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quinta-feira, 19 de junho de 2025

O ABISMO E A LITERATURA

 


Algumas vezes o imaginário produz confusões. Jane Austen se mistura com Paul Auster, Alan Pauls com Rodrigo de Paul, Paul Theroux com Paul Thomas Anderson, Sherwood Anderson com Hans Christian Andersen, Joachim Andersen com Joachim Trier, Lars von Trier com Lars Ulrich, e as associações são infinitas, não se esgotam nesse pensamento embaralhado por literatura, futebol, música e cinema. Tudo parece estar – ao mesmo tempo – ao nosso lado e em uma galáxia distante. Em algumas ocasiões, pelos mais estranhos motivos, perdemos o contato com os fatos objetivos e não conseguimos saber quem é quem nessa história e em que mundos se movimentam. Ou melhor, em que mundos nós (os leitores, os espectadores, os jogadores, os músicos,  os cineastas) nos movimentamos. E, não menos importante, se estamos nos deslocando em alguma direção. Provavelmente (sem ter qualquer tipo de certeza) é o imobilismo que nos faz ficar contemplando a paisagem. Voyeurs de nossas próprias obsessões.

Nessa crise de identidade, vale recordar um dos romances mais divertidos de Mario Vargas Llosa: Tia Júlia e o Escrivinhador (publicado em 1977). Em determinado momento, o dramaturgo radiofônico Pedro Camacho perde a lucidez e começa a misturar os enredos e os personagens das diferentes novelas que está escrevendo e que são transmitidas diariamente pela Rádio Central. As intrigas descritas na narrativa A, em um visível rompimento da racionalidade, começam a aparecer na novela B; o personagem que foi morto na história C aparece lépido e faceiro na trama D.

A combinação de diversos ingredientes no liquidificador literário produz o inesperado, o absurdo e o estranhamento, sem abdicar de incontáveis clichês românticos e realistas. Ou seja, a quebra da lógica narrativa produz outras histórias, completamente diferentes daquelas que haviam sido propostas inicialmente. Literariamente, tudo é possível – inclusive perder o contato com aquilo que o senso comum chama de realidade (ver A Corneta, de Leonora Carrington).

Alguns leitores possuem o hábito de ler vários livros de ficção simultaneamente. Talvez não tenham consciência dos riscos. O principal é perder o fio da meada. Por exemplo, alguém pode encontrar Diadorim (Grandes Sertões: Veredas, Guimarães Rosa) em um trisal com os gêmeos Yakub e Omar (Dois Irmãos, Milton Hatoum) ou então descobrir que Paulo Honório (São Bernardo, Graciliano Ramos) viajou para Pasárgada (Manuel Bandeira) para assistir o enterro de Escobar (Dom Casmurro, Machado de Assis).

Esse tipo de fantasia assusta – e, também, excita. A ficção especulativa (imaginar o que poderia acontecer se os ventos ou os deuses escolhessem outra direção) acena com o rompimento das barreiras mais elementares. Basta lembrar, entre outros textos complicados, Complô contra a América (Philip Roth), O Homem do Castelo Alto (Philip K. Dick) ou Back in the USSR (Fábio Fernandes). Universos alternativos se sucedem em cascata, propondo visões que ultrapassam o plausível. A base desse tipo de construção literária está no pacto ficcional (a verdade existe apenas dentro da narrativa). Nada se desmancha na imaginação do leitor – o que está sendo relatado adquire (enquanto durar a leitura) o status de verossímil.

A loucura está em outro departamento. É isso que nos contam Maura Lopes Cançado em Hospício é Deus ou Afonso Henriques de Lima Barreto em Diário do Hospício. Não são imagens agradáveis ou lúdicas. Ao contrário, mostram faces do humano que não gostaríamos de ver. Nessa rota de colisão torna-se compreensível (embora indesculpável) que muitas pessoas procurem se afastar da parede que separa a lucidez da instabilidade mental (a voz de Ana Cristina Cesar ecoando no horizonte: Te acalma, minha loucura!).

O abismo se apresenta a todo instante. Resta decidir (se isso for possível) por uma das duas alternativas: seguir em frente ou se afastar.


sexta-feira, 13 de junho de 2025

MEUS ANJOS DA GUARDA E OS INIMIGOS DA RAZÃO

 

El sueño de la razón produce monstruos.
Gravura 43 de uma série de 80. Museu de Prado, Madrid.
Francisco José de Goya y Lucientes (1746 - 1828)
                                                    

Toda vez que preciso de alguma ajuda ou referência, consulto os meus anjos da guarda de estimação: Michel de Montaigne (1533-1592), Walter Benjamin (1892-1940), György Lukacs (1885-1971), Roland Barthes (1915-1980), Edward Said (1935-2003), Susan Sontag (1933-2004) e George Steiner (1929-2020). Eles nunca ignoram as minhas preces.

Evidentemente, nem sempre os acontecimentos transcorrem com a necessária delicadeza que envolve a relação entre mestre e aluno. Como todo indisciplinado, que nega a dinâmica da vassalagem, conjugo turbulências, discordâncias e, da forma mais nítida possível, dúvidas. Não é o comportamento que faria sucesso nos salões literários de Paris do século XVII. Ou nas reuniões políticas contemporâneas. Não por acaso, em determinado período de minha vida, a long time ago in a galaxy far, far away, fui rotulado de inorgânico, uma subcategoria política derivada do pensamento de Antonio Gramsci (1891-1937). Provavelmente foi o melhor elogio que recebi em toda a minha vida.

Acredito que a literatura, em particular, e as discussões intelectuais, de forma geral, implicam em exercícios de inquietude. E isso resulta, principalmente, no debate incessante – não como uma forma ininterrupta de negação, mas como um exercício do método dialético. Uma aposta de que a potência se revelará através do choque entre as ideias – ou na exaustão. O que vier primeiro.

Foi no exercício do embate entre um conceito e sua antítese que aprendi que o discurso amoroso precisa resultar em fruição, prazer e/ou gozo. Contrário à esterilidade, entendo que a ação que movimenta o diálogo precisa provocar rumores e humores, tempestades e desconforto. Há quem discorde, o que é saudável, pois, na interpretação de um dos grandes sociólogos do século XX, Nelson Rodrigues (1912-1980), toda unanimidade é burra.

