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sábado, 27 de agosto de 2022

OS BOIS DE BOTAS

 


Contam os livros de história que alguns catarinenses aderiram ao movimento separatista farroupilha (1835-1845). Essa aventura resultou, entre outras coisas, na proclamação da República Juliana (oficialmente, República Catharinense Livre e Independente), com sede em Laguna. Mas, sem poder medir forças com as tropas imperiais, sediadas em Desterro (atual Florianópolis), a revolta barriga-verde desmoronou depois de quatro meses (24 de julho de 1839 – 15 de novembro de 1839).    

Fortemente influenciada pelo pensamento que soprava pelas bandas da Província de São Pedro do Rio Grande e resistente ao centralismo imperial e à cobrança de grandes alíquotas tributárias, a Vila de Lages (e, por extensão, o Planalto Catarinense) também aderiu às forças revoltosas. Essa decisão se mostrou importante pela posição geopolítica da região – que passou a constituir uma muralha entre as forças legalistas e revolucionárias.

A população de Nossa Senhora dos Prazeres se dividiu. Atos violentos se tornaram rotina. Famílias e amizades se desfizeram. Ocorreram mortes.

Nesse ínterim, o poder municipal trocou de mão várias vezes. A Câmara de Vereadores, sem nenhum constrangimento, jurou lealdade aos que detinham o poder das armas em cada uma dessas oportunidades. A paz somente se concretizou muito tempo depois, quando as forças governamentais se impuseram, em definitivo, em fins de março de 1840.

O episódio mais famoso (e, provavelmente, o menos importante) da participação dos lageanos no conflito ocorreu em 1839. Sob o comando do Coronel Serafim Muniz de Moura se formou um batalhão de cavalaria. Inspirados pelos feitos heroicos de Giuseppe Garibaldi e Anita Garibaldi (nascida Ana Maria de Jesus Ribeiro), os cavalarianos desceram a Serra.

Durante um dos combates, vários canhões e carroções com munição e mantimentos atolaram em um grande lamaçal. Esse incidente poderia contribuir para a derrota das forças revolucionárias na batalha. A tropa lageana se prontificou em ajudar. Depois de muito esforço e força bruta, quando os soldados puxaram, empurraram e ergueram o equipamento bélico, a empreitada obteve sucesso.

David Canabarro (um dos mais importantes chefes das tropas farroupilha e o primeiro Presidente da República Juliana), ao ver o resultado do esforço lageano, não poupou os elogios e, em determinado momento, disse ao Coronel Serafim Muniz de Moura:

– Seus soldados se portaram como tal bravura e força, como se fossem verdadeiros bois de botas!

Com o passar do tempo, a expressão boi de botas se tornou um símbolo do heroísmo dos lageanos – principalmente entre os grupos tradicionalistas gaúchos.

PS 1: Depois do fracasso dos ideais republicanos, o Coronel Serafim Muniz de Moura, na companhia de 12 ou 19 (depende da fonte de referência) soldados e familiares se refugiou, em 1840, na região que constitui o atual município de Alfredo Wagner. Foram os primeiros habitantes “civilizados” naquela parte do Estado, que, na época, era quase inexplorada. Esses pioneiros lançaram as bases da Colônia Militar Santa Thereza – que, posteriormente, foi transferida para as margens do rio Itajaí do Sul, onde prosperou e cresceu. Com a Proclamação da República perdeu a importância e se transformou no distrito de Catuíra.

PS 2: Giuseppe e Anita Garibaldi, depois da derrota das forças legalistas na batalha do Passo de Santa Vitória (14 de dezembro de 1839), passaram três semanas (possivelmente entre os dias 18 de dezembro e 08 de janeiro de 1840) em Lages. Relatos da época contam que os dois assistiram a Missa do Galo (meia noite de 24 de dezembro).

sábado, 20 de agosto de 2022

VEGETARIANOS E CARNÍVOROS

 


Não tenho plantas ornamentais. Faltam-me habilidades para cuidar de vasos e folhagens. Ou seja, cultivo afastamento desse tipo de atividade. Creio que resolver palavras cruzadas (uma forma de desespero silencioso) é mais divertido. Ignoro bonsais, cactos, violetas e antúrios. A propósito, tive – no segundo grau – uma professora de biologia que carregava o apelido (depreciativo) de samambaia. Irreverência estudantil. Mas, obviamente, uma coisa não pode ser relacionada com a outra. É apenas mais um elemento descartável nessa conversa sem pé nem cabeça. Melhor voltar ao assunto principal.

Assim como me recuso a ser escravizado pelos gatos (cães, nunca!), que exigem atenção e afeto em tempo integral, também não quero ficar amarrado em certas tarefas cotidianas. Por exemplo, colocar as plantas no sol, regar e/ou adubar os vasos, usar algum defensivo agrícola. Essas atividades não me parecem saudáveis. Com o mesmo pensamento, ao visitar alguém, jamais vou pedir mudas de flores ou de árvores. Muito menos comprar plantas ou sementes só porque estavam na promoção do supermercado. 

Com o devido pedido de desculpas para quem pensa diferente, considero  ridículo, além de ser uma prova inequívoca de carência afetiva, usar o tempo livre conversando com as plantas ou, para diminuir o estresse urbano dos vegetais, embalá-los, em volume moderado, com uma playlist de músicas clássicas (Mozart, Bach, Liszt). Há quem defenda esse tipo de ação. Como dizia minha avó, “para cada louco, uma mania”. Resolver cubo mágico ou participar de concurso de pesca esportiva provavelmente proporciona mais emoção.

