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Valentin Louis George Eugène Marcel Proust |
Tenho medo de Marcel Proust (1871-1922) e Karl Ove Knausgård (n. 1968). São escritores que, ao estabelecerem ligações com o passado, escreveram vários livros com 500, 600 páginas. Nesses formidáveis exercícios memorialísticos declaram a concisão como um ato inútil. As frases se estendem na direção ao infinito, umas emendadas nas outras por essas pontes que são as vírgulas, os pontos e vírgulas, os travessões. O pensamento fica flutuando, feito nuvem que invade o azul, reverberações de uma literatura que se projeta no espaço, elimina o tempo cronológico e desconstrói tudo o que era considerado como certeza.
São escritores que forjam o novo a partir das ruínas. Nem tudo é verdade. Nem tudo é mentira. Nem tudo é ficção. Também não oferecem solução para os problemas do mundo. Nos seus livros, o autor e os personagens estão fundidos em oração profana, um aceno aos deuses pagãos. Não há lugar para o convencional. Cabe ao leitor que se arrisca nessa viagem aceitar que está pisando em areia movediça e que a qualquer descuido pode acontecer o inesperado – inclusive o tédio total.
Em A Procura do Tempo Perdido (À la recherche du temps perdu, sete volumes) e Minha Luta (Min kamp, seis volumes), as páginas estão inundadas por tinta e sentimentos diversos, um turbilhão muitas vezes inconciliável, mistura de dor e alegria. A verborragia insinua que o inesgotável que compõem essas narrativas tenta se aproximar do real – mas que, talvez por isso mesmo, se afastam do objetivo pretendido. São tempestades de palavras alimentando um deserto sem fim. São uma espécie de jogo, cartas distribuídas aleatoriamente, blefes a todo instante – confirmando que a literatura é trapaça, truques para apresentar no picadeiro do circo humano (o trapézio é a distância entre o voo e a queda).
A volúpia pelo fluído, difuso, amorfo, líquido ou qualquer outro substantivo (o esforço inútil de inventar palavras ou conceitos capazes de expressar uma folha flutuando no vento constrói algo que ainda não tem nome) se revela no momento em que as palavras escorrem pela constelação de frases, parágrafos, páginas, volumes e vai se espalhando pelo campo de visão do leitor, metamorfose das imagens.
Proust – conta a lenda – diante das provas tipográficas para correção dos seus livros, em lugar de procurar por erros ou fazer as mudanças necessárias ignorava a tarefa e incluía outras centenas de palavras, as frases amalgamadas entre as linhas, uma necessidade incontrolável de incluir mais e mais. Entendia que a narrativa estava incompleta, ou melhor, ainda está incompleta, sempre há a possibilidade de acrescentar mais algum trecho, a imaginação não possui limites.
Knausgård ignora a economia narrativa e, através das histórias familiares, produz reflexões sobre a fragilidade humana. Quer diluir as fronteiras entre a memória e a invenção, como se fosse possível recuperar o que acredita ter se perdido nas histórias pessoais que (não) se realizaram. Sonhos não envelhecem e, em tom desafinado, voltam à tona, pronunciando abracadabras que pareciam esquecidas.
Na leitura dos livros de Proust e Knausgård voltar um capítulo ou dois se faz necessário a todo instante, inevitável que algum sentido ou direção escape, fios soltos na tessitura orgânica do texto, o leitor como garimpeiro de símbolos, significados e significantes, a algaravia construindo a Torre de Babel e mandando o bom senso para o beleléu.
Ao leitor com interesse por histórias mornas, normais, formais, recomenda-se passar longe – é o que Proust e Knausgård dizem em cada palavra do que escreveram.
Karl Ove Knausgård |
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