A linguagem deve se projetar no espaço social como instrumento de luta. Somente aqueles que mergulham nas entranhas das palavras e emergem da malha composta por fios conflitantes podem projetar a construção de argumentos coerentes – mas que, necessariamente, como se fosse uma casa de vidro, devem ser transparentes. Sem esse requisito será apenas mais um aparelhamento ideológico a serviço de quem está no poder. A política e o mal (seja lá o que isso for) muitas vezes se irmanam – para poder oprimir com maior intensidade.

Pensar está em oposição ao silêncio, à negação e ao compactuar com o inimigo (que precisa ser bem definido, sob o risco de gerar algum tipo de confusão entre miragens e falsos profetas, fantasmas e deslumbramentos). Por isso, independente da força das tropas inimigas, cabe denunciar – ininterruptamente – a violência e o arbítrio. Compactuar significa rendição. Por maior que possa parecer o vendaval de inspiração fascista, urge combater os intolerantes e expor as verdades desagradáveis. Somente assim será possível sobreviver à nova Idade Média que está se desenhando no horizonte.

Cercado pelos textos daqueles com quem converso frequentemente, acredito que não será somente com livros e ideias que encontrarei a felicidade. Ou a facilidade. Aquele que sonha de olhos abertos – como convém aos céticos – sabe que, na estrada que leva ao esclarecimento, existem muitas pedras, perigos, monstros e inimigos da razão.

 


segunda-feira, 9 de junho de 2025

MARCEL PROUST E KARL OVE KNAUSGÅRD

 

Valentin Louis George Eugène Marcel Proust


Tenho medo de Marcel Proust (1871-1922) e Karl Ove Knausgård (n. 1968). São escritores que, ao estabelecerem ligações com o passado, escreveram vários livros com 500, 600 páginas. Nesses formidáveis exercícios memorialísticos declaram a concisão como um ato inútil. As frases se estendem na direção ao infinito, umas emendadas nas outras por essas pontes que são as vírgulas, os pontos e vírgulas, os travessões. O pensamento fica flutuando, feito nuvem que invade o azul, reverberações de uma literatura que se projeta no espaço, elimina o tempo cronológico e desconstrói tudo o que era considerado como certeza.

São escritores que forjam o novo a partir das ruínas. Nem tudo é verdade. Nem tudo é mentira. Nem tudo é ficção. Também não oferecem solução para os problemas do mundo. Nos seus livros, o autor e os personagens estão fundidos em oração profana, um aceno aos deuses pagãos. Não há lugar para o convencional. Cabe ao leitor que se arrisca nessa viagem aceitar que está pisando em areia movediça e que a qualquer descuido pode acontecer o inesperado – inclusive o tédio total.

Em A Procura do Tempo Perdido (À la recherche du temps perdu, sete volumes) e Minha Luta (Min kamp, seis volumes), as páginas estão inundadas por tinta e sentimentos diversos, um turbilhão muitas vezes inconciliável, mistura de dor e alegria. A verborragia insinua que o inesgotável que compõem essas narrativas tenta se aproximar do real – mas que, talvez por isso mesmo, se afastam do objetivo pretendido. São tempestades de palavras alimentando um deserto sem fim. São uma espécie de jogo, cartas distribuídas aleatoriamente, blefes a todo instante – confirmando que a literatura é trapaça, truques para apresentar no picadeiro do circo humano (o trapézio é a distância entre o voo e a queda).

A volúpia pelo fluído, difuso, amorfo, líquido ou qualquer outro substantivo (o esforço inútil de inventar palavras ou conceitos capazes de expressar uma folha flutuando no vento constrói algo que ainda não tem nome) se revela no momento em que as palavras escorrem pela constelação de frases, parágrafos, páginas, volumes e vai se espalhando pelo campo de visão do leitor, metamorfose das imagens.

Proust – conta a lenda – diante das provas tipográficas para correção dos seus livros, em lugar de procurar por erros ou fazer as mudanças necessárias ignorava a tarefa e incluía outras centenas de palavras, as frases amalgamadas entre as linhas, uma necessidade incontrolável de incluir mais e mais. Entendia que a narrativa estava incompleta, ou melhor, ainda está incompleta, sempre há a possibilidade de acrescentar mais algum trecho, a imaginação não possui limites.

Knausgård ignora a economia narrativa e, através das histórias familiares, produz reflexões sobre a fragilidade humana. Quer diluir as fronteiras entre a memória e a invenção, como se fosse possível recuperar o que acredita ter se perdido nas histórias pessoais que (não) se realizaram. Sonhos não envelhecem e, em tom desafinado, voltam à tona, pronunciando abracadabras que pareciam esquecidas.

Na leitura dos livros de Proust e Knausgård voltar um capítulo ou dois se faz necessário a todo instante, inevitável que algum sentido ou direção escape, fios soltos na tessitura orgânica do texto, o leitor como garimpeiro de símbolos, significados e significantes, a algaravia construindo a Torre de Babel e mandando o bom senso para o beleléu. 

Ao leitor com interesse por histórias mornas, normais, formais, recomenda-se passar longe – é o que Proust e Knausgård dizem em cada palavra do que escreveram.   

Karl Ove Knausgård 


quarta-feira, 4 de junho de 2025

O HOMEM QUE SABIA JAVANÊS (um conto de Lima Barreto)

 


A lei de Gerson (levar vantagem em tudo) é uma característica brasileira? Ninguém sabe qual pode ser a resposta correta à essa pergunta incômoda. No entanto, o jeitinho é de uso corrente e atemporal. Em determinadas circunstâncias, os escrúpulos são deixados de lado e, segundo quem defende esse proceder, todo dia nasce um ou vários otários.

Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) traduziu as bases desse questionamento no conto O homem que sabia javanês (publicado pela primeira vez em 20 de abril de 1911, no jornal Gazeta da Tarde). O protagonista da narrativa, o baiano Castelo, residindo na capital da República, estava à beira da falência (vivia fugindo de casa de pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro). A tábua de salvação surgiu através de um anúncio de jornal. O Barão de Jacuecanga estava procurando por alguém que conhecesse o javanês. O sujeito tinha recebido como herança de família um livro escrito no idioma exótico e procurava por alguém que o ensinasse a ler.

Filho, tenho esse livro aqui, escrito em javanês. Disse-me quem mo deu que ele evita desgraças e traz felicidade para quem o tem. Eu não sei nada ao certo. Em todo o caso, guarda-o; mas, se queres que o fado que me deitou o sábio oriental se cumpra, faze com que teu filho o entenda, para que sempre a nossa raça seja feliz. Foi isso que o pai do Barão ouviu quando o seu pai estava próximo da morte.

