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quinta-feira, 25 de julho de 2024

VOU TE RECEITAR UM GATO

 


Raramente leio livros bobinhos. Preconceituoso, prefiro livros “sérios” (seja lá o que isso for). Sim, isso é uma confissão. Sim, isso é uma forma desajeitada de dizer que li – com centenas de restrições – um desses best-sellers de ocasião. Foi uma leitura rápida, sem grandes dificuldades.

Por que fiz isso? Gosto de gatos. Eles são poemas ambulantes, como escreveu alguém, em algum lugar. E só não os tenho em minha companhia porque moro em apartamento e não quero vê-los aprisionados em espaço inadequado para qualquer animal (humanos, inclusive). Mas, se morasse em alguma casa, provavelmente teria um ou dois gatos.   

Vou te receitar um gato, de Ishida Syou (Editora Intrínseca, 2024), reúne elementos do fantasmagórico e da antropomorfia (animais que adquirem características humanas). Isso acontece para, digamos, ajudar aqueles estão com dificuldade para viver em uma sociedade competitiva e que exige resultados incessantes. Em síntese: mais um livro que aposta no que, contemporaneamente, chamam de literatura de cura.

Pessoas com algum tipo de problema psicológico, seguindo a indicação de um conhecido de um conhecido de um conhecido (ou seja, a referência é sempre obscura), procuram auxílio em uma clínica psiquiátrica localizada em um edifício no final de um beco escuro de Kyoto. É um lugar de difícil acesso e que aparenta ser perigoso. Mas isso não se apresenta como obstáculo para quem está deprimido ou precisa de algum estímulo para continuar existindo. Todos procuram por algum alívio. Os clientes são atendidos por um jovem médico e que, mesmo sem entender a profundidade das queixas dos pacientes, encerra a conversa com a seguinte frase: Vou te receitar um gato.

Ter um gato se torna a panaceia ideal para resolver qualquer coisa: problemas no emprego, ausência de humor, discordância entre mãe e filha, conflitos entre namorados, irritação com empregados, estímulo para vencer questões que não foram resolvidas no passado. Não importa a dificuldade a ser superada, gatos são a solução. Aparentemente, a única.

Da metade do livro em diante, quando o elemento gótico se torna mais visível, surge um pano de fundo melancólico e atemorizante. Um criador de animais não autorizado pelas autoridades japonesas, prestes a ser preso, abandona o local onde estavam vivendo os bichos. Muitos morrem. São os “espíritos” de dois desses gatos (o médico e a sua secretária) que voltam para cumprir uma missão terrena: auxiliar aqueles que se mostram desajustados com o mundo que os cerca.

Os cinco capítulos do livro abordam histórias e personagens diferentes. Como compete a este tipo de literatura, que mistura o ambiente onírico com traços religiosos, tudo termina bem. Ou seja, as dificuldades são superadas e o mundo volta a ser "um lugar repleto de paz e amor".   

Vou te receitar um gato é um romance fofinho (no pior sentido) e que encontra o publico ideal nos adeptos da ailurofilia (do grego aílouros + filia, gostar de gatos). Os outros leitores provavelmente vão comprar o livro para distribuir em grupos de amigo secreto ou como presente para algum parente que está de aniversário. Mais do que isso é exagero.   


Ishida Syou


segunda-feira, 22 de julho de 2024

TODA A GRÉCIA ANTIGA EM UM PAPO DE ELEVADOR

 


Um arqueólogo preso no elevador junto com outra pessoa (inominada). Enquanto não chega o socorro, eles conversam sobre a formação histórica da Grécia. Usando parâmetros e conceitos didáticos, o narrador parece estar em sala de aula. De certa forma, é isso o que acontece – em forma de texto literário. O aluno é o leitor.

Partindo dos primórdios da civilização europeia e percorrendo, com certa rapidez, toda a formação da identidade grega até o momento em que ocorreu o esfacelamento do Império Romano, o livro fornece um panorama objetivo de uma das regiões míticas da humanidade. Essa exposição, que tem a sua estrutura sustentada no diálogo, usa a arqueologia como farol do esclarecimento.

A ideia de que o arqueólogo é aquela pessoa que fica escovando algum fóssil com paciência e afeto está muito longe de caracterizar o exercício profissional. Henry Walton Jones Júnior (mais conhecido como Indiana Jones), que percorre o mundo protagonizando aventuras mirabolantes, também não é modelo. O exercício profissional não é tão pacato, nem tão agitado  embora encerre algumas dificuldades: desmoronamentos, doenças raras (causadas por fungos, por exemplo), frustrações e falta de financiamento para pesquisa científica. 

