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segunda-feira, 30 de maio de 2022

LIVROS

 


Alguns dos episódios mais significativos da minha vida pessoal estão relacionados com bibliotecas, livrarias, livros. Uma ligação umbilical. Talvez uma maldição. Sei lá. Muitas pessoas não entendem os sentimentos que envolvem as pessoas que compram livros em quantidade. Parece que desperdiçam dinheiro. Essa gente não entende o significado da obsessão pelo conhecimento, a possibilidade de querer poder entender o mundo e, consequentemente, a si mesmo. Seja agora ou mais tarde. Muitas vezes mais tarde.

Esporadicamente alguém sugere os benefícios dos e-books, a praticidade do mundo virtual, as bibliotecas portáteis, uma nova era se desenhando no horizonte. Trato-os com cordialidade, embora, muitas vezes, não consiga evitar o uso do sarcasmo – que, infelizmente, passa despercebido pela vítima. Parte da mitologia que envolve o livro implica em sentir o peso do volume, o cheiro que emana entre as páginas, admirar a capa, a orelha, descobrir os paratextos.  

Fui alfabetizado quando tinha seis anos. Em função da orientação católica apostólica romana de minha avó, ganhei duas ou três hagiografias (edições Paulinas) – esses volumes, que se perderam no tempo, constituem a gênese da minha biblioteca atual.

Não havia livros na casa de meus pais. Compreensível. A escolaridade dos dois era precária. Em compensação, lembro-me de vários exemplares dos almanaques Biotônico Fontoura, Sadol e Renascim (que eram distribuídos gratuitamente). Minhas irmãs compravam Sétimo Céu, Capricho, InTerValo. A mãe tinha vários exemplares da revista Burda (e, claro, uma máquina de costura Singer). O verso da folhinha (calendário descartável) também oferecia material variado de entretenimento: tempo de plantio, orações, charadas, curiosidades.

Foi o ingresso na escola pública que abriu espaço para os livros começarem a ter visibilidade na história familiar. Fiz centenas de empréstimos na biblioteca do Centro Educacional Vidal Ramos Júnior. Esgotado o acervo, migrei para a Biblioteca Pública, que ficava na Rua Nereu Ramos (em um sobrado que não existe mais). Lá conheci Arthur Conan Doyle, Karl May e Emílio Salgari, talvez os escritores mais importantes da minha adolescência. Mais tarde a Biblioteca Pública mudou de endereço – eu fui junto.

Nos anos 80, a situação econômica familiar se modificou e aquelas edições da Tecnoprint e da Abril Cultural, que formaram os primeiros itens do meu acervo pessoal, começaram a ganhar a companhia de livros com edições mais sofisticadas. A pessoa mais importante desse período foi dona Maria Josefina Rath de Oliveira, proprietária de A Sua Livraria, que (de forma insana) me garantiu crédito ilimitado – essa relação perdurou até o dia que a livraria fechou as portas, em 2009. Qualquer agradecimento por tamanha generosidade nunca será suficiente.

Nessas memórias desencontradas cabe destacar um dos espantos que tive em São Paulo (1980 ou 1981): um sebo vendia livros por quilo! Diante daquela mina de ouro, comprei algumas caixas e as despachei pelo correio. Nunca mais encontrei algo parecido.

Outro episódio característico de quem vive correndo atrás dos livros ocorreu no final dos anos 90, quando morei por rápido período em Ingleses, norte de Florianópolis. Não encontrei, na Biblioteca Central da UFSC, um texto importante que precisava citar na Dissertação de Mestrado. Procurei por toda a cidade. Ninguém tinha, diziam que estava fora de catálogo. Como naquele tempo não existiam portais de procura como o Estante Virtual, quase desisti da busca. 

Em determinado momento, alguma alma bondosa disse que deveria procurar na Lunardelli. Argumentei que isso era impossível, a livraria não existia mais. Esqueça isso, bata na porta, sempre tem alguém trabalhando, foi o que ouvi. Em um final de tarde de janeiro, atravessei a cidade e lá fui. A pessoa que me recebeu não era um exemplo de simpatia e pediu que voltasse uma semana depois – talvez tivessem, iria verificar. Apesar das dificuldades e das distâncias, voltei na data programada. O livro estava lá, mas... envolto em camadas de pó e... a lombada não estava intacta. Perguntei o preço. Uma fortuna – para a época, para um estudante que vivia de bolsa do CAPES. Paguei, sabendo que estava sacrificando alguns almoços. Ainda o tenho.