Criada a oportunidade, cabe saber aproveitá-la. Castelo foi à Biblioteca Nacional e fez uma pesquisa básica. Não encontrou muita coisa, mas o que leu foi suficiente para, em um primeiro instante, fingir que dominava o javanês. Foi contratado.

O Barão, um senhor de idade, nunca conseguiu entender o mínimo do mínimo. Então, para não se cansar com o estudo, sugeriu que Castelo traduzisse alguns trechos. Sabes bem que até hoje nada sei de javanês, mas compus umas histórias bem tolas e impingi-as ao velhote como sendo do crônicon. Como ele ouvia aquelas bobagens!...

Como agradecimento por tanto empenho, o Barão indicou, em carta ao Visconde de Caruru, que Castelo entrasse para o serviço diplomático: Fiz-lhe todas as objeções: a minha fealdade, a falta de elegância, o meu aspecto tagalo. – “Qual! – retrucava ele – Vá, menino; você sabe javanês!” Fui. Mandou-me o visconde para a Secretaria dos Estrangeiros com diversas recomendações. Foi um sucesso.

Com tal credencial, Castelo arrumou emprego e foi designado para representar o Brasil em um Congresso de Linguística. Foi inscrito na seção de tupi-guarani (língua que também não dominava). Mas, esse engano não o prejudicou. Ao contrário. Serviu para fazê-lo intocável. Todos reverenciavam aquele que sabia javanês. Inclusive, foi convidado para almoçar com o Presidente da República.

Para manter as aparências, Castelo publicou artigos em jornais e revistas especializadas – tudo isso sem saber escrever bom dia em javanês. Seguiu o procedimento bastante comum na prática de certos “intelectuais”:  primeiramente, descrevi a ilha de Java, com o auxílio de dicionários e umas poucas de geografias, e depois citei a mais não poder.           

A farsa, com o correr dos dias, foi se completando. Tudo conspirou para isso. O Barão faleceu (mas premiou Castelo, através do testamento, com uma soma em dinheiro). Ninguém no Ministério conseguiu contestar o “conhecimento” de Castelo. O medo surgiu uma única vez, quando um marinheiro foi preso. Ninguém conseguia entender o que ele falava. Chamaram interpretes, entre eles, Castelo – que se demorou o máximo possível para ir até a delegacia. Quando lá chegou, o sujeito já tinha sido liberado (graças à intervenção do cônsul holandês). E o tal marujo era javanês – uf!

Por fim, como prêmio por “saber” javanês, Castelo foi nomeado cônsul em Havana.  

      

Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922)

A crítica às indicações para certos cargos públicos, ao academicismo esotérico, ao ingresso profissional, econômico e cultural de algumas pessoas, à ignorância geral, está expressa no uso maciço da ironia em O homem que sabia javanês.   


sexta-feira, 30 de maio de 2025

TRISTE CUÍCA

 


Aos poucos estão sendo publicadas uma série de textos produzidos durante ou depois da pandemia de Covid-19 – principalmente contos e depoimentos pessoais. São narrativas que procuram relatar o horror do confinamento, o trabalho remoto, as perdas familiares, o absurdo derivado de um suposto fim do mundo.

Pergunto a alguns amigos se escrevem ou já escreveram diários. Essa questão, proposta por Julia Wähmann, em Triste Cuíca (Editora Mapa Lab, 2024), comprovou que as respostas se dividem em dois grupos. As mulheres, sim, na adolescência ou mesmo na fase adulta. Raros são os homens que se preocupam em relatar o dia a dia. Parecem não se importar com esses eventos. Mas as urgências propostas pelos acontecimentos de 2020 (seja por pânico, seja por não ter encontrado melhor atividade na ocasião) fizeram que todos se dedicassem a relatar as banalidades que os acompanharam durante a quarentena. Ou seja, os diários se multiplicaram nesse período – com a devida correção de substituir os cadernos manuscritos pelas telas dos computadores.

Julia editou as anotações que fez durante a quarentena, mantendo o caráter coloquial da escrita que procura atender as próprias demandas ao mesmo tempo em que quer expressar questões coletivas. Infelizmente, vários trechos do livro fazem menção a algumas situações que somente possuem sentido para os envolvidos, o leitor fica a ver navios, sem saber quem é quem e ao que se referem. Mas, no geral, o livro cumpre com o seu propósito de descrever um momento crítico da vida brasileira.

Como se fosse um abraço metafórico, Julia trava interessante diálogo intertextual com Albert Camus, Fábian Casas, Maurice Blanchot, Virgínia Woolf, José Saramago, Maria Julieta e Carlos Drummond de Andrade, Annie Ernaux, Joan Didion, David Perlov, Lygia Fagundes Telles, Ana Martins Marques, Jeremy Rifkin, Noel Rosa, Wilson Batista, Rebecca Solnit, Svetlana Aleksiévitch, Rubem Braga.

Se o mundo lá fora está em ruínas, dentro do apartamento o calor humano, o afeto e a esperança são sinais de resistência – e isso se torna efetivo através das leituras, nas alusões intelectuais, nas conversas com os amigos (por e-mail, por telefone, por vídeo chamada): Bruna, Thiago, Bel, Mariana, Nonato, Guilherme, Paloma, Greg. Isolamento não significa evitar o contato com aqueles que fazem parte de nossas vidas.  

Daqui a vinte ou trinta anos, ao reler meus escritos de agora, vou saber separar os fatos da ficção? Essa proposição serve de referência para as lembranças deixadas pelo avô que Julia não conheceu. As muitas cartas e os depoimentos, inclusive quando serviu na Força Expedicionária Brasileira, contrastam os dois períodos históricos. É nesses relatos que Julia descobre que A história que me venderam quando criança era diferente. Envolvia condecorações, heróis, o País em maiúsculas. Submetidos às péssimas condições do inverno europeu, os soldados brasileiros precisaram enfrentar um inimigo melhor preparado em diversos quesitos. Aos poucos as palavras amargura e precariedade tornam-se constantes no seu relato. É na leitura desses documentos que Julia tem um insight: Nunca pensei que algumas passagens de um Diário de Campanha estariam tão próximas destes dias de quadros inesquecíveis de dor e agonia. Essa é uma das virtudes dos relatos históricos, eles servem de refletores para outras tragédias.

