Alguns livros são estranhos. Um exemplo é A Cabeça Boa, de Lilian Sais (Editora DBA, 2025). Parte de uma série de textos sobre a perda – principalmente o luto familiar –, a estrutura fragmentária (em alguns momentos, apenas uma frase) vai construindo um discurso que se aproxima das narrativas fantásticas – e que se afastam do entendimento linear dos acontecimentos narrados.
Em outro livro da autora, O Funeral da Baleia (Editora Patuá, 2021), o experimento é menos radical, mas confirma a adoção de um estilo literário que se manifesta através do uso da linguagem inventiva. Os estertores da baleia encalhada na praia são tão abruptos quanto a morte da mãe e a perda da racionalidade do pai.
A Cabeça Boa avança nessa trilha, mas não fornece atalhos. Ao contrário. Com a morte do pai, a narrativa recorta o pensamento em dezenas de pequenas peças literárias (sobrepostas como se fossem tijolos na construção de um muro) que mostram o quão impotente é aquele que não consegue deter o curso desse rio caudaloso que chamam de vida. Resta apenas a oportunidade de relatar os fatos, mas de uma maneira tal que fica definida que viver é morar na “fronteira”, no décimo terceiro andar do Edifício Baroneza, naquele prédio, situado na linha de frente de algo que não se pronuncia.
Ao leitor cabe interpretar as metáforas, somar as indefinições, imaginar o que está escondido nesse labirinto. Se isso for possível (e talvez não seja), faltam peças no quebra-cabeças, o desenho não se completa, o absurdo e o estranhamento predominam. Mesmo assim, o leitor, ao ser confrontado com situações inesperadas, onde a curiosidade predomina, isso motiva para que a leitura tenha sequência. Parte desse mecanismo encontra explicação na mistura de realidade, ficção e elementos do sobrenatural – características do realismo mágico.
São poucas as lembranças do passado, um fio condutor tênue, elemento de ligação entre a falta e a celebração da história que se esgotou na lenta passagem dos dias. Em alguns momentos, a dramaturgia que acompanha o luto se mostra presente: É tão difícil se lembrar das coisas. Há coisas que você lembra bem, claro. Mas em geral estão distantes. O pai não vai mais levar a menina para a escola, não vai mais lhe ensinar a somar ou diminuir os números das coisas ao seu redor. Esse exercício matemático está destinado ao esquecimento. Em algum momento, Lilian (a narradora) erra as somas. Então conta os próprios passos na rua. Tenta calcular quantos passos faltam para você chegar ao Baroneza. Quando chega, adormece e sonha com o pai. Esse mergulho no mundo onírico, destroços da memória, celebra a perda, reaviva o luto, e aproxima os vivos dos mortos.
Os poucos personagens da narrativa não possuem densidade. São sombras (sobras) que vão sendo diluídas na medida em que a narrativa evolui e a promessa de esclarecimento da razão existencial do texto desaparece. Em alguns trechos parecem fantasmas – figuras destinas a vagar no tempo e no espaço porque não há um lugar onde possam descansar, onde possam obter um pouco de paz.
O
nódulo no pescoço de Lilian sinaliza que a sua vida também está próxima do fim.
Talvez seja por isso que recebe a visita do homem desconhecido (que pode ser
uma projeção de seu pai); talvez esteja na hora de atravessar a linha férrea e
ver o que existe do lado de lá. Isso, meu bem, é um show de humor.
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Lilian Sais |
Obrigada pela leitura e pelos comentários. :)
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