Há outras histórias, há outras confusões. E isso me faz perceber que, com e-books, elas jamais existiriam, elas não me lembrariam daquele que fui e que agora olha para um tempo que não se esgotou – porque está vivo na memória.

 

Livraria Lello (Porto, Portugal)
Livraria Lello (Porto, Portugal)


sexta-feira, 27 de maio de 2022

JOSÉ ATANÁSIO BORGES PINTO, O DICIONÁRIO E A MÚSICA

 


A importância de um dicionário depende da qualidade e da quantidade das informações que oferece ao leitor. José Atanásio Borges Pinto (1944 – 2022), quando resolveu reunir algumas das principais palavras e expressões que fazem parte da cultura sul brasileira, não imaginou os obstáculos que surgiriam durante o trabalho. Foi isso que declarou ao Bruno Fortkamp, em uma entrevista realizada no SESC, cerca de quatro anos atrás. No entanto, de certa forma, ultrapassar as dificuldades foi o incentivo necessário para levar a tarefa à diante.

Em 923 páginas, o Dicionário Poético Gaúcho Brasileiro relaciona uma parte do linguajar que caracteriza a cultura gaúcha, também chamada de nativista ou campeira. Acompanhando cada verbete, junto com o significado, o autor acrescentou alguns exemplos retirados do mundo musical regionalista. A união entre a etimologia e o lirismo melódico resultou em um trabalho que precisou de mais de 25 anos de pesquisa. O texto está amparado em inúmeras fontes bibliográficas (contos, lendas e estudos temáticos) e no conhecimento empírico do autor.

Percanta, jacuba, cumbuca, brinco-de-princesa, sarandeio, tafuleiro, quebra-largado, encruado, entre outros termos, mostram a amplitude do vocabulário dos habitantes do sul do Brasil e abrem novas perspectivas para quem deseja entender os costumes e o linguajar utilizados em uma das manifestações culturais da região.

Ars longa vita brevis, diziam os latinos, em uma tentativa (inútil) de explicar porque a vida é finita e a obra artística permanece. Isso provavelmente não justifica a perda humana, tampouco explica porque as coisas são como são. A notícia do recente falecimento de José Atanásio Borges Pinto foi uma dessas surpresas indesejadas.

Depois que se aposentou do Banco do Brasil, onde trabalhou parte significativa de sua vida, Atanásio participou intensamente da vida cultural nos dois lados do rio Pelotas. Entre Lages e Vacaria reuniu um grupo de amigos – e com eles repartiu afeto, humor e sabedoria. Durante um dos governos municipais deste lado da fronteira ocupou o cargo de Secretário Municipal do Desenvolvimento Econômico. Provavelmente foi nesse período que, em parceria com outras pessoas, plantou a semente do festival de música que conhecemos como Sapecada da Canção Nativa, parte integrante da Festa Nacional do Pinhão – e que no próximo mês celebrará a sua vigésima oitava edição.    

Atanásio também se destacou como compositor musical. Autor de centenas de canções, onde celebra os valores do passado, o amor à terra e à liberdade e os contrastes entre o mundo rural e o mundo urbano. Várias de suas músicas foram premiadas no circuito de festivais de música nativista no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. A canção Segredos do meu cambicho, vencedora das 15ª Coxilha das Coxilhas (Cruz Alta, 1995), por exemplo, foi gravada inúmeras vezes (João de Almeida Neto, Leopoldo Rassier, Dorotéo Fagundes, Jorge Freitas, Walther Morais, Garotos de Ouro, Grupo Guitarra, Alma e Garganta,...). Também fizeram bastante sucesso: Aquele moço (gravada por João de Almeida Neto, José Cláudio Machado, Peterson Costa, Márcio Borges); O que acerta e o que erra (gravada por Reginaldo Färber); De boca em boca (gravada por Luiz Marenco), Clarim campeiro (gravada por Elton Saldanha), entre outras.

No campo literário, Atanásio publicou, entre outras obras, o livro infanto-juvenil de lendas Nas asas da fantasia – poemas crianceiros (Editora Movimento, 2008). Como contista e poeta participou de inúmeras antologias, inclusive em publicações internacionais.