A pandemia passou (?!?!) e já é possível andar pelas ruas pra ver os ipês em flor. Mas, o mundo não ficou melhor, ficou diferente. Talvez seja isso que fornece substância aos versos de um samba de Noel Rosa: Parecia um boi mugindo / aquela triste cuíca / tocada pelo Laurindo. Em outro contexto, Laurindo era o apelido pejorativo do Batalhão em que o avô de Julia serviu na campanha italiana, e que se refere a outro verso de outro samba: Laurindo desceu o morro para dizer que a Praça Onze tinha acabado. Nem a Praça acabou, nem os desastres deixaram de acontecer no front da guerra (em 1945 e em 2020). Ao seu tempo, coube aos herdeiros dos sobreviventes fazer releituras e interpretações de outra operação complicada e atabalhoada (...) em que foi preciso descer o morro dos Apeninos de forma não muito correta. A maneira com que as autoridades brasileiras trataram a pandemia também foi complicada e atabalhoada – muitas mortes poderiam ter sido evitadas se as ações governamentais fossem mais eficientes, menos relapsas.   

A parte boa da escrita de diários é que ela quase sempre é inconclusiva, não precisa de uma cortina que se feche depois de um grande final. Ela apenas se esvai, sem histórias inventadas ou traumas, e sem respostas definitivas às perguntas que a despertam e a movem. Estou ótima, Greg, mas não quero escrever mais nada. Ou não quero mais escrever esta história. Só quero que ela acabe.            


Julia Wähmann também escreveu Cravos (Editora Record, 2016) e
Manual de Demissão (Editora Record, 2018), entre outros textos


quarta-feira, 21 de maio de 2025

AS HERDEIRAS

 


Lis e Erica são irmãs. Olivia e Nora são irmãs. Depois do suicídio de Carmen, a avó, as quatro mulheres recebem como herança uma casa enorme na periferia de um vilarejo em Castilla. As primas possuem afinidades – as irmãs, não.

Com esse conjunto complexo de elementos, Aixa de La Cruz construiu um romance que se concentra em algumas das sutilezas que compõem o relacionamento entre pessoas diferentes. São esses detalhes da trama que se destacam em uma narrativa que mistura narrador onisciente e monólogos interiores. Dividido em sete partes, cada uma com quatro capítulos curtos, em alguns momentos o leitor confunde as vozes narrativas – há uma certa complexidade que se soma aos poucos diálogos. Uma vez vencido esse obstáculo, a leitura se torna fluída.

Inicialmente, o texto parece propor descobrir o motivo do suicídio da avó. Poucas páginas depois, o leitor percebe que esse é um detalhe menor, uma desculpa para analisar a tensão que existe no ambiente familiar – as mulheres foram beneficiadas (ou amaldiçoadas) por algo mais do que um pedaço da casa (organismo vivo, místico, encantatório).

No tempo em que as quatro mulheres dividem o mesmo espaço físico ocorrem muitas coisas. Elas se transformam, se aproximam umas das outras, adquirem forças para enfrentar o mundo hostil (o marido tóxico, o traficante, o possível estuprador, as inúmeras contradições da convivência humana). Sem que percebam ou concordem, segredos são revelados, as crises aparecem/desaparecem, encontram acolhimento. Nessa sororidade (muitas vezes agressiva), (...) os pontos soltos se juntam sozinhos. Finalmente [se] entende onde estão, quem são e o que vai acontecer dali em diante. Não é o [desejado], mas é a única coisa que faz sentido.

No espaço externo, entre a horta e as outras casas da vila (inclusive as que estão abandonadas), o contato com a natureza prevalece. É possível que a avó ausente (embora sua presença possa ser sentida a todo instante em cada objeto, em cada peça da casa, em alguns sonhos), um pouco antes do seu encontro com a morte, como compete às pessoas que possuem o dom xamânico de entender a linguagem das plantas medicinais e/ou alucinógenas, tenha traçado (ou imaginado) o destino das quatro mulheres. Tanto mistério de um lado e tanta realidade irredutível de outro sem que os planos se comuniquem, sem que alguém possua uma chave de interpretação.

A energia que emerge a todo instante, modificando atitudes, induzindo ações, promovendo o aprendizado, de certa forma, se aproxima do sobrenatural. Aprender é recordar. E recordar é entender agora o que ignorava um instante atrás. São essas estruturas (físicas, mentais, religiosas ou imaginárias) que produzem pouco a pouco (...) [alguns] truques de sobrevivência.

Quando Olivia percebe que está triste, mas que a tristeza é uma emoção calma, conclui que prefere a tristeza à raiva. E sabe que, ontem mesmo, teria lidado com essa descoberta com raiva. Nessa mudança de postura, o ontem não existe mais porque, assim como a raiva (sentimento agressivo, próprio daqueles que preferem brigar), não se enquadra na serenidade proposta pela casa onde as quatro mulheres descobrem a importância de estar juntas e em paz. Provavelmente, Carmem aprovaria esse entendimento.

As Herdeiras (Editora DBA. Tradução de Marina Waquil) é leitura para quem tem espírito de aventura.  


Aixa de La Cruz

sexta-feira, 16 de maio de 2025

OS MENINOS ADORMECIDOS

 


A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida – SIDA/AIDS (junto com a peste bubônica e a pandemia do covid-19) estabeleceu um dos momentos em que a vida humana foi colocada em risco. Foi durante as décadas de 1980/90 que um grupo de pesquisadores (imunologistas, infectologistas, virologistas) franceses e estadunidenses iniciaram a procura de algum método para determinar as causas da doença e de que maneira a doença poderia ser controlada – em outras palavras, diminuir o número de mortes.

Foi um período doloroso da história da ciência. Milhares de pessoas foram infectadas em todo o mundo. Em um primeiro instante, predominou o estigma social (o rótulo “câncer gay” teve bastante impacto). Demorou algum tempo para que percebessem que a doença não era uma exclusividade da comunidade homossexual. Quando descobriram que o sangue era um dos vetores de transmissão, além das relações sexuais, surgiu uma mudança de entendimento – a vida de doentes que precisam de transfusão de sangue, hemofílicos e usuários de drogas (principalmente aqueles que compartilham seringas) estava em perigo.    

