e conflitos variados. Pensava que ser adulto significava recusar o que oprime. Sem qualquer tipo de compromisso, sem olhar para trás, protagonizei aventuras em outras paisagens. Foi uma felicidade fria / daquele tipo de alegria, / triste como nostalgia, como definiu o João Mantuano em uma de suas canções.

Em determinado momento, cansado de trapaças e trapalhadas, percebi que mesmo quando alcançamos os lugares mais distantes, estamos sempre voltando para casa. Ninguém consegue resistir às forças ancestrais. Então tá, disse para mim mesmo, enquanto encaixotava livros e lembranças.  

Outra vez na capitania hereditária, fiz questão de manter ao redor do castelo um fosso com jacarés famintos. Só abaixo a ponte levadiça para uma meia dúzia de amigos e uma minúscula parcela da família. A vida é curta demais para perder tempo com quem adora causar aborrecimentos.

Quando me perguntam do porquê de tudo isso, didaticamente explico que não quero interpretar papel de vilão, mas, por preferência pessoal, tenho mais prazer na companhia das criaturas de papel do que nas de carne, osso, sangue e dor.

Abusando da liberdade poética, costumo dizer (para os fins que se fizerem necessários e a quem interessar possa) que foi a literatura que me salvou. Se não houvesse o mundo onírico da ficção e da poesia, provavelmente teria sido arrastado (arrasado) pelo vórtice da insensatez. Ou melhor, seria um desses sujeitos que prestam vassalagem às tabelas de Excel, que reduzem tudo aos percentuais de lucro capitalista e que apostam na pulsão da morte.

Quero distância dessa gente. Também quero ser vacinado. E não estou preocupado com a procedência do medicamento. A proteção da vida está acima dos interesses políticos.

Enquanto o entusiasmo (do grego, in + theos, estar com deus) não acontece, imagino o momento em que todos poderão caminhar pelas ruas e não ter medo.


segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXXX)

 


No ano um da pandemia (também conhecido como o ano em que ficamos em casa) me transformei no arroz de festa das lives (literárias, políticas, musicais e econômicas). Basta ver no Facebook ou no Instagram o convite para algum desses encontros que uma luz brilha no meu olhar. Depois de agendar o evento, fico ansioso para ver as performances e as surpresas – que são sortidas: conexões ruins e que “caem” a todo instante, cães, gatos e crianças que surgem inesperadamente na tela, interesses comerciais dissimulados ou explícitos, perguntas calculadas para não pisar nos calos dos convidados e respostas educadas (educadas demais para o mundo real). Todos jogando para a plateia. Uma nova forma de fazer teatro.

Como todo projeto de stalker, sofro uma espécie de síndrome de abstinência quando (ó céus, ó vida, ó azar) preciso passar dois ou três dias sem ter algum tipo de contato virtual com o pessoal que, na falta de palavrão mais qualificado, chamo de digital influencers. São eles que dão cor e sabor aos meus dias e noites de isolamento social.

Creio que – sem querer parecer exagerado – me tornei amigo intimo de algumas dessas pessoas. Elas não sabem disso, provavelmente nunca ficarão sabendo, mas as vi tantas vezes pela tela do computador que parece que somos colegas de infância. Em cada live, vou anotando mentalmente as histórias de fulano, as dificuldades de sicrano, o enredo do novo romance de beltrano. É causo pra mais de metro, como dizia célebre filósofo dos tempos de antigamente – aquele que ficava imaginando o mundo romântico das novelas transmitidas pelas ondas do rádio.

É isso, as lives me remetem ao tempo em que vivi no interior do município, onde uma das poucas formas de comunicação com o mundo exterior eram as transmissões diárias, ao meio dia, do Jornal Falado da Rádio Clube de Lages (Se a Clube não deu, é porque não aconteceu!). Junto com a Ave Maria (às seis da tarde) era horário sagrado. Silêncio absoluto. Sob pena de ser castigado severamente se algum “aviso” ou notícia fosse atrapalhado pela bagunça ou por algum comentário que poderia ser feito em outra ocasião.

A vantagem das lives sobre as transmissões radiofônicas anteriores aos podcasts é que as lives podem ser visitadas post mortem. Ou seja, ficam gravadas em lugar impreciso e não identificado e que, como se fossem zumbis, podem ser libertadas do “outro mundo” quando acessamos o Google, o YouTube, o IGTV ou outros dispositivos menos conhecidos. Não é a mesma coisa, pois parecem reprises ruins de programas de televisão, mas não vejo isso como um impedimento sério quando há coincidência de horários. 

(Quase) tudo é permitido quando é divertido, e, se as musas me perdoarem a indiscreta confissão, quero continuar passeando pelo planeta, defendendo intransigentemente a procrastinação, flâneur em um palco cenográfico que glorifica o empreendedorismo (essa mistificação das relações de trabalho). Nestes tempos horrorosos em que estamos vivendo, mil tragédias todos os dias, o fim do mundo em tecnicolor, diria o filósofo acima citado, assistir algumas lives deve ser entendido como uma forma de proclamar que quero continuar vivo. Como cantou Belchior, um dos reis magos da música popular brasileira, eu inda sou bem moço pra tanta tristeza.


segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXXIX)

 


Certa vez, em Paris, uma senhora garantiu para Julio Cortázar que ele, Cortázar, não era Cortázar. Para ela, o autêntico Cortázar era um senhor de cabelos brancos, que nunca saiu de Buenos Aires, e que era amigo próximo de um parente.

O estranhamento também está presente em um verso de Cecília Meireles, Em que espelho ficou perdida a minha face? A interrogação projeta um universo paralelo, onde as regras são outras – ou as mesmas, embora pareçam ser diferentes. Trata-se de jogo especular, destinado a perseguir os ingênuos e os cegos para que, em algum momento, possam alcançar a compreensão dos acontecimentos que ocorrem ao redor.

Diante do duplo, essa ilusão de ótica que embaralha o real e a miragem, o mundo onírico costuma fracionar os indivíduos. Muitas pessoas raramente conseguem se lembrar dos sonhos e pesadelos que perturbam as noites. Penso que isso é um alívio, um mecanismo de defesa contra os horrores diários. Nem sempre essa barreira funciona. Em um dos últimos sonhos, eu estava em um lugar que foi importante no passado, mas povoado por pessoas do presente e por alguns mortos. Era uma situação completamente inverossímil, mas que parecia estar estruturada em algo coerente. A angústia da travessia foi inevitável, não consegui me reconhecer naquele ambiente opressivo. Embora fosse eu, estivesse vestido com o meu corpo, usasse a minha voz, era outro, era um desconhecido. Despertei banhado em suor e espanto. Em seguida, tornei-me hóspede da insônia. Uma sensação áspera de tristeza.  

