Algumas
vezes o imaginário produz confusões. Jane Austen se mistura com Paul Auster,
Alan Pauls com Rodrigo de Paul, Paul Theroux com Paul Thomas Anderson, Sherwood
Anderson com Hans Christian Andersen, Joachim Andersen com Joachim Trier, Lars von Trier com Lars Ulrich, e as associações são infinitas, não se esgotam
nesse pensamento embaralhado por literatura, futebol, música e cinema. Tudo parece estar
– ao mesmo tempo – ao nosso lado e em uma galáxia distante. Em algumas
ocasiões, pelos mais estranhos motivos, perdemos o contato com os fatos
objetivos e não conseguimos saber quem é quem nessa história e em que mundos se
movimentam. Ou melhor, em que mundos nós (os leitores, os espectadores, os
jogadores, os músicos, os cineastas) nos movimentamos. E, não menos importante, se estamos nos deslocando
em alguma direção. Provavelmente (sem ter qualquer tipo de certeza) é o imobilismo
que nos faz ficar contemplando a paisagem. Voyeurs de nossas próprias obsessões.
Nessa
crise de identidade, vale recordar um dos romances mais divertidos de Mario
Vargas Llosa: Tia Júlia e o Escrivinhador (publicado em 1977). Em
determinado momento, o dramaturgo radiofônico Pedro Camacho perde a lucidez e
começa a misturar os enredos e os personagens das diferentes novelas que está
escrevendo e que são transmitidas diariamente pela Rádio Central. As intrigas descritas
na narrativa A, em um visível rompimento da racionalidade, começam a aparecer
na novela B; o personagem que foi morto na história C aparece lépido e faceiro
na trama D.
A
combinação de diversos ingredientes no liquidificador literário produz o
inesperado, o absurdo e o estranhamento, sem abdicar de incontáveis clichês
românticos e realistas. Ou seja, a quebra da lógica narrativa produz outras
histórias, completamente diferentes daquelas que haviam sido propostas
inicialmente. Literariamente, tudo é possível – inclusive perder o contato com
aquilo que o senso comum chama de realidade (ver A Corneta, de Leonora
Carrington).
Alguns
leitores possuem o hábito de ler vários livros de ficção simultaneamente. Talvez não tenham consciência dos riscos. O principal é perder o fio da meada. Por
exemplo, alguém pode encontrar Diadorim (Grandes Sertões: Veredas,
Guimarães Rosa) em um trisal com os gêmeos Yakub e Omar (Dois Irmãos,
Milton Hatoum) ou então descobrir que Paulo Honório (São Bernardo,
Graciliano Ramos) viajou para Pasárgada (Manuel Bandeira) para assistir o
enterro de Escobar (Dom Casmurro, Machado de Assis).
Esse
tipo de fantasia assusta – e, também, excita. A ficção especulativa (imaginar o
que poderia acontecer se os ventos ou os deuses escolhessem outra direção) acena
com o rompimento das barreiras mais elementares. Basta lembrar, entre outros
textos complicados, Complô contra a América (Philip Roth), O Homem do
Castelo Alto (Philip K. Dick) ou Back in the USSR (Fábio Fernandes).
Universos alternativos se sucedem em cascata, propondo visões que ultrapassam o
plausível. A base desse tipo de construção literária está no pacto ficcional (a
verdade existe apenas dentro da narrativa). Nada se desmancha na imaginação do
leitor – o que está sendo relatado adquire (enquanto durar a leitura) o status
de verossímil.
A
loucura está em outro departamento. É isso que nos contam Maura Lopes Cançado
em Hospício é Deus ou Afonso Henriques de Lima Barreto em Diário do
Hospício. Não são imagens agradáveis ou lúdicas. Ao contrário, mostram
faces do humano que não gostaríamos de ver. Nessa rota de colisão torna-se compreensível
(embora indesculpável) que muitas pessoas procurem se afastar da parede que
separa a lucidez da instabilidade mental (a voz de Ana Cristina Cesar
ecoando no horizonte: Te acalma, minha loucura!).
O
abismo se apresenta a todo instante. Resta decidir (se isso for possível) por
uma das duas alternativas: seguir em frente ou se afastar.