Em Os Meninos Adormecidos (Editora Fósforo, 2024. Tradução de Camila Boldrini), Anthony Passeron, ao relatar a história de um de seus tios, aproveita a oportunidade para traçar um histórico dessa pesquisa. Désiré, viciado em heroína, morreu aos 23 anos. Representante da jeunesse dorée francesa que foi devorada pelos acontecimentos depois de maio de 1968, cresceu sem muitas perspectivas de lutar por alguma mudança na vida pacata de quem residia em uma aldeia perdida no meio do nada. Mesmo sendo o primeiro filho de uma família de açougueiros que conseguiu um diploma universitário, em dado momento, querendo se afastar do tédio, abandonou o emprego em um cartório e foi passar algum tempo em Amsterdam (Nederland), paraíso das liberdades sexuais e alucinógenas.

Voltou infectado – e dependente químico. Trouxe junto Brigitte, a namorada (que, logo depois, ficou grávida de Émilie). O resto da história não possui mistério: pequenos roubos para poder financiar o vício, sintomas iniciais da doença, internações hospitalares em Nice, a destruição do corpo. Simultaneamente, a família também ficou enferma: a negação da mãe de Désiré sobre o caminho de autodestruição escolhido pelo filho, o julgamento moralista da comunidade, as mortes de Désiré e Brigitte – sem que ninguém pudesse fazer alguma coisa.

O ápice da tragédia acontece com a morte de Émilie, aos dez anos. Sobre o enterro da prima, Anthony Passebon escreve: Não me lembro de quase nada. Adoraria ter esquecido o pouco de que me lembro. (...) Lembro-me apenas disto, do frio seco de uma tarde de novembro e de uma massa silenciosa que desvia o olhar ao escutar os gritos de minha avó. Nós a carregamos na frente do cortejo, como um soldado ferido que trazem de volta do front. Um dia de derrota.

O trabalho insano de pesquisa científica sobre a doença, feito de avanços e recuos, nem sempre aconteceu de forma pacífica. Em alguns momentos, a equipe estadunidense não contribuiu de maneira eficiente para que houvesse progresso. De qualquer forma, foi somente em 1993 que se obteve um fio de esperança para o controle da doença. Pela primeira vez, estudos robustos confirmaram que uma associação de zidovudina com outro fármaco retarda as complicações ligadas à infecção e prolonga sensivelmente a expectativa de vida dos pacientes. Em 1995, Jacques Leibowitch inicia um estudo com cerca de vinte pacientes. A experiência, denominada “Stalingrado”, consistia em misturar AZT, ddC e ritonavir (inibidor de protease). (...) os dados das primeiras avaliações são categóricos: apesar da dureza do tratamento, observa-se na totalidade dos pacientes uma queda espetacular da carga viral. Finalmente.   

Em 2008, Françoise Barré-Sinoussi e Luc Montagnier receberam o Nobel de Medicina pela descoberta do vírus da SIDA/AIDS, pesquisa realizada no Instituto Pasteur, em Paris. Como acontece em certos momentos da história, a injustiça se fez presente: Muitas vozes se levantaram (...) por não entenderem a decisão de restringirem o prêmio a duas pessoas. Por que não houve uma atribuição mais ampla? Estavam pensando em Willy Rozenbaum, Jacques Leibowitch e Françoise Brun-Vézinet, que fizeram soar o alarme quando a doença se manifestou e que recorreram ao Instituto Pasteur; em Jean-Claude Chermann, que dirigia o laboratório no qual Françoise Barré-Sinoussi trabalhava; em David Klatzmann, que foi o primeiro a observar a ação do vírus nos linfócitos T4. Como se fosse possível diminuir o estrago, os dois laureados, na cerimônia em Estocolmo, insistiram em declarar a dimensão coletiva da descoberta.    


Anthony Passeron

   
           

quarta-feira, 14 de maio de 2025

A CABEÇA BOA

 


Alguns livros são estranhos. Um exemplo é A Cabeça Boa, de Lilian Sais (Editora DBA, 2025). Parte de uma série de textos sobre a perda – principalmente o luto familiar –, a estrutura fragmentária (em alguns momentos, apenas uma frase) vai construindo um discurso que se aproxima das narrativas fantásticas – e que se afastam do entendimento linear dos acontecimentos narrados.

Em outro livro da autora, O Funeral da Baleia (Editora Patuá, 2021), o experimento é menos radical, mas confirma a adoção de um estilo literário que se manifesta através do uso da linguagem inventiva. Os estertores da baleia encalhada na praia são tão abruptos quanto a morte da mãe e a perda da racionalidade do pai.   

A Cabeça Boa avança nessa trilha, mas não fornece atalhos. Ao contrário. Com a morte do pai, a narrativa recorta o pensamento em dezenas de pequenas peças literárias (sobrepostas como se fossem tijolos na construção de um muro) que mostram o quão impotente é aquele que não consegue deter o curso desse rio caudaloso que chamam de vida. Resta apenas a oportunidade de relatar os fatos, mas de uma maneira tal que fica definida que viver é morar na “fronteira”, no décimo terceiro andar do Edifício Baroneza, naquele prédio, situado na linha de frente de algo que não se pronuncia.

Ao leitor cabe interpretar as metáforas, somar as indefinições, imaginar o que está escondido nesse labirinto. Se isso for possível (e talvez não seja), faltam peças no quebra-cabeças, o desenho não se completa, o absurdo e o estranhamento predominam. Mesmo assim, o leitor, ao ser confrontado com situações inesperadas, onde a curiosidade predomina, isso motiva para que a leitura tenha sequência. Parte desse mecanismo encontra explicação na mistura de realidade, ficção e elementos do sobrenatural – características do realismo mágico.

São poucas as lembranças do passado, um fio condutor tênue, elemento de ligação entre a falta e a celebração da história que se esgotou na lenta passagem dos dias. Em alguns momentos, a dramaturgia que acompanha o luto se mostra presente: É tão difícil se lembrar das coisas. Há coisas que você lembra bem, claro. Mas em geral estão distantes. O pai não vai mais levar a menina para a escola, não vai mais lhe ensinar a somar ou diminuir os números das coisas ao seu redor. Esse exercício matemático está destinado ao esquecimento. Em algum momento, Lilian (a narradora) erra as somas. Então conta os próprios passos na rua. Tenta calcular quantos passos faltam para você chegar ao Baroneza. Quando chega, adormece e sonha com o pai. Esse mergulho no mundo onírico, destroços da memória, celebra a perda, reaviva o luto, e aproxima os vivos dos mortos.      