Não sei o que a psicanálise poderia dizer sobre esse tipo de desassossego. Provavelmente não será algo agradável. Nunca o é. Dormir não diminui as dores – muitas vezes, em lugar de congelá-las por algum tempo, deixa a porta aberta para que possam invadir a vida. E o que era para ser certeza se transforma em algo pastoso, desagradável meleca grudada nos dedos da humanidade.    

As notícias diárias sobre a morte de amigos, conhecidos e inimigos (sim, tenho alguns desafetos de estimação) me lembram de que a finitude da existência (que era apenas uma ameaça até ontem – quando me julgava jovem) adquiriu substância, perdeu a leveza, tornou-se um fardo. E parece estar ali na esquina, à espera de um momento de distração. Aqueles que cultivam saudável paranoia sabem que Cloto, Lakésis e Átropos continuam decidindo a extensão do fio da existência. As Moiras (Μοῖραι) nunca descansam.

Não tenho planos grandiosos para o futuro, mas também não quero ir embora. Prefiro continuar incomodando um pouco mais. Por isso, e um amontoado de outros motivos, torna-se difícil negar que sou um indivíduo com medo da própria sombra. 

Cortázar era múltiplo, mas não era o velhinho que a mulher imaginava. Aquele personagem não tinha densidade, não estava repleto de fantasmagonias. Era apenas uma figura do imaginário, um sonho ruim. A vida e a literatura exigem mais – de todos nós.


domingo, 6 de dezembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXXVIII)

 


Não sei se existe alguém no mundo que goste de lavar a louça. Talvez os nascidos no signo de virgem, que são pessoas certinhas, adoradores da ordem e da limpeza. Como nasci na outra ponta do zodíaco, tenho entendimento diferente, penso que essa tarefa pode e deve ser adiada o máximo possível, possivelmente para quando não mais existirem pratos e copos limpos.

Com a pandemia, o meu entendimento não mudou, mas tenho exercido o sacrifício com mais assiduidade, uma vez a cada dois dias, o suficiente para não ter a necessidade de desviar o olhar toda vez que vou à cozinha. Poderia culpar minha mãe, que, na infância e adolescência, não me avisou que o futuro estaria repleto de surpresas e que, muitas vezes, precisaria (munido de esponja, detergente e paciência) tentar limpar os detritos do viver. Não quero transferir responsabilidade. Seria uma injustiça com D. Vina, visto que recebi outras lições, talvez mais valiosas, sobre como sobreviver em um mundo hostil e repleto de armadilhas.

Passei parte do dia assistindo – outra vez – Stalker (Dir. Andrei Tarkovski, 1979). Foi uma sessão tumultuada e que se espichou até o início do entardecer. Em casa, diferente da sala de cinema, não me parece sensato aguentar duas horas e quarenta minutos sem algum tipo de interrupção. Sai para buscar chocolate, fazer chá, ir ao banheiro, assistir um pouco de futebol. Talvez, inconscientemente, estivesse criando pretextos para tomar fôlego, assimilar aquela lentidão narrativa, repleta de tensão, e que se multiplica nos momentos em que a câmera se demora no rosto dos personagens, forma brutal de mostrar a melancolia e a tristeza.     

O que isso tem a ver com a louça suja? Tudo. Ou nada. A escolha é do freguês. Fique à vontade!

Depois do filme, precisei encontrar uma atividade terapêutica que me afastasse da depressão. Pode parecer maluco (e talvez seja), naquele instante senti a falta de ver gente, de abraçar as pessoas de quem gosto (e que não são muitas!), beber cerveja, jogar conversa fora. Na ausência dessas atividades – e que são essenciais –, fui lavar a louça. Não era muita coisa: três pratos, dois copos, duas xícaras e meia dúzia de talheres.

Um pouco d’água quente ajuda muito. Inclusive para que o pensamento consiga voar para lugares outros, longe da filosofia da miséria e, claro, da miséria da filosofia que emoldura esses dias tumultuados pelas ameaças da indesejada das gentes (na expressão lírica do Manuel Bandeira – que provavelmente nunca reclamou de ter que lavar a louça).

Amanhã é outro dia. Talvez repleto de esperança. Por isso se torna necessário usar máscaras e álcool gel, tomar distâncias, superar o medo – ao mesmo tempo, ignorar a sensação de que o afeto está escorrendo pelo ralo da pia. 

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Stalker foi adaptado (mas não muito) do romance de ficção científica dos irmãos Arkady e Boris Strugátski, Piquenique na Estrada (São Paulo: Aleph, 2017). O roteiro do filme também é assinado pelos irmãos Strugátski.   


sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXXVII)

 


No poema One art, Elizabeth Bishop escreveu que the art of losing’s not too hard to master / though it may look like (Write it!) like disaster, versos que podem ser traduzidos informalmente como a arte de perder não chega a ser mistério / Por mais que pareça [escreva isso!] um desastre.

Lembrei-me desse trecho do poema em uma das manhãs da última semana. Minha mãe, 81 anos, precisa fazer prova de vida no INSS. Ou seja, deve convencer o governo que não está morta. Ocorre que o seu estado de saúde é precário e o bom senso recomenda procurar por alternativas para cumprir com essa formalidade burocrática.

Liguei para o número telefônico 135 – conforme me foi recomendado na instituição bancária onde ela recebe o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Depois da inevitável espera, a máquina que me atendeu solicitou o número do CPF da requerente e informou que deveria selecionar o tipo de atendimento desejado (números entre 1 e 9). Desliguei e fui procurar pela Carteira de Identidade da mãe. Lá consta o número do Cadastro de Pessoa Física.

Não encontrei. Revirei pastas e caixas de sapato onde guardo as quinquilharias familiares. Não sei o que a cédula identitária estaria fazendo naqueles lugares, mas revistei vários álbuns de fotografias. Lembranças voltaram a me assombrar, mas fingi que não era comigo, o que queria era encontrar o documento. Esvaziei duas gavetas – foi bom fazer isso, coloquei em um saco de lixo centenas de comprovantes de pagamento bancário e alguns panfletos comerciais; papéis inúteis que estavam fazendo volume e tinham perdido a utilidade.