 



segunda-feira, 23 de maio de 2022

DENTRO DO NEVOEIRO

 


Não sei se existe alguém no mundo que gosta de lavar a louça. Talvez os nascidos no signo de virgem, que são pessoas certinhas, adoradores da ordem e da limpeza. Como nasci na outra ponta do zodíaco, meu entendimento da questão é diferente. Penso que essa tarefa pode e deve ser adiada o máximo possível – possivelmente para quando não mais existirem pratos e copos limpos.

Depois do Covid-19 a minha percepção da situação não mudou, mas tenho exercido o sacrifício com mais assiduidade, no mínimo uma vez a cada dois dias, o suficiente para não ter a necessidade de desviar o olhar toda vez que entro na cozinha. Poderia culpar minha mãe, que, na infância e adolescência, não me avisou que o futuro estaria repleto de surpresas e que, muitas vezes, precisaria (munido de esponja, detergente e paciência) tentar limpar os detritos do viver. Não quero transferir responsabilidade. Seria uma injustiça com D. Vina, visto que recebi outras lições, talvez mais valiosas, sobre como sobreviver em um mundo hostil e repleto de armadilhas.

No ano um da pandemia (também conhecido como o ano em que ficamos em casa), precisei ser mais pragmático. E isso me fez perceber que lavar a louça se aproxima da filosofia. Olhar para as mãos molhadas é uma forma de entender que a vida está pulsando. Escolher entre o detergente e o sabão de coco influencia as ações diárias. Um garfo ou uma colher pode remeter o pensamento para lugares outros, longe da filosofia da miséria e, claro, da miséria da filosofia   essa moldura dos dias tumultuados pelas ameaças da indesejada das gentes (na expressão lírica do Manuel Bandeira, que provavelmente nunca reclamou de ter que lavar a louça). Além disso, há o medo de me transformar em simulacro de quinta categoria do Rodrigo Hilbert – esse exemplo do homem desconstruído pelas novidades da modernidade. É uma possibilidade remota, convenhamos. Além de me faltar múltiplas habilidades nas tarefas do dia a dia, ninguém consegue competir com o cara – em diversos níveis.

O calor do corpo contrasta com o vidro e a porcelana de copos e pratos. O tempo e o espaço são engolidos por um vórtice difícil de definir. Um pouco d’água quente ajuda muito para diminuir a consistência e a espessura dos fantasmas que surgem a cada instante.

Ao segurar um prato, há o risco dele escapar das mãos e – no chão – se espatifar em mil pedaços. Um desastre que anuncia a transitoriedade. Ou o fim do mundo. Que no es lo mismo / pero es igual, como cantou um dos muitos menestréis de América Latina.

Ninguém lava a louça duas vezes na água que escorre pela torneira. Imagens e pensamentos aparecem e somem na medida em que o trabalho vai sendo realizado. Na ação mecânica (lavar, enxugar, guardar no armário) está embutida a sensação de que tudo é passageiro. A espuma que encobre o prato (que em algum momento esteve sujo) sinaliza essa mudança.

Diante das urgências do agora, talvez seja sensato viver cada dia como se fosse o último. Sem pressa, sem se ater aos interesses daqueles que querem comprar e vender mercadorias como se fossem artigos necessários para garantir a felicidade. A ilusão não pode ser uma proposição existencial, mas também não pode impedir a utopia. 

Terminada a tarefa, os pratos, os copos e os talheres limpos, restam fiapos do pensamento, fragmentos da busca intelectual, e a certeza de que o caos do mundo jamais será domesticado. O nevoeiro se dispersa, mas – como uma brasa dormida – não desaparece.

Amanhã é outro dia. Por isso se torna necessário superar o medo e, ao mesmo tempo, ignorar a sensação de que – lentamente – a vida está escorrendo pelo ralo da pia. 

 

sexta-feira, 20 de maio de 2022

FEIJÃO, CAMARÃO, CEBOLA, UVA PASSA (Texto modificado)

 


Quando alguma pessoa diz que não possui qualquer tipo de preconceito gastronômico, a vontade de rir fica quase incontrolável. Se isso não ocorre na frente da criatura é para manter um mínimo de verniz civilizatório. Todo mundo tem algum tipo de alimento que detesta. Inclusive aqueles que adoram dizer que “comem de tudo”. Nenhum humano possui estômago de avestruz.