Os poucos personagens da narrativa não possuem densidade. São sombras (sobras) que vão sendo diluídas na medida em que a narrativa evolui e a promessa de esclarecimento da razão existencial do texto desaparece. Em alguns trechos parecem fantasmas – figuras destinas a vagar no tempo e no espaço porque não há um lugar onde possam descansar, onde possam obter um pouco de paz.

O nódulo no pescoço de Lilian sinaliza que a sua vida também está próxima do fim. Talvez seja por isso que recebe a visita do homem desconhecido (que pode ser uma projeção de seu pai); talvez esteja na hora de atravessar a linha férrea e ver o que existe do lado de lá. Isso, meu bem, é um show de humor.   


Lilian Sais

segunda-feira, 5 de maio de 2025

A CULPA É DO LOU REED

 


Um elogio duplo à cidade de São Paulo e ao jornalismo cultural – apesar de se concentrar no centro da cidade e na crítica musical. Menos é mais. Muitas vezes, demais. Não importa. Certas coisas estão isentas de juízos de valor. Por isso, o ideal é aumentar o som da playlist e se deixar embalar pelas aventuras de Copland (Cop, Copi, Coppie, Cooperfield), protagonista de A Culpa é do Lou Reed, romance de Jotabê Medeiros (João Batista Medeiros de Araújo) publicado em 2024 pela Editora Reformatório.

A geografia da parte central da metrópole está em primeiro plano. Entre o Edifício Copan e o Parque Antarctica, entre o Hotel Hilton, o Largo do Arouche, a Boca do Lixo, a Estação São Bento e a Galeria do Rock, parte da história da música vai sendo contada na medida em que Copland caminha pelas ruas, praças e avenidas, feito um flaneur perdido no tempo e no espaço, no dia 12 de outubro de 1988. Ele está indo assistir ao show Human Right Now!, promovido pela Anistia Internacional para comemorar os 40 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Nessa espécie de road book (celebração do deslocamento urbano), surgem em cada página do livro algumas pessoas estranhas, cada uma concentrada na própria loucura. Os personagens icônicos (pitorescos) do centro de São Paulo, o dono do sebo, a reunião de críticos musicais em uma loja de discos, os vários jornalistas extravagantes, o maestro de música clássica, “Escadinha”, o “beijoqueiro”, Patrício Bisso, alguns artistas sendo assassinados por michês – a fauna e a flora da floresta paulista se mostram diversificadas e divertidas. Um cenário que nunca mais se repetiu. Por isso, enquanto o futuro não acontece, o narrador revisa incontáveis episódios do passado glorioso. Em contrapartida, o presente não é tão auspicioso: campanha eleitoral de Erundina, o reggae (além do break, do hip hop, do rap) criando o próprio espaço musical, a venalidade das rádios (o jabaculê ditando as regras do sucesso), as boates e os bares onde todo mundo se encontra e se detesta, o aumento dos casos de aids/sida, a procura pelos paraísos perdidos. São indícios de que o leitor está diante de um roman à clef – somente aqueles que conhecem ou viveram a história musical de São Paulo conseguem ter acesso à “chave” e apreender todo o conteúdo narrado, além de descobrir quem é quem na confusão toda. Para os outros leitores, resta tentar ler as entrelinhas e rir com algumas dos episódios relatados (principalmente aqueles que são de conhecimento geral).  

Como pano de fundo, o crítico musical vive uma paixão platônica por Simone S., uma herdeira excêntrica. Esse desencontro sempre resulta em complicações emocionais para Copland e, em algumas ocasiões, hematomas na groupie (que, ao desejar fazer sexo com astros internacionais do rock, lembra Penny Lane, personagem emblemática do filme Almost Famous, Dir. Cameron Crowe, 2000).

O final do romance é melancólico e previsível. Em um mundo repleto de predadores, os deuses não costumam perdoar aqueles que esbanjam a juventude com certas bobagens – por exemplo, garantir a sobrevivência diária.

 

TRECHO ESCOLHIDO

– O problema são esses malditos intelectuais de jornal!, bradou Chumawski, sempre habitando aquela fronteira de quase-reaça, quase-gênio. Vivem decretando a morte disso, a morte daquilo, nascimento de outra bagaça. Levam a sério um monte de farsantes. Acho que até isso é culpa do Lou Reed, foi ele quem iniciou isso quando começou a dizer que ambicionava aproximar o rock da arte, fazer rock para um público adulto, andar de mãos dadas com o Delmore Schwartz. Aquela baboseira de “E se Raymond Chandler escrevesse uma letra de rock?”. O resultado é esse, essa praga de roqueiro querendo citar Rimbaud, copiando mal os versos de Blake e Yeats, imitando simbolista francês. Só pode ter sido o Lou Reed, prosseguiu Chuma, aquele maldito ordenhador de poetas suicidas!  



Jotabê Medeiros (João Batista Medeiros de Araújo).



quarta-feira, 30 de abril de 2025

LIVROS: UM DEPOIMENTO

 

Foto: Dmitri Vaz Arruda

Tenho livros espalhados por quase todas as peças do apartamento. Poderia dizer que moro em uma biblioteca. Ou que a biblioteca mora em mim. Qualquer uma das duas versões está correta.

No apartamento anterior faltava espaço. Minha mãe, quando ia me visitar, olhava para aquele oceano de papel e suspirava fundo, sem acreditar no que estava vendo. Sempre repetia que tudo aquilo (os livros, o esforço acadêmico) era um desperdício de tempo e dinheiro. E fazia questão de pontuar: toda família têm um maluco; na nossa, é você. Não tenho certeza se isso era uma ofensa ou um elogio.

Passei parte significativa de minha adolescência na Biblioteca Pública de Lages (SC). O olhar guloso passeava por enciclopédias, romances, poesia, ensaios. Naquele lugar montei o meu primeiro escritório – e isso me permitiu uma vantagem: nunca precisei levar as tarefas da escola para casa. As bases da minha educação escolar e literária foram construídas lá. Simultaneamente, quase me transformei em sombra pálida do Autodidata, personagem de A Náusea (Jean-Paul Sartre), que pretendia ler, em ordem alfabética, todo o acervo de uma biblioteca.