Como toda profissão, a arqueologia tem características singulares, mas ela não existiria se não contasse com o auxílio das ciências sociais (geografia, história, sociologia, antropologia, etc.). Com a ajuda desse conjunto de referências, a análise do material encontrado em determinadas áreas possibilita a identificação (muitas vezes, parcial) histórica do material encontrado em escavações ou em áreas de pesquisa.  

Vasos de cerâmica, joias, armas, móveis, construções em ruinas – todos esses objetos se comunicam com o presente e, de certa forma, querem diminuir as distâncias temporais que o tempo soterrou através de sedimentos irregulares (“estratos”), erupções vulcânicas ou a violência que acompanha as guerras. Estejam enterradas ou escondidas, essas peças (orgânicas e inorgânicas) constituem informações valiosas sobre o passado e precisam ser interpretadas como documentos de uma época, como registros de um tempo distante – mas que está dialogando, de forma incessante, com o presente.            

Sem insistir no triunfalismo bélico (que é uma das formas de contar a História), o arqueólogo Theodōros Papakōstas, em Toda a Grécia antiga em um papo de elevador, abre uma janela para uma nova compreensão das civilizações que existiram na península helênica. Essa aproximação indica uma posição pouco divulgada: o passado não está esperando por descobertas “acidentais”. Ou seja, a arqueologia é uma disciplina que está em constante confronto com o passado e com a história – e quer acrescentar novas camadas ao conhecimento.  

A história da Grécia antiga, que reuniu personagens significativos como Homero, Ameinocles, Sócrates, Platão, Aristóteles, Xenofonte, Sólon, Temistócles, Clístenes, Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Alexandre III, entre outros, constitui um dos pontos primordiais da civilização ocidental. Enquanto tribos bárbaras devastavam o norte e o centro da Europa, o mundo helênico respirava a democracia e resistia – heroicamente – às muitas tentativas de invasão ou anexação aos impérios que estavam se formando (ou se desintegrando) no continente e nas regiões que circundam o mar Mediterrâneo.    

 

Theodōros Papakōstas


sexta-feira, 19 de julho de 2024

CATEDRAIS


 

Um dos contos de Raymond Carver (1938-1988), Catedral, tem como enredo a visita de um homem com deficiência visual, Robert, a uma antiga colega de trabalho. O marido dela não se sente confortável, mas tenta disfarçar o desagrado. Em algum momento da noite, os dois homens assistem na televisão um documentário sobre igrejas europeias. O cego propõe um jogo: desenhar uma catedral. Com ajuda da mão daquele que possui a visão, os dois conseguem compor uma imagem. Ao fornecer visualização para a experiencia cooperativa, Carver indica a superação da lógica individualista como um caminho menos árduo.

O corpo de Ana Sardá, dezessete anos, é encontrado esquartejado e queimado em um terreno baldio de Adrogué (região metropolitana de Buenos Aires). Trinta anos depois, não há explicação para essa situação. Partindo desses dois elementos narrativos, e inspirada pelo conto de Raymond Carver, Claudia Piñeiro escreveu o romance Catedrais (Primavera Editorial, 2024).     

Catedrais é um desses livros que, lá pela metade, o leitor percebe as turbulências que estão prestes a ser reveladas. Mas isso não é impedimento para abandonar a leitura. Ao contrário. É necessário confirmar o que está sob suspeição. Além disso, a divisão narrativa na voz de sete personagens (Lia, Mateo, Marcela, Elmer, Julián, Carmen e Alfredo) vai acrescentando detalhes de forma homeopática. O que, de certa forma, antecipa o desfecho. Mesmo assim, o olhar seccionado de cada um dos participantes, como se fossem peças de um quebra-cabeças, contribui para que a imagem somente se complete nas últimas páginas do livro.

A personagem base da narrativa, Lia, é dona de uma livraria em Santiago de Compostela. Movida pela tristeza, atravessa o Oceano Atlântico logo depois da morte de Ana, se instala em Espanha e abandona as raízes familiares. Esporadicamente, escreve para o pai. Mas faz questão de manter distância da irmã mais velha, Carmen, que considera arrogante e tóxica, e da mãe, Dolores, uma mulher amarga e que sempre esteve ausente das questões mais importantes da vida de suas três filhas.

Em todo o texto, existe uma discussão envolvendo a vida privada e a vida social. Principalmente naqueles momentos em que a hipocrisia alimenta a manutenção das aparências e a defesa da moral e dos bons costumes. Em determinado momento, Carmen expõe esse projeto em uma frase: ... o horror é o preço necessário para proteger um bem maior.

Às vezes, as perguntas são muitas e não basta apenas se perguntar quem matou e por quê, comenta Elmar, o técnico em criminalística que fez o laudo sobre a morte de Ana – e que, trinta anos depois, é contratado por Alfredo para desvendar o passado. É ele (mantendo a necessária distância emocional) quem esclarece parte dos acontecimentos. 

