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quarta-feira, 4 de junho de 2025

O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS (um conto de Lima Barreto)

 


A lei de Gerson (levar vantagem em tudo) é uma característica brasileira? Ninguém sabe qual pode ser a resposta correta à essa pergunta incômoda. No entanto, o jeitinho é de uso corrente e atemporal. Em determinadas circunstâncias, os escrúpulos são deixados de lado e, segundo quem defende esse proceder, todo dia nasce um ou vários otários.

Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) traduziu as bases desse questionamento no conto O homem que sabia javanês (publicado pela primeira vez em 20 de abril de 1911, no jornal Gazeta da Tarde). O protagonista da narrativa, o baiano Castelo, residindo na capital da República, estava à beira da falência (vivia fugindo de casa de pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro). A tábua de salvação surgiu através de um anúncio de jornal. O Barão de Jacuecanga estava procurando por alguém que conhecesse o javanês. O sujeito tinha recebido como herança de família um livro escrito no idioma exótico e procurava por alguém que o ensinasse a ler.

Filho, tenho esse livro aqui, escrito em javanês. Disse-me quem mo deu que ele evita desgraças e traz felicidade para quem o tem. Eu não sei nada ao certo. Em todo o caso, guarda-o; mas, se queres que o fado que me deitou o sábio oriental se cumpra, faze com que teu filho o entenda, para que sempre a nossa raça seja feliz. Foi isso que o pai do Barão ouviu quando o seu pai estava próximo da morte.

Criada a oportunidade, cabe saber aproveitá-la. Castelo foi à Biblioteca Nacional e fez uma pesquisa básica. Não encontrou muita coisa, mas o que leu foi suficiente para, em um primeiro instante, fingir que dominava o javanês. Foi contratado.

O Barão, um senhor de idade, nunca conseguiu entender o mínimo do mínimo. Então, para não se cansar com o estudo, sugeriu que Castelo traduzisse alguns trechos. Sabes bem que até hoje nada sei de javanês, mas compus umas histórias bem tolas e impingi-as ao velhote como sendo do crônicon. Como ele ouvia aquelas bobagens!...

Como agradecimento por tanto empenho, o Barão indicou, em carta ao Visconde de Caruru, que Castelo entrasse para o serviço diplomático: Fiz-lhe todas as objeções: a minha fealdade, a falta de elegância, o meu aspecto tagalo. – “Qual! – retrucava ele – Vá, menino; você sabe javanês!” Fui. Mandou-me o visconde para a Secretaria dos Estrangeiros com diversas recomendações. Foi um sucesso.

Com tal credencial, Castelo arrumou emprego e foi designado para representar o Brasil em um Congresso de Linguística. Foi inscrito na seção de tupi-guarani (língua que também não dominava). Mas, esse engano não o prejudicou. Ao contrário. Serviu para fazê-lo intocável. Todos reverenciavam aquele que sabia javanês. Inclusive, foi convidado para almoçar com o Presidente da República.

Para manter as aparências, Castelo publicou artigos em jornais e revistas especializadas – tudo isso sem saber escrever bom dia em javanês. Seguiu o procedimento bastante comum na prática de certos “intelectuais”:  primeiramente, descrevi a ilha de Java, com o auxílio de dicionários e umas poucas de geografias, e depois citei a mais não poder.           

A farsa, com o correr dos dias, foi se completando. Tudo conspirou para isso. O Barão faleceu (mas premiou Castelo, através do testamento, com uma soma em dinheiro). Ninguém no Ministério conseguiu contestar o “conhecimento” de Castelo. O medo surgiu uma única vez, quando um marinheiro foi preso. Ninguém conseguia entender o que ele falava. Chamaram interpretes, entre eles, Castelo – que se demorou o máximo possível para ir até a delegacia. Quando lá chegou, o sujeito já tinha sido liberado (graças à intervenção do cônsul holandês). E o tal marujo era javanês – uf!

Por fim, como prêmio por “saber” javanês, Castelo foi nomeado cônsul em Havana.  

      

Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922)

A crítica às indicações para certos cargos públicos, ao academicismo esotérico, ao ingresso profissional, econômico e cultural de algumas pessoas, à ignorância geral, está expressa no uso maciço da ironia em O homem que sabia javanês.   


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