Cansado, sentei no sofá do escritório e fiquei olhando para as estantes, na esperança de que os livros pudessem fornecer alguma pista do desaparecido. Esforço inútil. Nenhuma possibilidade de encontrar o que estava procurando. E agora?, perguntei para mim mesmo, misturando perplexidade e desespero.

Perder livros, documentos, chaves, cartão de crédito, dinheiro – tenho um dom natural para esse tipo de coisa. Se fosse contar quantas vezes isso aconteceu, escreveria um livro. Evidentemente, depois de algum tempo e grandes incômodos, recuperei quase todas as perdas. Posso até dizer que o estrago foi mínimo. O que sempre me incomodou foi o correr atrás do prejuízo, o medo de estar diante de um beco sem saída.

Edgar Allan Poe escreveu um conto mágico, A Carta Roubada. Várias pessoas procurando por algo que estava diante dos olhos. É um caso clássico de cegueira coletiva, ninguém consegue enxergar a obviedade. De forma similar, foi o que aconteceu comigo. Alguns meses atrás, em função de outro processo administrativo no INSS, precisei separar uma série de notas fiscais relacionadas com os gastos da mãe (remédios, fraldas, compras de supermercado, recibos de aluguel, água e luz). Coloquei tudo dentro de um envelope. Junto com a papelada, a Carteira de Identidade.

Esse envelope estava o tempo todo na minha frente, em uma das estantes, a dos livros de História. Eu não fui capaz de o ver. Tampouco lembrei que havia incluído a CI naquele grupo de documentos.

Ao alivio de encontrar a Carteira de Identidade, seguiram-se as inevitáveis confusões ao tentar agendar a prova de vida. Essas trapalhadas contarei depois.      


sábado, 28 de novembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXXVI)

 


Joguei a toalha no centro do ringue. Ou melhor, fui nocauteado. Confirmando minha teimosia, relutei um pouco antes de aceitar a verdade. Foram necessários vários meses para compreender o quanto sou incompetente. Fracassei como dono de casa. Varrer o apartamento, limpar o box do banheiro, passar cera no piso de parquet, limpar a geladeira: tarefas acima de minhas possibilidades. A vida doméstica é uma floresta cheia de feras selvagens e, para desconforto do meu ego, não nasci para ser domador. Desesperado, gritei por socorro.

Minha Assistente para Assuntos de Limpeza Doméstica (AALD), como se fosse uma heroína de história em quadrinhos, apareceu em cena e rapidamente deixou tudo limpo e brilhando. Concluída a tarefa, depositei em sua mão algumas cédulas, uns trocados para mim, muito dinheiro para ela, comprovando – mais uma vez – a disparidade econômica que nos separa. Isso representa outro nocaute.

A ilustre AALD foi parte da herança que recebi da minha mãe. Durante alguns anos elas trabalharam juntas. As duas possuem uma qualidade (ou defeito) impar: não levam desaforo para casa. E isso significa que cometem sincericídio a todo instante. Apesar dessa característica bizarra (que produz um ritmo estranho, cheio de atritos, faíscas e labaredas), uma suportava as idiossincrasias da outra. Nos momentos mais tensos, alguém (ou uma delas) encontrava o extintor de incêndio e impedia que acontecesse algo mais grave. Coisas da amizade.  

E assim se passavam os dias. Infelizmente, as dificuldades econômicas exigiram novas fontes de renda para a AALD. Sem alternativa, e querendo colaborar, adotei-a – uma vez a cada quinze dias. E não estou arrependido. Quer dizer,...

A AALD gosta de conversar e isso sempre foi um entrave nas nossas relações de trabalho. Em tempos pandêmicos, muito mais. Normalmente me isolo no escritório e deixo o resto do apartamento aos seus cuidados. A ilusão de que não serei interrompido nunca passou de ilusão. Na última vez que ela limpou o apartamento, eu estava tentando assistir uma live. Fui interrompido várias vezes. Obviamente relevei a situação. Sempre é possível ver esse tipo de programa em sessões post-mortem. Não é a mesma coisa, mas...

Nós dois, de máscaras, as vozes abafadas, comentando as notícias da semana ou falando mal dos conhecidos constituirá uma boa lembrança desses tempos sombrios. Não perdoamos ninguém – inclusive porque poucas coisas nesse Brasil deitado em berço esplendido e que cultiva a idiotice pré-histórica merecem perdão.

Depois que AALD terminou o serviço e foi embora, iniciei a minha tarefa: colocar algumas coisas no lugar. Ou melhor, no lugar que eu considero que devem ficar. Não é muita coisa, o suficiente para me obrigar a revistar o apartamento. Uma janela mal fechada, a vassoura esquecida na sala, as toalhas erradas no banheiro, a torneira pingando na pia, a porta da geladeira encostada. Nenhuma transgressão grave, mas uma desordem que me incomoda. E que faço questão de corrigir.  

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Não cultivo sentimentos religiosos, mas acredito em anjos da guarda. Em diversos momentos da vida, quando tudo parecia estar à beira do abismo, fui salvo pelo inesperado, por alguém que me estendeu a mão. Quem tem amigo não morre pagão, dizia a minha avó. A AALD é um dos meus anjos da guarda.


segunda-feira, 23 de novembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXXV)

 


Dissolvi o domingo em jazz, crônicas da Marília Kubota, chocolate e alguns programas de Internet (Nei Lisboa, Ivana Arruda Leite, Eduardo Moreira,...) que, por diversos motivos, não me foi possível assistir durante a semana. Gosto de estar sozinho, ou melhor, gosto de estar com os meus livros, ouvindo música, escrevendo e lendo. Nesses momentos, dispenso companhia. No meu imaginário, isso me aproxima do paraíso (seja lá o que isso for!).

Tenho certeza de que muitas pessoas pensam que passar o dia assim constitui um desperdício. Ontem foi dia de sol, poderia aproveitar o tempo bom e caminhar pelas ruas do vilarejo, na tentativa de eliminar as teias de aranha que a inércia vai tecendo em torno de cada ser humano. Rejeitei a proposta, me enrolei em cobertor e passei parte da tarde deitado no sofá. Qualquer semelhança com Iliá Ilitch Oblomov, personagem criado por Ivan Alexándrovitch Gontcharóv, não deve ser considerada como uma mera coincidência.

