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quinta-feira, 19 de junho de 2025

O ABISMO E A LITERATURA

 


Algumas vezes o imaginário produz confusões. Jane Austen se mistura com Paul Auster, Alan Pauls com Rodrigo de Paul, Paul Theroux com Paul Thomas Anderson, Sherwood Anderson com Hans Christian Andersen, Joachim Andersen com Joachim Trier, Lars von Trier com Lars Ulrich, e as associações são infinitas, não se esgotam nesse pensamento embaralhado por literatura, futebol, música e cinema. Tudo parece estar – ao mesmo tempo – ao nosso lado e em uma galáxia distante. Em algumas ocasiões, pelos mais estranhos motivos, perdemos o contato com os fatos objetivos e não conseguimos saber quem é quem nessa história e em que mundos se movimentam. Ou melhor, em que mundos nós (os leitores, os espectadores, os jogadores, os músicos,  os cineastas) nos movimentamos. E, não menos importante, se estamos nos deslocando em alguma direção. Provavelmente (sem ter qualquer tipo de certeza) é o imobilismo que nos faz ficar contemplando a paisagem. Voyeurs de nossas próprias obsessões.

Nessa crise de identidade, vale recordar um dos romances mais divertidos de Mario Vargas Llosa: Tia Júlia e o Escrivinhador (publicado em 1977). Em determinado momento, o dramaturgo radiofônico Pedro Camacho perde a lucidez e começa a misturar os enredos e os personagens das diferentes novelas que está escrevendo e que são transmitidas diariamente pela Rádio Central. As intrigas descritas na narrativa A, em um visível rompimento da racionalidade, começam a aparecer na novela B; o personagem que foi morto na história C aparece lépido e faceiro na trama D.

A combinação de diversos ingredientes no liquidificador literário produz o inesperado, o absurdo e o estranhamento, sem abdicar de incontáveis clichês românticos e realistas. Ou seja, a quebra da lógica narrativa produz outras histórias, completamente diferentes daquelas que haviam sido propostas inicialmente. Literariamente, tudo é possível – inclusive perder o contato com aquilo que o senso comum chama de realidade (ver A Corneta, de Leonora Carrington).

Alguns leitores possuem o hábito de ler vários livros de ficção simultaneamente. Talvez não tenham consciência dos riscos. O principal é perder o fio da meada. Por exemplo, alguém pode encontrar Diadorim (Grandes Sertões: Veredas, Guimarães Rosa) em um trisal com os gêmeos Yakub e Omar (Dois Irmãos, Milton Hatoum) ou então descobrir que Paulo Honório (São Bernardo, Graciliano Ramos) viajou para Pasárgada (Manuel Bandeira) para assistir o enterro de Escobar (Dom Casmurro, Machado de Assis).

Esse tipo de fantasia assusta – e, também, excita. A ficção especulativa (imaginar o que poderia acontecer se os ventos ou os deuses escolhessem outra direção) acena com o rompimento das barreiras mais elementares. Basta lembrar, entre outros textos complicados, Complô contra a América (Philip Roth), O Homem do Castelo Alto (Philip K. Dick) ou Back in the USSR (Fábio Fernandes). Universos alternativos se sucedem em cascata, propondo visões que ultrapassam o plausível. A base desse tipo de construção literária está no pacto ficcional (a verdade existe apenas dentro da narrativa). Nada se desmancha na imaginação do leitor – o que está sendo relatado adquire (enquanto durar a leitura) o status de verossímil.

A loucura está em outro departamento. É isso que nos contam Maura Lopes Cançado em Hospício é Deus ou Afonso Henriques de Lima Barreto em Diário do Hospício. Não são imagens agradáveis ou lúdicas. Ao contrário, mostram faces do humano que não gostaríamos de ver. Nessa rota de colisão torna-se compreensível (embora indesculpável) que muitas pessoas procurem se afastar da parede que separa a lucidez da instabilidade mental (a voz de Ana Cristina Cesar ecoando no horizonte: Te acalma, minha loucura!).

O abismo se apresenta a todo instante. Resta decidir (se isso for possível) por uma das duas alternativas: seguir em frente ou se afastar.


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