Páginas

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

ACONTECEU EM OUTRO CARNAVAL

 


Conforme consta no Boletim de Ocorrência, registrado na delegacia de polícia de Rio das Caveiras, Adalberto Medeiros Silva e Souza, conhecido como Betão da Penha, e sua companheira, Sônia Maria de Almeida, vulgo Soninha Alicate, decidiram celebrar o carnaval nas proximidades do Capão dos Brutos, cerca de 10 km da sede do município.

 

No momento de maior euforia (Allah-la-ô, ô-ô-ô, ô-ô-ô / Mas que calor, ô-ô-ô, ô-ô-ô) perceberam um som distante. Em poucos minutos o barulho foi ficando mais alto e mais próximo. Essa algaravia destruiu o clima romântico do encontro e, para bem de todos e felicidade geral da nação, o casal resolveu fazer um intervalo nas folias de Momo.

 

Tudo que está ruim se transforma em desastre – é o que diz a sabedoria popular.

 

Além de qualquer explicação racional, uma procissão religiosa estava se aproximando. Alguns dos devotos de Nossa Senhora dos Prazeres resolveram marchar pelos campos como uma forma de expiar os pecados do mundo. Numa época do ano em que a esbórnia, a devassidão e o pecado costumam corromper as almas fracas, cabia aos que possuem fé se afastar das tentações da carne e alimentar a existência humana com bons sentimentos, louvores ao Senhor e muita penitência.

 

Betão e Soninha, que estavam em trajes de Adão e Eva, por força das circunstâncias, precisaram, rapidamente, vestir outra fantasia carnavalesca: a de cidadãos respeitáveis, pagadores de impostos e tementes a Deus.

 

Na frente do séquito, junto com o Padre Janjão Silvestre, com o terço em uma das mãos e a bíblia na outra, estavam algumas das mulheres mais assíduas das atividades paroquiais. A mais entusiasmada era Bernadete Avelar, a Déte Fofoca, que não economizava energia ao cantar os hinos religiosos. Com os olhos em êxtase, deslumbramento e enlevo, parecia estar prestes a alugar um lugar no céu, ou, se assim fossem os desígnios divinos, no limbo celestial.

 

Foi constrangedor ver aqueles dois sem-vergonhas, fazendo coisas indecentes ao ar livre, e eles nem são casados, disse a depoente, quando lhe foi perguntado o porquê de tamanha fúria. Diante de tanto descalabro, alguém precisava fazer alguma coisa, o senhor não concorda?, perguntou a ilustre Filha de Maria ao delegado.

 

Calado estava, calado ficou o diligente defensor da ordem e da segurança pública. Mas, fez sinal para que o escrivão deixasse entrar outra testemunha. Depois de oferecer uma xícara de café para o padre, a autoridade ouviu atentamente o relato sobre os acontecimentos subsequentes.

 

Quando o círio se aproximou do casal, os encontrou comportados, porém assustados. Indagados sobre o que estavam fazendo ali, responderam que estavam procurando por um lugar onde pudessem encontrar um pouco de paz, onde os sentimentos mais sublimes não fossem interrompidos pelo barulho da cidade ou das coisas mundanas. Também declararam que estavam em um retiro espiritual.

 

Obviamente, esse lero-lero não convenceu ninguém. E, pior, irritou Déte Fofoca – que, depois de colher um pouco de urtiga, aroeira-brava e coroa-de-cristo, se aproximou do casal e fez um discurso sobre a devassidão que estava corroendo os valores mais notáveis da tradicional família brasileira. Não satisfeita, esfregou os ramos das plantas nos rostos do casal de depravados.

 

Entre gritos de dor e palavras que não devem ser pronunciadas na frente de crianças, o caso, obviamente, teve o seu desfecho no pronto-socorro e, logo depois, na delegacia. Déte Fofoca, acusada de agressão por motivo fútil, disse ao delegado que sabia que tinha errado, mas que, como defensora da fé cristã, não podia deixar de se sentir indignada com a ruptura dos valores que considerava importantes. E reiterou, entre suspiros e lágrimas, que se confessava toda semana e que, ao contrario de uns e outros, tinha Jesus no coração. Finalizou o seu depoimento perguntando: o que será da educação dos nossos filhos se não for possível protegê-los da promiscuidade?