Tenho várias teses sobre o ócio e, na medida do possível, tento colocá-las em prática. Infelizmente, a sociedade do pragmatismo produtivo e (ó céus, ó vida, ó azar) os credores me obrigam a romper com a imobilidade. Mesmo assim – a quem interessar possa e para os fins que se fizerem necessários –, costumo avisar que o discurso da servidão voluntária não está nos meus planos básicos. Esforço inútil. Quem deveria entender a mensagem mostra, digamos, algumas dificuldades. Um sujeito que, em outra época, foi o meu chefe, diante do argumento, disse que esses intelectuais inventam cada uma. E riu. Ou melhor, gargalhou.

Fiquei ofendido. Além de não ter sido considerado como alguém capaz de fornecer uma interpretação para o mundo, senti que havia sido envolvido pelo ar gélido do deboche. Imediatamente esbocei um entusiasmado palavrão, mero agrado às qualidades neuronais do sujeito. A prudência (essa amiga que nem sempre aparece nos momentos necessários) me impediu de pronunciar a frase em voz alta.

Na primeira oportunidade forneci o troco. E com requintes diversificados de crueldade. A melhor parte da brincadeira foi que a vítima só conseguiu entender os acontecimentos quando era tarde demais. Sim, sou um adepto do schadenfreude, que é aquela sensação de prazer, alegria ou satisfação quando alguém sofre algum infortúnio.

(Pausa explicativa: peço desculpas por ter usado a palavra infortúnio, que é definitivamente inadequada e não corresponde à situação. Como estou procurando, nestes tempos do politicamente correto, manter a elegância textual e comportamental, deixo de lado o baixo calão e, em nome da moral e dos bons costumes, adoto o vernáculo luso-brasileiro, em versão castiça).

Volto ao tema inicial: il dolce far niente. Em certa medida, essa postura improdutiva (pelos padrões do capitalismo) pode ser considerada como um sinônimo da filosofia (que é o ofício de nada concluir, enquanto elabora teorias e devaneios). Idêntica ocupação exerce o flaneur, um dos personagens mais amados por Walter Benjamim, e que, ao desempenhar a função de espectador do cotidiano, adota a estética como proposta de representação da vida. Por fim, há Garfield, o gato preguiçoso, egoísta e malvado das histórias em quadrinhos, que se recusa a contribuir com qualquer atividade que demande esforços. 

Existirmos, a que será que se destina?, pergunta o bardo baiano em música quase esquecida. Não tenho resposta, mas arrisco que é para ler bastante, pensar inutilidades e, em algumas ocasiões, dormir no meio da tarde.


terça-feira, 17 de novembro de 2020

TRINTA E SEIS FRASES SOBRE ECONOMIA E ECONOMISTAS

 


– Há três maneiras de se chegar ao desastre: a mais rápida é pelo jogo; a mais agradável é com as mulheres; e a mais segura é consultar um economista. (George Pompidou)

Os economistas gostam de ficar brigando entre si para não correr o risco de estarem todos errados ao mesmo tempo. (John Kenneth Galbraith)

– Se todos os economistas fossem postos lado a lado, não chegariam a uma conclusão. (George Bernard Shaw)

Quando você não entender nem os fatos, nem os números, e tiver que explicar os fatos e os números, misture fatos e números, teça com eles um indecifrável silogismo, e passará a ser considerado um extraordinário economista. (Millôr Fernandes)

– Economia: aquisição do barril de uísque de que não precisamos pelo preço da carne de vaca que não nos podemos dar ao luxo de comprar. (Ambrose Bierce)

Onde há grande propriedade, há grande desigualdade. Para um muito rico, há no mínimo quinhentos pobres, e a riqueza de poucos presume a indigência de muitos. (Adam Smith)

– O deus mercado organiza a economia, a vida e financia a aparência de felicidade. Parece que nascemos só para consumir e consumir. E quando não podemos, carregamos frustração, pobreza e autoexclusão. (José Mujica)

A superioridade do economista sobre o resto dos mortais é que ele fala o que ninguém entende. (Nelson Rodrigues)

– Não existe almoço grátis. (Milton Friedman)

Todos vivem de vender alguma coisa. (Robert Louis Stevenson)

– The economy, stupid! (James Carville)

O pensamento político está reduzido à economia, como se tudo pudesse ser calculado. (Edgar Morin)

– Não subestime o dinheiro; ele é um bom serviçal e um péssimo mestre. (Alexandre Dumas)

Se a natureza fosse um banco, já teria sido salva. (Eduardo Galeano)

– Banqueiro é aquele que lhe empresta o guarda-chuva quando o sol brilha e o tira quando começa a chover. (Mark Twain)

Hoje o brasileiro não economiza mais pros dias ruins. Economiza pros dias piores. (Millôr Fernandes)

– Com trabalho, inteligência e economia só é pobre quem não quer ser rico. (Marquês de Maricá)

Em economia, a maioria está sempre errada. (John Kenneth Galbraith)



– Em teoria econômica, o que não é obvio quase sempre é besteira. (Mário Henrique Simonsen)

O economista é um homem que, quando lhe pedimos um número de telefone, ele responde com uma estimativa. (Denis Healey)

– A tecnologia moderna é capaz de realizar a produção sem emprego. O diabo é que a economia moderna não consegue inventar o consumo sem salário. (Herbert de Souza)

Economia significa ficar sem alguma coisa que se deseja intensamente, caso algum dia se venha a querer algo que provavelmente não se terá necessidade. (Anthony Hope)

– A economia é extremamente útil como forma de emprego para os economistas. (John Kenneth Galbraith)

Não pode haver liberdade sem liberdade econômica. (Margaret Thatcher)

– Economista no poder é como general: tem sempre um ato institucional a baixar. (Carlos Castelo Branco)

Negociata é um bom negócio para o qual não fomos convidados. (Barão de Itararé)

– O dinheiro não é a raiz de todo o mal. A falta dele, sim. (Mark Twain)

Recessão é quando o seu vizinho perde o emprego; depressão é quando você perde o seu. (Harry S. Truman)