Descontadas as incontornáveis divagações que envolvem a trama romanesca, o livro se desenvolve em torno do pulsar da morte de Ana (que continua presente, seja como lembrança, seja como trauma). Simultaneamente, a narrativa quer mostrar uma das maneiras como algumas pessoas são empurradas para situações que, em algum momento, se tornam incontroláveis. A toda ação corresponde um desacerto.    

Há lugares onde é mais difícil sobreviver: em um deserto, em uma ilha desabitada, no alto de uma montanha, em Marte, em um país em guerra, na selva. Com a minha família, desabafa Mateo, filho de Carmen e Julián, e que, a partir de determinado momento, se torna um dos personagens centrais do drama. Isso acontece porque ele foge dos pais e vai encontrar a tia. É em Santiago de Compostela, com a mão de Lia sobre a sua, que desenhará (metaforicamente) a sua catedral.

Se alguns leitores imaginarem que Catedrais é uma espécie de romance policial, cabe esclarecer o engano. Trata-se de um estudo psicológico sobre os mecanismos que envolvem a estrutura familiar, as rupturas da fraternidade, a violência contra a mulher e os males causados pelo fanatismo religioso. E talvez seja a resposta para uma pergunta contundente: É importante saber por que sofremos o que sofremos?


segunda-feira, 24 de junho de 2024

AMÉRICA LATINA – LADO B

 


Existem livros de História (com maiúsculo) e livros de fofoca histórica. América Latina  Lado B, escrito pelo jornalista Ariel Palacios, pertence ao segundo tipo. E precisa ser lido como tal. Inclusive porque alguns fatos citados carecem de comprovação. Entre a verdade e a lenda, publique-se a lenda – mandam as regras do bom jornalismo.  

Ao reunir uma série de episódios pitorescos, muitas vezes grotescos, que aconteceram nos países de língua latina, Palacios confeccionou um catálogo de anedotas. Não há menção aos descalabros que aconteceram em Brasil, Estados Unidos, Canadá e Guiana Francesa. Uma das desculpas é que não são áreas de colonização espanhola. No entanto, esse critério duvidoso esbarra em algumas exceções: Suriname (colonizado por Holanda); Haiti (colonizado por França); Guiana (colonizado por Inglaterra). Outra complicação está na América Central. Vários países foram compactados em um único capítulo, como se não houvessem (ou fossem desconhecidos para o autor) eventos capazes de chamar a atenção dos leitores. O que, obviamente, não é verdade.

Palacios abre o livro citando o enterro solene de uma perna do general Antonio de Padua María Severino Lópes de Santa Anna y Pérez de Lébron, que foi presidente do México onze vezes entre 1833 e 1855. Simbolicamente, esse episódio sinaliza as muitas perdas causadas por conflitos estúpidos, ditaduras intermináveis e corrupção sem limites. É como se os corpos (dos indivíduos, dos Estados) fossem devorados em doses homeopáticas pelos deuses incas, maias e astecas – que decretaram vingança contra os invasores europeus e seus descendentes.

Há de tudo um pouco e para todos os gostos: golpes de Estado, cenas de tortura explicita, parlamentares que mudam de lado de acordo com interesses pessoais, desvio de dinheiro público, mandatos que foram derrubados em poucos dias, muito folclore e esposas ambiciosas. No liquidificador político que tritura constituições e opositores do governo de plantão, o horror é servido como se fosse uma iguaria. Pelo menos é isso o que propõe o livro de Ariel Palacios.

Evidentemente, nem tudo é terrível. O patético também se faz presente. Um desses momentos gloriosos está na história da delegação de Honduras que foi à Europa comprar uma estátua de um dos heróis da pátria. Gastaram a dotação nos cabarés de Paris e, com o pouco que sobrou, compraram um monumento aleatório (que estava abandonado em um depósito). Outra façanha foi protagonizada pelos militares argentinos tentando esconder o cadáver embalsamado de Eva Perón (conforme relata o excelente romance Santa Evita, do Tomás Eloy Martínez). O ex-presidente chileno Sebastián Piñera, que ficou conhecido por dizer asneiras (as Piñericosas), rivaliza com o atual mandatário argentino, Javier Milei, que costuma se aconselhar sobre os assuntos mais importantes do Estado com os clones de seu cachorro favorito.

Episódios como o Bananagate (Honduras, 1975), a Guerra do Futebol (Honduras e El Salvador, 1970), a Guerra do Pastel (México e França, 1838), a Guerra das Malvinas/Falklands (Argentina e Inglaterra, 1982) e a tentativa boliviana de invadir a Inglaterra, em 1870, contribuíram na elaboração do enredo da ópera bufa que é encenada diariamente no continente americano. 