 

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

A VISITA

 


Deixei a janela do escritório aberta durante boa parte do dia. No final da tarde, ao fechá-la, descobri que não estava sozinho. Tinha uma joaninha grudada na cortina. Não tenho conhecimentos entomológicos para definir a taxonomia da minha visitante. Segundo os especialistas, há seis mil espécies no mundo, distribuídas em 350 gêneros, distinguíveis por padrões de cores e pintas, além de diversas características. E, sejamos objetivos, esse costume de querer conhecer detalhes da família daqueles que frequentam a nossa casa está ultrapassado.

A presença do coleóptero exigia alguma atitude. Em um primeiro momento, imaginei que poderia fazer as honras da casa e convidar a visita para o chá (e uns biscoitos amanteigados). Mas, logo depois de consultar o Google, descobri que esses animais se alimentam basicamente de ovos e larvas de outros insetos – e essas guloseimas eu não tinha para oferecer. Concluí que colocá-lo de volta na natureza provavelmente seria o mais apropriado. Isso precisaria ser feito com tato e discrição. A minha intenção nunca foi a de parecer rude ou mal-educado. A senhora minha mãe jamais me perdoaria se eu demonstrasse comportamento agressivo com quem estava tentando ser meu hóspede.

Antes de resolver o impasse, pensei em fotografar a joaninha, talvez uma selfie de recordação para a posteridade. Em seguida, faria uma postagem no Instagram ou no Facebook. Foi um pensamento insensato e que se esvaiu rapidamente. Não existe motivo razoável para tornar pública a intimidade do animal – além disso, sempre há o risco de algum processo judicial por exposição indevida, dano moral ou algo similar. Desisti do intento.  

Poderia perguntar à joaninha se queria algum tipo de ajuda para ir embora. Poderia. Antes que tivesse a chance de fazer o questionamento, percebi que havia algo de errado. Não havia a possibilidade, digamos, de abrir as asas e voar para longe. Alguma coisa estava prendendo-a na cortina. Com a ajuda de uma folha de papel, tentei libertá-la. Depois de algumas tentativas, consegui.

Infelizmente aquele ser de corpo esférico, que não era maior do que um centímetro, caiu atrás do sofá. Ninguém me condenaria se tivesse pronunciado algum palavrão, efeito sonoro adequado à ocasião. Controlei o temperamento, arrastei o sofá e fui procurar por quem estava, momentaneamente, desaparecido. De forma apressada, ao ver o que o bicho estava imóvel, pensei que teria que levá-lo ao hospital veterinário, talvez tivesse quebrado uma perna ou deslocado uma asa. É difícil imaginar que tipo de traumatismo uma queda de menos de um metro pode causar nesse tipo de animal. Felizmente, não era nada grave (imagino). Depois de alguns segundos, aquela carapaça vermelha com pintas negras se moveu na direção da parede.

Consegui colocar a visita em cima da folha de papel e a levei até a janela. Depositei o corpo frágil (para os meus padrões) no parapeito. Fechei a janela e as cortinas e fui tomar banho. Hoje pela manhã, quando acordei, não havia mais sinal de sua presença. Pode ter sido levada pelo vento ou então se reunido com outras joaninhas, resido em uma região propícia para que as Coccinellidae construam moradia.

Sei lá, pode parecer ingenuidade ou romantismo, mas foi bom ver que a vida continua pulsando ao meu redor. E que, por isso, eu também precisei me movimentar.

 

sábado, 11 de fevereiro de 2023

UMA HISTÓRIA ANTIGA (texto modificado)




Dizem que aconteceu com dois latifundiários lá das bandas da Coxilha Rica. Certeza ninguém tem sobre a veracidade, até porque quem contou varias vezes o episódio foi o Tonico Azambuja, sócio atleta do Bar da Felicidade.