Com o tempo fui construindo a minha biblioteca particular. No período das vacas magras comprava uns volumes baratos da Tecnoprint e das Edições de Ouro, adaptações dos clássicos, traduções ruins. Depois, comecei a gastar o dinheiro do lanche com a coleção Grandes Sucessos, da Abril Cultural. Comprava em banca de jornal, a cada quinze dias um título novo. Ainda tenho lembranças sentimentais de Horizonte Perdido (James Hilton), O Espião que Saiu do Frio (John Le Carré), O Salário do Medo (Georges Arnaud) e O Americano Tranquilo (Graham Greene), entre tantos outros livros que me afastaram do mundo real e me mostraram que existe um tipo muito especial de beleza e deslumbramento.

Um momento único no meu apego ao mundo literário ocorreu na metade dos anos 80. Embora fosse cliente de A Sua Livraria, comprava pouco, nunca tinha dinheiro para nada. Um dia, Dona Maria Josefina Rath de Oliveira me disse a frase mágica: você tem crédito na casa, leve o que quiser e pague quando puder. Não acreditei, parecia sonho ou alucinação.

Nunca fui um bom pagador. Mas, a partir daquele instante, comecei a acumular edições de melhor qualidade. Se não havia exemplar na loja, encomendava. Demorava uma eternidade para chegar. E quando estava com o livro na mão, lia com a mesma sede de quem, perdido no deserto, encontrava um copo d’água.

No meu imaginário, os livros são objetos de sedução. Adoro o cheiro de livro novo (bibliosmia). Fico excitado com o barulho do folhear das páginas. A textura do papel promete (e entrega!) carícias inimagináveis. Livros de capa dura são fetiches capazes de mover céus e terras. A embriaguez provocada por uma boa história (ou por uma reflexão inteligente) jamais resultou em ressaca.

A literatura nunca decepciona – jamais fui capaz de dizer o mesmo sobre o mundo dos seres de sangue, carne e osso.

Sem os livros, a minha vida perderia a razão de existir.

O meu projeto de paraíso só estará completo quando, além da biblioteca, tiver um jardim e um gato (Felis silvestres catus). Como ainda não tenho intenção de morar em uma casa, vou adiando, por enquanto, esses dois acréscimos à felicidade.


sexta-feira, 25 de abril de 2025

ESTE POST PRECISOU SER REMOVIDO

 


Alguns livros não devem ser lidos em lugares públicos. As fortes emoções que transmitem exigem acolhimento e reflexão. E isso raramente pode ser exercido quando os ruídos do mundo contribuem com o ensurdecimento em algumas questões básicas. O romance Esse post precisou ser removido (Editora Rua do Sabão, 2022. Tradução: Daniel Dago), escrito pela neerlandesa Hanna Bervoets, está nessa categoria.

Kayleigh é funcionária da Hexa, uma empresa terceirizada que monitora redes sociais. Nesse trabalho, o dia a dia está revestido de massacres visuais. Ela e os seus colegas precisam decidir quais vídeos devem ser excluídos e quais podem permanecer. Raros são os momentos em que precisam tomar alguma decisão sobre gatos fofinhos tocando piano. O usual é encontrar incontáveis exemplos da crueldade humana (mutilação, agressão física e psicológica, suicídio). Estar em contato com esse ambiente insalubre gera muitas complicações, inclusive porque as regras de remoção dos vídeos nem sempre são objetivas.

Ao final de cada turno de trabalho, o estresse, o esgotamento mental, a confusão e os desentendimentos atingem níveis perigosos. Para evitar que aconteça qualquer desgraça, muitos funcionários optam por usar algum tipo de anestésico. O usual é se reunirem em algum bar e se entorpecerem com álcool, maconha ou algum outro aditivo. Mas, não é só isso. Kayleigh percebe (ignorando o que causa esse comportamento) que vários colegas de trabalho estão trilhando caminhos políticos complicados. O terraplanismo, a negação do Holocausto e as doutrinas fascistas surgem nas conversas e acrescentam novos elementos no cardápio de incoerências. As imagens reais se mostram tão abusivas quando as imagens virtuais.  

Depois que Kayleigh abandonou a empresa, um advogado, Stitic, entra em contato solicitando que ela deponha em processo que está sendo preparado contra a Hexa. Muitos dos ex-colegas de trabalho estão com depressão, paranoia e outras doenças emocionais. A possibilidade de reencontrar essas pessoas faz com que ela recuse o pedido. Diante da insistência de Stitic, Kayleigh prefere enviar por escrito um longo monólogo, onde descreve o tempo em que trabalhou monitorando vídeos.

Nessa conversa em que somente uma voz se pronuncia (Stitic atua passivamente – ele é o elemento que desencadeia o exercício verborrágico), a descrição das atrocidades que Kayleigh viu diante das telas evidenciam que qualquer pessoa com um pouco de sensibilidade não poderia continuar por muito tempo naquele emprego tóxico.  

Para complicar ainda mais, Kayleigh menciona diversos episódios de sua tumultuada vida sexual com Sigrid, uma colega de trabalho. As duas mulheres são muito diferentes e discordam em dezenas de questões, inclusive nos assuntos íntimos. Desentendimentos, brigas, esgotamento nervoso, apatia sexual – a vida pessoal como reflexo da destruição afetiva.   

Aflitivo, Esse post precisou ser removido não é um livro de leitura fácil – e tem apenas 125 páginas. No entanto, revela, através da literatura, uma das faces mais complicadas do capitalismo predatório, sendo que poucos leitores possuem maturidade para tentar entender os acontecimentos narrados. A revolução tecnológica e as redes sociais introduziram na vida dos usuários uma série de elementos sem a mínima importância, mas que causam dependência psíquica. Enquanto alguns indivíduos são escravizados pelas imagens, outros se encarregam de produzir conteúdos capazes de satisfazer as mais estranhas fantasias. O horror retroalimenta os dois lados.       

 

Hanna Bervoets


segunda-feira, 21 de abril de 2025

FUMAÇA BRANCA, FUMAÇA PRETA

 


O Papa está morto, viva o Papa! Mas, antes dos rituais fúnebres, antes do enterro, antes que todos os cardeais com direito a voto no Conclave se desloquem para Roma, urge iniciar os conchavos para eleger o sucessor de Francisco I (Jorge Mario Bergoglio). A Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana é uma entidade política – sempre foi.  E somente os tolos negam isso.     