– A economia compreende todas as atividades do país, mas nenhuma atividade do país compreende a economia. (Millôr Fernandes)

A verdadeira dificuldade não está em aceitar ideias novas, mas escapar das antigas. (John Maynard Keynes)

– A primeira tarefa de um economista é ganhar um mínimo de dinheiro. O fato de ter conseguido fazer isso sem grande esforço nunca me tirou o sono. (John Kenneth Galbraith)

A ambição universal do homem é colher o que nunca plantou. (Adam Smith)

– O economista é um ficcionista que venceu na vida. (Millôr Fernandes)

A esquerda é boa para duas coisas: organizar manifestações de rua e desorganizar a economia. (Humberto de Alencar Castelo Branco)

– As leis da economia são implacáveis. Não têm coração e não sentem remorso. (Paul Samuelson)

O liberalismo oferece água de lavagem como se fosse o elixir da vida. (Karl Kraus)





segunda-feira, 9 de novembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXXIV)

 


Não há motivos para ter ilusões com o imperialismo. O capitalismo, seu irmão gêmeo, também não merece confiança. A eleição de Joseph “Joe” Robinette Biden Júnior e Kamala Devi Harris provavelmente não vai alterar um milímetro no ordenamento geopolítico e econômico do mundo. No entanto, a comemoração se faz necessária.

O valor simbólico dessa troca de personagens em um dos países centrais da contemporaneidade poderá servir de exemplo para corrigir a rota errática que a política adotou nos últimos tempos. Além disso, sugere que existem caminhos que divergem do neofascismo e de todos os sistemas políticos que incitam o ódio.

Respirar ar puro ajuda em qualquer circunstância. Mas, principalmente, permite frear os inimigos da democracia. As mudanças recentes em Argentina, Chile, Bolívia e, agora, Estados Unidos, acenam com possibilidades menos autoritárias, voltadas para a implantação de políticas sociais de inclusão (saúde, habitação, distribuição de renda).

Ninguém pode garantir que esses objetivos serão realizados. A utopia se baseia em hipóteses, possibilidades, teses. No momento da execução (prática) surgem obstáculos, conflitos de interesses, prioridades. O jogo está contaminado por essas sutilezas. Urge contorná-las. E não se deixar abater pelo pragmatismo neoliberal – que quer diminuir as intervenções do Estado e entregar tudo para a iniciativa privada.

No entanto, o sol pode iluminar o horizonte. Com a mudança de comando em Estados Unidos, possivelmente acontecerão algumas alterações na política externa dos países periféricos. As recentes posições adotadas pelo Itamaraty em temas singulares como o aborto, Acordo de Paris, as relações com o Mercosul e com a Organização para Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), precisarão ser revistas. E rapidamente, sob o risco de transformar o Brasil em pária internacional. Isso se a situação for passível de reversão (muitos analistas da política internacional acreditam que é tarde demais para corrigir o desastre).

O mesmo acontece com a agenda ambiental, que terá que adotar medidas proativas, isto é, mostrar que está protegendo a floresta amazônica: condenando o desmatamento, reprimindo as queimadas, defendendo as populações indígenas. Também precisará inibir a mineração predatória e, não menos importante, combater o negacionismo climático. Agentes estatais como o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (IBAMA) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) necessitam ter maior mobilidade e poder de ação.

As duas incógnitas mais importantes nessa mudança de cenário são: quais atitudes serão tomadas pelo governo estadunidense em relação à política externa do Brasil e como a chancelaria brasileira reagirá. Se o governo vigente se recusar em mudar o entendimento e insistir nas posições marginais que o caracterizam, então poderá esperar por algum tipo de sanção (principalmente no campo econômico). 

O governo Biden será imperialista – como foram todos os governos estadunidenses. Isso é inquestionável. Em nenhum momento hesitará em tomar medidas extremas contra os seus inimigos. A ideia hollywoodiana de que o mundo está dividido entre mocinhos e bandidos jamais existiu – exceto em filmes, um dos melhores veículos de propagando do american way of life. O que determina a diferença entre isso ou aquilo se restringe na dicotomia "está comigo ou está contra?" Biden provavelmente adotará métodos mais perspicazes que aqueles que foram utilizados pelo governo que será substituído. Antes de lançar algum tipo de ataque militar ou retaliação comercial, o governo estadunidense tentará usar do soft power da diplomacia (que é uma forma "civilizada" de “convencer” aqueles que tentam resistir aos desejos mais fortes do capital). Se esse expediente falhar, então...  

Não é necessário estudar História para entender que alguns acontecimentos se repetem, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. Simples assim.

Aguardemos os próximos capítulos dessa saga.      


sexta-feira, 30 de outubro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXXIII)

 

A Barca de Caronte. Pintura de Alexandr Dmitrievich Litovchenko (1835-1890).


Adeus, quarentena! Foi isso que disse para mim mesmo, cerca de 20 dias atrás. Convocado a voltar ao serviço presencial na repartição pública, separei máscaras descartáveis, álcool gel e livros. Não tenho certeza se esses objetos serão capazes de me proteger. Intimamente, cultivei sentimentos similares aos de Raymond Rambert.  

Rambert, personagem do romance A Peste, de Albert Camus, é um jornalista que não consegue aceitar o isolamento da cidade de Orã – cenário de uma epidemia. Quer escapar a qualquer preço, inclusive pagando para que os guardas o ajudem a fugir. Como costuma acontecer nas tragédias, o destino parece conspirar contra.

Ninguém gosta de conviver com a morte. O Brasil acumula 160 mil vítimas do Covid-19. Como sou pessimista em teoria e otimista na prática, depois de alguns dias de apreensão, deixei os pensamentos mórbidos de lado (o rio Aqueronte, a barca de Caronte). Seja o que Buda quiser, sussurrei em ritmo de mantra, acreditando na luminosidade dos versos que a vida está escrevendo diariamente.

Foi bom rever os colegas, contar e ouvir histórias, voltar a ler os blogs de política (todos iguais em substância e tolices), atravessar as tardes bebendo água mineral (com gás). Na próxima semana, vou levar uma caneca e uma caixa de chá (maçã com canela). Será uma declaração explícita de que estou conseguindo (física e psiquicamente) me equilibrar nessa corda bamba.  