Embora aprecie a beleza estética da flora, prefiro os vegetais comestíveis. Decoração, só no prato. E nem precisa ser muito exagerada. Uma folhinha de salsa muitas vezes é o suficiente. Basta dizer que detesto cenouras, abóbora e rúcula. Costumo reagir de forma pouco educada quando os vejo na mesa. Mas para que não digam que sou contra os vegetarianos, esclareço que adoro ervilha, couve e repolho (refogados). Tomate e alface também são tolerados – desde que estejam acompanhados de um bom e suculento bife.

Ter um jardim particular pode resultar em grandes problemas. Ou pequenos. Depende do ponto de vista. No caso das plantas carnívoras, em substituição das moscas (ou outros insetos), um dedo corre o risco de ser mordido. Ou devorado. 

Recentemente, a namorada de um amigo foi viajar. Ele ficou com a responsabilidade de conservar viva a minúscula selva que ela mantinha dentro do apartamento. Ao telefone, em lugar distante, a moça exigiu um relatório completo sobre o estado de saúde das suculentas, das petúnias, dos lírios brancos. A saudade ou os problemas dele não mereceram a menor atenção. As plantas caseiras eram mais importantes. Em outras palavras, a espada da cólera estava pairando no ar, ameaça nada sutil de ceifar o relacionamento amoroso. Não bastasse esse clima pouco amistoso, ela exigiu que o sujeito postasse no Instagram algumas fotos das flores. Como um menino adestrado pelo afeto, ele, docemente, sem a mínima vergonha, realizou a tarefa.

Psicólogos e psicoterapeutas costumam recomendar a jardinagem e a horticultura. Dizem que desenvolver alguma tarefa relacionada com a natureza pode levar (e elevar) a mente para um patamar próximo da paz. Tenho dúvidas. Nesse sentido, o boxe me parece mais eficaz.

Como não tenho a vocação ecológica de Greta Thumberg, Peter Singer e Ailton Krenak, tampouco me empolgo com a militância de Elizabeth Costello (personagem literário criado por John Maxwell Coetzee), resta-me torcer para que a humanidade sobreviva a si mesma, mantendo as florestas no lugar das florestas e o meio ambiente inteiro.   


sábado, 6 de agosto de 2022

O MENINO NO RIACHO



 

O riacho serpenteava o terreno uns trezentos metros depois da casa da fazenda. Estava situado entre um pequeno bosque e a imensidão do campo – que se perdia para muito além do olhar.

O filete d’água em contato com as pedras parecia dar voz à natureza. Esse som exercia um forte poder de atração sobre o menino. Ele frequentemente ia até lá, para tentar ver os peixes minúsculos e as plantas, beber daquele líquido transparente, ampliar o mundo limitado pela falta de brinquedos.

Apesar da proibição desses passeios, o menino fugia. Ninguém conseguia segurá-lo. Bastava a mínima distração e... Ele atravessava o jardim, ladeava a taipa e corria pela estradinha precária que levava até o paraíso. Corria como se a sua vida dependesse de chegar até lá...

Diante da possibilidade do menino se distrair com os passarinhos, com uma flor que estava engastada nas árvores, não ver as cobras ou simplesmente desaparecer, alguém precisava trazê-lo de volta. Voltava com a roupa molhada e um sorriso no rosto. Muitas vezes os lábios e as roupas estavam manchados com o sumo das amoras – que comia com avidez. 

Os adultos ficavam enfurecidos – gritos e ameaças de violências inimagináveis eram partes de uma ladainha monótona.

Em determinado momento, incapaz de vencer a obstinação do menino, a avó disse que era necessário acompanhá-lo, toda vez que ele fosse até o riacho. A resolução não foi bem recebida – inclusive porque não resolvia o impasse, talvez criasse outros –, mas foi acatada. 

Com os pés dentro do riacho, o menino estabelecia algum tipo de conexão com o planeta, ou melhor, instituía (para si mesmo) um lugar sagrado, um desses portais onde estão guardados os segredos que explicam a vida. Naquele instante, tudo o mais carecia de importância ou explicação. Era uma espécie de deslumbramento e que incluía (para assombro de todos) desconhecer a existência do medo e do perigo.

O poder da imaginação supera quaisquer limites – talvez fosse isso que o menino estava dizendo. Mas, ele se expressava em um idioma que estava fora do alcance de todos. Era impossível traduzir esse encantamento, essa felicidade em forma de avalanche – um deslizar de avassaladora alegria e satisfação. 

Nos dias de chuva, impossibilitado de ir até o riacho, o menino se resignava. Na janela da sala, o olhar carregado de tristeza parecia estar fixado no que é incerto ou carece de explicação. Imaginava dias cerúleos, uma ou outra nuvem a brincar com os raios de sol, momentos em que fica mais fácil perceber as diferenças entre a luz e a sombra. 

Ao longe, o vento e o mugir das vacas. 

Bastava o tempo melhorar e a ordem das coisas que constituem o mundo se restabelecia. O menino renovava as fontes de energia. E, como se fosse um desses mistérios que não possuem explicação, fornecia respostas às perguntas que nunca foram formuladas. 

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Sem se importar que o tempo se esfarele a cada instante, misturando aventuras e tropeções, calmarias e turbilhões, lembranças e invenções, o menino quer continuar vivo em cada um de nós.