A morte do Papa significa o fim de uma era e, consequentemente, o inicio de outra. Será inovadora ou tradicional? Ninguém arrisca um palpite, embora a tendência seja a da rotatividade de pensamentos e ações. O pastor que gostava do Evangelho de Mateus  (especificamente 25:35-40) e pregava a empatia por setores menos favorecidos da sociedade (pobres, mulheres e homossexuais), deve ter, durante o seu pontificado, criado cisões entre os inúmeros setores eclesiásticos. É possível que surja uma reação em favor de princípios mais austeros. Se isso resultará em algo bom ou ruim, somente o tempo dirá.  

O que deve ser entendido, neste instante, é que os sucessores no trono de Pedro (comando da Igreja Católica) nem sempre contribuíram para mais congraçamento entre os povos, as religiões, a moral e a ética. A história do Papado está repleta de indivíduos que, por uma razão ou outra, se mostraram contrários às Escrituras. A ambição não possui limites e precisamos entender que aquele que ocupa o cargo é, sobretudo, humano.

Literariamente, dois livros (e suas versões cinematográficas), As Sandálias do Pescador (Morris West) e Conclave (Robert Harris) retratam a luta intestina pelo poder de forma pouco auspiciosa. São muitas as questões em jogo. A ideia globalista de eleger um representante do terceiro mundo entra em choque com o isolacionismo europeu (italiano, principalmente). A corrente reformista costuma se contrapor aos tradicionalistas (que são contra o ingresso das mulheres no serviço religioso e negam o direito ao casamento de pessoas do mesmo sexo). Os que acreditam na acumulação de riquezas se opõem aos de inspiração franciscana. Além disso, as questões pessoais (rivalidades, cobiças e fraquezas) costumam ser um ingrediente bastante forte na disputa pelo papado.

Recentemente, o atual presidente dos Estados Unidos manifestou interesse estratégico no Vaticano, tanto que indicou um crítico do Papa Francisco, Brian Burch (cofundador do grupo reacionário CatholicVote), como representante estadunidense. A manobra teve resposta imediata com a nomeação do Cardeal Robert McElroy como arcebispo de Washington – um defensor dos imigrantes e crítico do primeiro governo do republicano. Resta saber se essa rusga vai influenciar na escolha do novo Papa.  

De qualquer forma, convém observar que vice-presidente de Estados Unidos, James David Vance, que é católico, encontrou-se com o Papa um dia antes de seu falecimento. Francisco manifestou, mais uma vez, em alto e bom som, o descontentamento com a política de deportação massiva de imigrantes e pediu respeito pela dignidade daqueles que deixaram seus locais de origem para construir uma vida melhor em terras estadunidenses. Também, em recado muito específico, o Papa Francisco, na mensagem de Páscoa, conhecida como a benção Urbi et Orbi, pediu paz para as áreas de conflito (Gaza e Ucrânia, especificamente), locais onde as potências políticas costumam desprezar as questões humanitárias.

É difícil saber que rumos a Igreja Católica vai seguir a partir de agora. Quando a fumaça branca surgir na chaminé da Capela Sistina o mundo terá que enfrentar o futuro. Ao conservador Bento XVI (Joseph Aloisius Ratzinger) sucedeu o progressista (com reservas) Francisco I (Jorge Mario Bergoglio). Ninguém esperava por essa surpresa. Talvez tenhamos outra. Se Deus quiser.


Cena do filme Conclave (Dir. Edward Berger, 2024)


sexta-feira, 18 de abril de 2025

A FÁBRICA

 


A fábrica (e suas instalações, que se parecem com um imenso shopping center) é uma prisão sem grades – ninguém está impedido de ir e vir, mas algum tipo de atração impede que os funcionários se distanciem. Oferece emprego para o resto da vida, embora não seja possível saber o que é produzido pelo complexo industrial.

Situada em uma região imensa, um rio atravessa as instalações e, logo depois, desemboca no mar. Na região próxima da ponte existem muitas aves e incontáveis roedores (nutrias, também conhecidos como ratões-do-banhado) – são parte da paisagem. Ninguém fica perturbado com a presença desses animais, ninguém adota alguma ação para afastá-los das proximidades da fábrica.

No entendimento de todos os funcionários a rotina garante o bom funcionamento da empresa. Ninguém se queixa do cansaço, ninguém fica estressado. É o contrário, a leveza predomina. Todos parecem estar anestesiados, sem qualquer vontade de romper com a inércia. O único que mostra alguma inquietação com essa tranquilidade é o biólogo Yoshio Furufue (que deveria implantar um sistema paisagístico nas sacadas, mas que, com o passar do tempo, somente se ocupa em catalogar musgos e coordenar visitas estudantis à fábrica). Um idoso e seu neto (Hikaru Samukawa) despertaram nele a sensação de que algo não estava bem encaixado na situação. Mas, essa impressão vai se dissolvendo na medida em que o tempo vai passando. Ficou empregado da fábrica por quinze anos.      

Os irmãos Ushiyama trabalham em diferentes setores ligados à produção e destruição gráfica. Ele faz revisão e correções em documentos; ela trabalha com uma trituradora de documentos. Eles nunca conversam dentro da fábrica. Parecem desconhecer um ao outro (mesmo na ocasião em que Yoshiko percebe que o irmão também está trabalhando na fábrica). É um dos vários momentos de estranhamento. No entanto, os dois se encontram em casa ou em um restaurante. A namorada do irmão, funcionária de uma agência de colocação de pessoal terceirizado, aparece rapidamente na narrativa e não desperta a simpatia de Yoshiko: o ódio que até agora eu evitara sentir por ela de súbito aflorou. Esse é um dos instantes raros em que os sentimentos adquirem algum relevo.

O romance A fábrica, de Hiroko Oyamada (Editora Todavia, 2025. Tradução de Jefferson José Teixeira), está estruturado no realismo e, quase imperceptivelmente, desliza para o fantástico. Para que esse estratagema funcione, nada se mostra fora da ordem. Um dos mecanismos utilizados para distrair a atenção do leitor está na forma narrativa. O narrador se divide a cada capítulo: entre a primeira e a terceira pessoa há um ajuste para que cada um dos três protagonistas ofereça depoimentos pessoais sobre o trabalho. São os eventos cotidianos e suas variações que ocupam a parte central do romance. Raras são as cenas que relatam algo fora do ambiente de trabalho. É como se os personagens não conseguissem romper as paredes que separam a fábrica do mundo exterior.

No momento em que o trivial parece predominar, o fantástico aparece de uma maneira muito particular e fornece sentido para uma narrativa que tem traços kafkanianos: seja pelo insólito, seja pelo desfecho.


Hiroko Oyamada