 


Pois, o Ignácio, dono de imensa sesmaria, era o melhor amigo de Eleutério, outro grande proprietário. Não havia carreirada no Jockey Club, festa junina ou noitadas no Night Club Assunción em que um estivesse longe do outro. Eram unha e carne. Mais do que irmãos, compartilhavam de inúmeras afinidades comuns. Até que...

 

Um dia brigaram. Coisa pequena. Parece que uma vaca derrubou uma cerca e invadiu a propriedade do outro. Um empregado, sem perceber a extensão do gesto, prendeu a rês em um galpão. Tudo aconteceu em um dia ruim. Na manhã seguinte, Eleutério acusou Ignácio de roubo. Discutiram. Depois disso não mais foi possível acerto. Quase houve violência física. O ódio tomou conta dos dois. Quando estavam na cidade, um mudava de lado na calçada quando via o outro. Ostensivamente, passaram a promover discórdias e inimizades. Eleutério não entrava em lugares frequentados por Ignácio. Aliás, só fazia negócios com exclusividade – quem comprava ou vendia alguma coisa para Ignácio podia se preparar para, como ele fazia questão de dizer em voz alta, morrer de fome.


Na festa de São Sebastião, lá na Capela dos Morrinhos, um foi pela manhã, o outro pela tarde. O pároco teve a maior dificuldade para administrar a crise. E as "prendas"... Não há festa de igreja sem doações da comunidade. No início, nenhum dos dois queria saber do assunto. O padre, a bem do santo padroeiro, pediu "um particular" com cada um dos inimigos. Poucos sabem o que foi tratado nessas conversas  – que demoraram uma eternidade. O fato é que aqueles que – em outros tempos – foram amigos entraram em uma competição brutal para provar quem era o maior devoto. O sucesso da festa foi garantido por uma briga insana, dizia o sacerdote, enquanto enxugava o suor da testa.


Algum tempo depois, Eleutério teve um enfarte e a família o levou as pressas para a capital. Ignácio, tão logo soube do fato, começou a falar mal do adversário e disse, entre trezentos palavrões, que o diabo era capaz de se regenerar, já que o inferno era muito pequeno para ser dividido com aquele filho duma égua. E, por conta da doença, pagou várias rodadas de cachaça para os frequentadores da bodega do Chico Cascavel.


Quando Eleutério morreu, Ignácio não teve dúvidas: mandou estourar duas caixas de fogos de artifício Caramuru, especialmente encomendados para a ocasião. Para quem quisesse ouvir, quase gritavaJá vai tarde, lazarento! Para coroar a demonstração de rancor, compareceu ao enterro. Foi se certificar se era verdade que o desafeto iria comer capim pela raiz. Cumprimentou a viúva e foi olhar o que restava daquele jaguara sarnento (o mais suave dos adjetivos que pronunciou na ocasião). Ao redor, parentes e vizinhos fizeram silencio, digamos, sepulcral. O rosto tranquilo do morto só aumentou a raiva de Ignácio, que não conseguiu se controlar e, como se quisesse expulsar o ódio que estava corroendo as suas entranhas, cuspiu no cadáver. Depois, foi embora, o som de suas botas ecoando naquele fim de tarde, como se fosse o anúncio de novas tragédias.


Nos meses seguintes, os dias foram arrancados de maneira brutal da folhinha do Sagrado Coração de Jesus, que estava pendurada em uma das paredes da sala. Ignácio se sentia mais leve e, paradoxalmente, mais sozinho. Não era raro vê-lo assoviando músicas de baile.


Em algum momento impreciso, Ignácio mudou. Tornou-se um homem triste. Melancólico. Reclamava de qualquer coisa. Daquela onipotência aristocrática só restaram vestígios esparsos. Magro, parecia estar à espera da morte. Só adquiria vigor quando montava no cavalo e, na companhia da matilha de cães de caça, se dirigia ao cemitério.