No mais, tudo igual. Passo o máximo do tempo possível dentro do apartamento. Ou seja, estou tentando manejar a vassoura e o pano de chão com um mínimo de competência. Não é tarefa fácil. Várias vezes, em crises próximas do desespero, pensei em solicitar o socorro da minha habilidosa Assistente para Assunto de Limpeza Doméstica (AALD). Várias vezes respirei fundo, contei até dez e ponderei os riscos. Concluí que a situação sanitária ainda não apresenta razoável segurança.   

As boas notícias são duas. Primeiro, faz mais de quatro meses que não quebro prato ou copo. Esse feito, digno dos heróis mitológicos, provavelmente vai me habilitar para o Guinness World Records. Estou pensando em me inscrever. Segundo, no supermercado fingi que não vi (e, rapidamente, olhei para o outro lado) uma caixa daqueles bombons recheados com licor – depois de oito meses sem beber uma única gota de álcool, foi fácil resistir a essa tentação.   

Em compensação, não consigo controlar a compra compulsiva de livros. É um vício – mas não quero ser curado! Sei que não terei tempo para ler todo esse oceano de papel e tinta em que estou me afogando, mas sou atraído pelas novidades. Em paralelo, quero esgotar alguns assuntos. Estou planejando escrever algo sobre os 100 anos da Semana de Arte Moderna (a pilha bibliográfica aumenta em nível exponencial). Também desenvolvo um projeto relacionado com a literatura catarinense contemporânea. Todo dia descubro um autor que não estava no radar. Isso é bom e é ruim. A diversidade sempre será bem-vinda, mas a multidão assusta.

Itaque imperavi mihi ut viverem; aliquando enim et vivere fortiter facere est. As palavras são de Sêneca, o filósofo estóico romano, e as entendo (neste momento em que não há trégua na luta contra a pandemia) como uma proposição existencial e, de certa forma, oposta ao pensamento de Raymond Rambert: Deste modo, determinei-me a viver. De fato, às vezes, viver também é para os fortes.


segunda-feira, 26 de outubro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXXII)

 

A Defenestração de Praga, 1618. Pintura de autor desconhecido


A palavra defenestrar é muito instrutiva. Pedagógica. Sua origem está relacionada com fenestra (janela, em latim). Significa, em versão coloquial, arremessar violentamente algo ou alguém pela janela.

Nos romances picarescos dos séculos XIV, XV e XVI, onde a farsa se fazia presente a todo instante, era comum o amante fugir pela janela ao perceber a chegada do marido. Também acontecia, mas com menos frequência, o cônjuge ultrajado (depois de flagrar o adultério e desistir – por algum motivo – de lavar a honra com sangue) optar por defenestrar o comborço.

A palavra comborço também não é de uso cotidiano. Designa o “outro”, o amante da esposa em relação ao marido. Foi utilizada exemplarmente no Dom Casmurro (Machado de Assis).  

Essas duas antiguidades lexicais servem de baliza para tentar entender a tempestade.

No imenso e intenso jogo de xadrez que compõem a realpolitik, as relações amorosas são citadas constantemente. No imaginário popular, o costume de trocar alianças ou juras apaixonadas é uma forma de estabelecer o ordenamento do mundo e induzir a sensação romântica de que o amor – apesar de todos os obstáculos – sempre triunfa. No entanto, a ilusão que envolve o dístico e foram felizes para sempre esbarra em entrave bastante significativo. A traição aparece como um dos ingredientes que acrescentam especial sabor à situação. O príncipe, encantado pelas delícias do poder, muitas vezes não consegue perceber os movimentos que estão sendo feitos ao seu redor. Não possui inteligência emocional para pressentir a arapuca ou as iscas que são espalhadas para fisgar os desatentos. Naufraga nas tentações (que são muitas e apresentam prazeres nunca antes cogitados em uma vida carente de fantasias). Sucumbe ao poder das “forças ocultas”.

Somente no momento em que acorda do sonho é que consegue vislumbrar os estertores de gozo do comborço. Tarde demais (como comprovam inúmeros episódios da História). Como compensação pela perda pode, em momento adequado, escrever e publicar as suas memórias ressentidas – que, apesar de explicar alguns episódios obscuros, em nada mudarão os acontecimentos.

A política é a continuação da guerra por outros meios. Uma espécie de vale-tudo para os que moram no andar de cima e uma série de humilhações para os demais figurantes do reality show. No campo de batalha, povoado por espiões e contraespiões – que vão distribuindo armadilhas e explosivos pelo terreno –, todo cuidado é pouco. Ninguém com um mínimo de conhecimento da natureza humana deve ignorar o poder profilático da paranoia.

Assim como na “vida real”, o pecado mortal da política está em confundir amor com sexo e sexo com amor. Esse equívoco, em qualquer circunstância, independente da diversão mútua, sempre resulta no empurrar um dos corpos pela janela. Raramente a vítima escapa do aniquilamento total. Observando esse desfecho à distância, a plateia delira com o espetáculo (sem entender em que medida será afetada pela troca de opressor).

Qualquer semelhança entre essa metáfora rudimentar e alguns acontecimentos recentes em um dos estados do sul do Brasil não pode ser considerada como mera coincidência. Basta comparar os episódios, descobrir quem tentou dar o golpe e fracassou, ver os sobreviventes – que, ao fim e ao cabo (ou será sargento?), tomarão conta do campinho, da bola, do jogo de camisas e, futuramente, dos destinos do árbitro.

Game over para o príncipe consorte que, nesse momento do jogo (com o perdão do trocadilho infame), está sem sorte. O comborço, ao contrário, não esconde a alegria.  


domingo, 25 de outubro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXXI)

 


Michel de Montaigne (1533-1592), Walter Benjamin (1892-1940), György Lukacs (1885-1971), Roland Barthes (1915-1980), Edward Said (1935-2003), Susan Sontag (1933-2004) e George Steiner (1929-2020) são os pensadores a que recorro toda vez que preciso de alguma ajuda ou referência. São os meus anjos da guarda de estimação. E, mais importante, nunca ignoraram as minhas preces.