Em governos que produziram milhares de presos, desaparecidos e mortos cabe destacar personagens como Nayib Bukele (El Salvador), Daniel Ortega (Nicarágua), Alberto Fujimori (Peru), Augusto Pinochet (Chile), Fulgêncio Batista (Cuba), Anastasio Somoza (Nicarágua), Manuel Noriega (Panamá) Rafael Trujillo (República Dominicana), François Duvelier (Haiti), Juan Domingos Perón (Argentina) e Hugo Chaves (Venezuela), entre outros. Nunca faltou na América Latrina generais golpistas financiados por empresas multinacionais ou pelo governo do norte do continente, sempre interessado em implantar a democracia entre os bárbaros.     

A América, se não é, parece ficção. América Latina – Lado B produz um gosto amargo na boca do leitor. É sempre desagradável ver a nossa verdadeira face.

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Post Scriptum: impressiona a quantidade de páginas que Ariel Palacios dedicou à Venezuela (40), relacionando fofocas sem a mínima importância para entender a questão política venezuelana. Parece ser um caso pessoal.   


terça-feira, 18 de junho de 2024

VELHOS

 


A velhice é território maldito. A consciência de que a vida está se extinguindo causa danos irreversíveis. Nem todos os atingidos por essa fatalidade reagem de maneira satisfatória. Os herdeiros são os primeiros que enlouquecem.

Muitas histórias podem ser contadas a partir da velhice. As mais banais costumam relacionar essa fase da vida com a experiência, a generosidade e a submissão. Simultaneamente, todos os seres humanos costumam fantasiar pais e mães, tias e tios, avós e avôs como pessoas sem máculas, sem defeitos, exemplos de bondade e carinho.  Na vida “real”, nem sempre é assim. A idade cronológica não costuma eliminar os defeitos, as idiossincrasias e os desvios de caráter. Algumas pessoas ficam velhos antes de ter adquirido a sabedoria, como disse um personagem de Rei Lear.

A idade está relacionada com centenas de doenças, complicações amorosas, diversos graus de violência, incontáveis acidentes, múltiplas decepções. Quando se alcança a melhor idade (que é a forma com que os cínicos definem a velhice), resta viver os últimos dias com a aposentaria ridícula, algumas histórias amargas, milhares de ressentimentos e a solidão – protagonizada pelo abandono parental.  

Foi com o propósito de mapear algumas situações relacionadas com a decomposição física e intelectual de pessoas com mais de 65 anos que Alê Motta escreveu os 30 contos curtos que compõem Velhos (São Paulo: Reformatório, 2020). Algumas dessas histórias são tristes porque insinuam que o isolamento afetivo tem parentesco com a morte. Em paralelo, há outras situações e outros sentimentos. A personagem que se arruma para ir ao shopping e conversar com qualquer desconhecido ilustra um movimento de resistência: Só volto para casa quando me sinto feliz.





Quem tem alguma afinidade com o tema provavelmente vai se lembrar de Memento Mori (São Paulo: Companhia das Letras, 2001), o estranho e engraçado romance de Muriel Sparks. Nesse livro, os personagens (quase todos na faixa dos 70, 80 anos) se recusam a ficar esperando pelo momento em que tudo termina. Preferem se comportar como adolescentes mal-educados. Na primeira oportunidade mentem, traem, roubam e tentam machucar uns aos outros. Se não estivessem tão perto da morte, poder-se-ia dizer que estão lutando pela vida. Desesperadamente.

Os personagens de Alê Motta não são tão radicais. Eles estão em outra escala. As inquietudes são mais sutis. Por isso, muitas das situações não apresentam novidades. A ideia é facilitar a compreensão e permitir que o leitor reconheça nessas histórias o caso de algum parente ou vizinho – ou, talvez, em mergulho crítico, projete o próprio futuro.

Diversos contos apresentam o humor como uma espécie de válvula de escape para o traumático. Isso não quer dizer que os personagens são edulcorados e que há a ambição de que tudo termine bem. Ao contrário, diversas narrativas revelam a desesperança, o passado opressor e o grotesco. A crueldade dos parentes (filhos, sobrinhos, genros e noras) aparece em cena com frequência. Sentimentos são moídos rapidamente por interesses pouco claros. Não há remédio que cure mágoas e dores.

O que está explicito em Velhos é relativamente simples e pode, salvaguardando as exceções, ser resumido no desfecho de um dos melhores contos do livro: não tenho mais paciência para esse papel de velhinho bom. Qualquer hora eu toco o terror nessa casa.