Enquanto a cachorrada latia sem parar, Ignácio fazia o cavalo pisar no túmulo do inimigo. Depois, voltava para casa, os olhos anuviados pelas lágrimas.


domingo, 5 de fevereiro de 2023

AS SURPRESAS DA VIDA E O MEIO AMBIENTE

 


A realidade supera a ficção. Principalmente nas questões que envolvem os seres humanos e os animais. Por mais que se possa imaginar o absurdo, a surpresa sempre se manifesta. Recentemente, alguns casos chamaram a atenção de quem se interessa pelo tema.  


a)      Em Hong Kong (sudeste da Ásia), um açougueiro morreu quando tentava abater um porco. Depois de atordoá-lo o com choque elétrico, o homem se aproximou do animal com um cutelo na mão. O porco recuperou a consciência e avançou sobre aquele que pretendia esquartejá-lo. O sujeito caiu e o cutelo atingiu o pé do agressor. Resultado: hemorragia sanguínea e morte, algum tempo depois. O porco possivelmente foi transformado em toucinho e pernil por outro açougueiro – mas o episodio parece sinalizar alguma coisa, embora não se saiba exatamente o quê.

 

b)      Durante uma caçada em Sumner (Kansas, Estados Unidos), um cachorro pisou no gatilho da espingarda que estava no banco traseiro de uma caminhonete. O disparo atingiu o motorista do veículo nas costas – que teve morte instantânea. Segundo a polícia local, foi um acidente. Dados estatísticos do Centers for Disease Control and Prevention (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) revelam que mais de 500 estadunidenses morreram em acidentes com armas de fogo em 2021.

 

c)      Após um terremoto na região do Himalaia, alguns alpinistas foram impedidos de prosseguir na tentativa de escalar o monte Everest. Vários monges, além de moradores da região, impediram o trânsito em uma das trilhas. Com o desmoronamento de uma encosta, centenas de minhocas (e insetos) ficaram expostas às intempéries climáticas. A ideia era evitar que os anelídeos e demais invertebrados fossem pisoteados. Para a mentalidade pragmática, que persegue objetivos sem pensar nas consequências, isso constitui um absurdo. Para o mundo religioso budista, um procedimento necessário. A explicação é simples: o budismo acredita em reencarnação – e a nova vida pode ocorrer de forma inusitada. Então, em hipótese surrealista, é possível que eles estivessem tentando salvar alguém da família.  

 


No mundo contemporâneo, a relação dos humanos com a natureza e os animais raramente se mostra pacífica. Filósofos como o australiano Peter Singer e o inglês John Gray costumam expor em livros e artigos científicos os desacertos em relação ao tema. Mas não são os únicos que estão nadando na contracorrente. O estadunidense Henry David Thoreau (1817-1862), em Walden, ou a Vida nos Bosques (publicado em 1854), manifestava esse tipo de temor, insistindo que os processos crescentes de industrialização levariam a humanidade a um beco sem saída. Atualmente, a luta sem quartel em favor do meio ambiente efetuada pela sueca Greta Thumbeg e pelos indígenas brasileiros Davi Kopenawa Yanomami e Ailton Krenak, entre outros, possui caráter quixotesco e costuma ser chamada de ludista (denominação pejorativa usada para aqueles que se mostram contrários à industrialização e às novas tecnologias).  

 


O processo crescente de ocupação territorial, a exploração até a exaustão dos recursos minerais e vegetais, o envenenamento de rios, o desmatamento indiscriminado, a voracidade econômica e o desrespeito à biodiversidade – são práticas usuais no dia a dia e visam destruir, sistematicamente, os ecossistemas. O planeta violentado responde com mudanças climáticas, movimento das placas tectônicas, derretimento das geleiras e diversas catástrofes (terremotos, tsunamis, enchentes, doenças, etc.). 

 


Talvez seja tarde demais para escolher entre a qualidade de vida e a autofagia. Talvez. Enquanto isso não se resolve porcos, cachorros e minhocas continuarão nos lembrando de que a natureza (à sua maneira) resiste às agressões.