Evidentemente, nem sempre os acontecimentos transcorrem com a necessária delicadeza que envolve a relação mestre e aluno. Como todo indisciplinado, que nega a dinâmica da vassalagem, conjugo turbulências, discordâncias e, da forma mais nítida possível, dúvidas. Não é o comportamento que faria sucesso nos salões literários de Paris do século XVII. Ou nas reuniões políticas contemporâneas. Não por acaso, em determinado período de minha vida, a long time ago in a galaxy far, far away, fui rotulado de inorgânico, uma subcategoria política derivada do pensamento de Antonio Gramsci (1891-1937). Provavelmente foi o melhor elogio que recebi em toda a minha vida.

Acredito que a literatura, em particular, e as discussões intelectuais, de forma geral, implicam em exercícios de inquietude. E isso resulta, principalmente, no debate incessante – não como uma forma ininterrupta de negação, mas como um exercício do método dialético. Uma aposta de que a potência se revelará através do choque entre as ideias. Ou na exaustão. O que vier primeiro.

Foi no exercício do embate entre um conceito e sua antítese que aprendi que o discurso amoroso precisa resultar em fruição, prazer e/ou gozo. Contrário à esterilidade, entendo que a ação que movimenta o diálogo precisa provocar rumores e humores, tempestades e desconforto. Felizmente, há quem discorde. O que é saudável, pois, na interpretação de um dos grandes sociólogos do século XX, Nelson Rodrigues (1912-1980), toda unanimidade é burra.

A linguagem deve se projetar no espaço social como instrumento de luta. Somente aqueles que mergulham nas entranhas das palavras e emergem da malha composta por fios conflitantes podem projetar a construção de um discurso coerente – mas que, como uma casa de vidro, deve ser transparente. Sem esse requisito será apenas mais um aparelhamento ideológico a serviço de quem está no poder. A política e o mal (seja lá o que isso for) muitas vezes se irmanam – para poder oprimir com maior intensidade.

Pensar está em oposição ao silêncio, à negação e ao compactuar com o inimigo (que precisa ser bem definido, sob o risco de gerar algum tipo de confusão entre miragens e falsos profetas, fantasmas e deslumbramentos). Por isso, independente da força das tropas invasoras, cabe denunciar – ininterruptamente – a violência e o arbítrio. Compactuar significa rendição. Por maior que possa parecer o vendaval de intolerância fascista, urge lançar âncora e estabelecer limites. Somente assim será possível sobreviver à nova Idade Média que está se desenhando no horizonte.

Cercado pelos livros escritos por aqueles que me abrigaram intelectualmente obtenho satisfação. Mas não será com livros e ideias que encontrarei a felicidade. Ou a facilidade. Aquele que sonha de olhos abertos – como convém aos céticos – sabe que, na estrada que leva ao esclarecimento, existem muitas pedras, perigos e inimigos da razão.


segunda-feira, 19 de outubro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXX)

 


Um conhecido, divagando sobre o futuro político dos municípios após as próximas eleições, fez uma comparação inusitada. Ao relacionar as dificuldades de montar uma equipe administrativa competente, soltou a pérola: É como assaltar um banco. Não importa o sucesso do empreendimento, em algum momento alguém vai delatar os outros participantes do grupo.

No primeiro instante, fiquei surpreso. Pensei que era uma piada fora de hora. Uma dessas bobagens que o tio do churrasco solta sem pensar, apenas para entreter o pessoal, antes de servir a linguiça fatiada ou a asinha de frango. Como ninguém está prestando atenção no que ele está falando, entra por um ouvido e sai pelo outro.

Depois de alguns segundos, conclui que essa fala não constitui despropósito. Nenhum político consegue reunir uma equipe eficiente e capaz de resistir às tentações do canto das sereias. O ganho fácil costuma destruir quaisquer possibilidades de construir o bem-estar público. Em algum momento, alguém decepcionará os eleitores (ou confirmará alguma suspeita).

Sergio Ramos (in memoriam) contou para algumas pessoas, em uma daquelas conversas que eram frequentes em A Sua Livraria, uma história interessante – mais tarde descobri que existe uma versão muito parecida, e com outros personagens, no Folclore Político, do Sebastião Nery.

Disse Sergio que o caso aconteceu quando seu antepassado, Nereu de Oliveira Ramos (aquele que foi Presidente da República depois de um golpe parlamentar), era Governador de Santa Catarina. Nereu nomeou um amigo para uma função importante. O sujeito pediu para declinar da honra, preferia um cargo de menor responsabilidade, e argumentou não saber se tinha forças suficientes para resistir às pressões políticas e econômicas (que naquela situação significavam quase a mesma coisa). O Governador deu-lhe um tapinha nas costas, riu e o mandou trabalhar. Seis meses depois, ouviu do funcionário uma extensa lista de queixas sobre assédios e ameaças. Como ocorre em situações similares, o dirigente político fez de conta que tudo estava ótimo e parabenizou o amigo pelo excelente desempenho na condução do problema. Passaram-se mais uns meses e Nereu recebeu um bilhete: Por favor, demita-me! Eles estão chegando ao meu preço!

Pois é, todo ser humano tem um preço. Nem sempre significa que alguma propina ou a ambição descontrolada vão contribuir para mudar a rota das boas intenções. Não se trata disso. Pode ser uma fraqueza humana, um deslize em tempo remoto, um desejo oculto, alguma questão sexual. Na selva dos negócios que costumam contaminar o serviço público, o lobo está sempre em alerta, esperando por algum descuido da vítima.

Provavelmente será por essa brecha que as forças ocultas invadirão a cidadela. Ou melhor, os cofres públicos. O pragmatismo capitalista não se interessa por sentimentalismos. O desejo de ampliar o ganho financeiro se impõe sobre qualquer questão ética. O resto é apenas o resto, inclusive a possibilidade do esquema ser descoberto mais adiante – se ocorrer, provavelmente será tarde demais.

Os céticos e/ou cínicos dizem que a doce ilusão que envolve alguns conceitos básicos da política (democracia, alternância de poder, mecanismos de controle administrativo) muitas vezes é apenas amarga. As eleições servem para comprovar ou rejeitar essa afirmação. Mas, de qualquer forma, ninguém pode negar que são tão perigosas como assaltar bancos.


domingo, 18 de outubro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXIX)

 


Fiquei alguns dias sem escrever. Poderia dizer, como Pablo Neruda disse (salvo engano) para Paulo Mendes Campos, que estava enfermo de mi mismo, mas isso seria substituir a comédia diária por um melodrama de quinta categoria. Tampouco posso alegar que o tédio e o cansaço andaram fazendo estragos no cotidiano. Foi o contrário. Esse labirinto (que chamam de vida) está repleto de novidades. Urge ficar preparado para enfrentar – a qualquer instante – o Minotauro, que costuma aparecer nas esquinas do mundo, a querer nos devorar.  

Apesar de tudo (ou talvez por isso mesmo) não estão em falta assuntos (verdadeiros ou não) para outras crônicas. Mas, antes que aconteça algum tsunami emocional, resolvi diminuir a velocidade e parar para olhar a paisagem. Motivo? Difícil explicar. Talvez os versos de Belchior forneçam uma pista: Por isso cuidado meu bem / Há perigo na esquina / Eles venceram / E o sinal está fechado prá nós.

O Brasil não é para amadores! Nem mesmo os profissionais sabem indicar o caminho da sobrevivência nessa confusão que armaram ao redor de nós. A tua piscina está cheia de ratos / Tuas ideias não correspondem aos fatos, cantava Cazuza em outros tempos – mas que não estão distantes desses que estamos vivendo. A História é pendular. Os erros são repetidos com frequência assustadora. 

Antes que esse texto ganhe destino indevido, vamos corrigir a rota. Enquanto todo mundo espera a cura do mal / E a loucura finge que isso tudo é normal / Eu finjo ter paciência. Tomo emprestadas as palavras de Lenine (o cantor, que o outro, aquele, digamos, mais revolucionário, tinha opinião diferente sobre como se comportar em tempos sombrios). Fingir paciência parece ser um ato de serenidade – ou de desespero contido (no es lo mismo, pero es igual). Isso me fez lembrar outros versos, esses de Zeca Baleiro: Eu digo / Calma alma minha / Calminha! / Você tem muito / Que aprender.

É isso! Nunca deixei de ser aluno, essa palavra que remete os distraídos (meu caso) ao mundo lunar. Incidentalmente, lembro que Cecília Meireles escreveu um livrinho chamado A Lua é do Raul. Descontando os desacertos e essa digressão absolutamente desnecessária, o anagrama Raul / luar sempre me divertiu. E ele combina comigo. Diante de muitas situações, me sinto um extraterrestre! Ou, no caso, um extralunar! De qualquer forma, para o bem ou para o mal, acredito que a existência humana implica em produzir (reproduzir) incidentes, acidentes e gargalhadas. Ou lágrimas. Mistura total de sentimentos, sabores, humores e horrores.

Enfim, o que estou tentando dizer (sem sucesso) é que estou retomando o Diário da Quarentena – mas de maneira mais lenta e nem sempre atenta às complicações do dia a dia. Como (quase) todo mundo, tenho boletos para pagar, livros para ler, músicas para escutar, filmes para assistir. Não dá para fazer tudo ao mesmo tempo. Além disso, quero – na medida do possível – tornar realidade uns dois ou três sonhos e, de vez em quando – se não for pedir muito – reunir uns quatro ou cinco amigos em uma dessas conversas que não levam a lugar algum, mas que ambicionam salvar o mundo.

domingo, 4 de outubro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXVII)

 


Estou com medo – nesta pandemia – de me transformar em um simulacro de quinta categoria do Rodrigo Hilbert. É uma possibilidade remota, convenhamos. Além de me faltar múltiplas habilidades nas tarefas do dia a dia, ninguém consegue competir com o cara – em diversos níveis.

Nunca fui ajudante de ferreiro, desconheço os caminhos da harmonização dos indivíduos com o universo, não faço ioga ou esportes, não domino a arte do origami, não sei cozinhar (ou assar pães ou fazer pudins), não casei com celebridade artística e jamais pensei em ter um quadro em programa na televisão.

Olhando dessa perspectiva, estamos a quilômetros de distância interestelar. E isso talvez seja a incontornável vantagem. Por outro lado,...

Estou adquirindo algumas habilidades, no estilo elegance avec decadence, que não podem ser desprezadas. Embora eu não seja belo, recatado e do lar, tenho me esforçado para valorizar as nuances que envolvem a economia doméstica: lavo a louça, jogo o lixo fora todos os fins de tarde, limpo o banheiro, troco a roupa de cama, faço gelatina, sei (mais ou menos) usar o micro-ondas e considero o papel-toalha uma das grandes invenções da humanidade. Tenho relativo gosto musical, jogo xadrez (provavelmente melhor do que ele!!) e conheço um pouco de literatura e cinema (o suficiente para enganar a torcida!).

Não posso usar o parâmetro fashion. Basta o sujeito aparecer na televisão e a minha autoestima diminui. Até de moletom ele fica bem vestido. Eu, em compensação, estou reduzido ao mínimo. Em casa, uso bermuda, camiseta, chinelo. São os trajes profissionais de quem está limitado fisicamente pela peste contemporânea e vivendo essa coisa anódina que chamam de home working. Só coloco calça e tênis quando preciso sair para resolver algum problema (banco, supermercado, farmácia).

Outro dia, ao olhar para o guarda-roupa aberto, constatei (em algum momento, sem saber o porquê) que deixei de usar camisas. Foi uma sensação estranha. Enfileiradas nos cabides, sem grande utilidade, elas estão se parecendo com itens em promoção nas lojas de departamentos. Imediatamente, sem pensar duas vezes, fechei a porta e me afastei daquela imagem melancólica. Provavelmente terei que me desfazer de algumas quando o Covid-19 for domesticado.

(Em tempo: preciso enviar para ele, ou para algum outro consultor televisivo da área, uma pergunta bastante pertinente na atualidade: qual a melhor marca de creme para as mãos – estou precisando. Também preciso ir ao barbeiro e à manicure.).

Voltando ao tema principal desse discurso narrado por um idiota, cheio de som e fúria, e significando nada, Rodrigo Hilbert é o protótipo do homem moderno, que foi desconstruído no tempo histórico, e ressignificado na tela da televisão. Nos momentos que a maldade atravessa o meu olhar, fico torcendo para que ele mostre algum defeito, uma iniquidade qualquer. Não precisa ser uma monstruosidade, alguma violência física ou traição conjugal. Ficaria satisfeito com algo mais modesto, uma frase escrita com erro gramatical, uma multa de trânsito ou a confissão de que gosta de chuchu. Infelizmente, os deuses não querem atender os meus pedidos. Preferem manter intacta a imagem da perfeição. É o horror, o horror!