Causa escândalo nacional encontrar algum indivíduo que diz que não gosta de feijão e camarão. Imediatamente, descontados os casos de alergia ou trauma, surgem situações de humilhação social. Ninguém acredita que existam sujeitos que detestam o sabor. Um conhecido precisou usar de diplomacia superior a que é praticada pelo Itamarati para superar a violência que surgiu ao seu redor. Várias vezes, ao ser convidado para almoçar, enquanto os demais convidados se empanturravam com suculenta feijoada, o fulano precisou se contentar com arroz branco, couve e laranja. Além disso, esporadicamente alguém olhava para ele com o mesmo interesse com que olharia para um alienígena.

Experiências similares ocorreram quando o camarão estava incluído no cardápio. Para não passar fome, precisou se contentar com bifes sola de sapato. E que, obviamente, foram preparados com visível má vontade.

Para alguns homens e mulheres, a cebola e a uva passa são as principais adversárias ao bom gosto gastronômico. Encontrar qualquer um desses dois elementos no meio da comida é motivo suficiente para julgar se vale a pena continuar a refeição. Embora pareça drástica,... a possibilidade não deve ser descartada. Nos casos em que o horror é superado, esses alimentos possibilitam cena antológica: o surgimento – lento, inexorável – de um montinho na beira do prato. Evidentemente, todos os que estão à mesa percebem o protesto silencioso.

Em tempos recentes, a cruzada contra alguns ingredientes culinários está ganhando centenas de adeptos. A facção xiita não economiza palavras de desprezo para azeitonas, chuchu, beterraba, tomate, bife de fígado, miúdos de galinha, lentilha, grão-de-bico, couve-flor, alcachofra, abóbora, picles, além de outras maravilhas da alimentação internacional. Nem mesmo as especiarias e as frutas escapam do sistema de exclusão (cancelamento, na linguagem atual). É o caso do coentro, cravo-da-índia, açafrão, noz-moscada, mostarda, gengibre, anis-estrelado, maracujá, abacate, caqui, manga, mamão.

No âmbito regional, onde a desnutrição se faz presente, existe um bando de terroristas que elegeu como alvo a quirera, a canjica, o cuscuz de milho, a morcilha (morcela), o chouriço, o bucho (dobradinha), o matambre e o arroz de carreteiro. Não bastasse o descalabro, há quem demonize o sagu de vinho, o arroz doce e o doce de gila – símbolos da identidade (açucarada) sul brasileira.

Se não fosse (muito) ridículo esses intolerantes subiriam em cima da mesa e usariam megafone para expressar – de forma inquestionável – a repulsa que sentem quando encontram o mínimo traço do alimento indesejado.

Como disse um filósofo desconhecido, as idiossincrasias humanas abrem as portas para estudos muito interessantes. No campo da psiquiatria, por exemplo. 

P.S: por razões de segurança pessoal, deve-se evitar menção aos hábitos nutricionais dos vegetarianos, veganos, macrobióticos e outros usuários de formas alternativas de alimentação. Esses grupos são mais perigosos que maionese estragada.




segunda-feira, 16 de maio de 2022

CINQUENTA POEMAS QUE RELEIO FREQUENTEMENTE (3ª PARTE)

 



ESPERANDO AS BÁRBARAS

(Marília Kubota)

 

barbie, tippie ou como você chame,

janet, condoleza, lynndie,

não é mais que uma boneca.

não como konstantin,

que amava os homens e por eles caiu

nos bordeis de Alexandria

anunciando homens

como os de vocês.

vocês são demais.

 

anseiam romances

enquanto seus homens explodem cabeças

de porco no mundo velho.

 

vocês sabem tudo sobre sexo

e leem revistas pornográficas em banheiros iluminados,

controlando hormônios.

 

vocês são híper.

 

jovens americanas, como vocês, mas do sul,

também ousadas, desde os dez anos vendem o corpo

para comer. os abutres comem delas.

 

vocês ensinam as mulheres a serem liberadas

usando as mais modernas técnicas

para conseguir prazer.

 

Todas as mulheres do mundo aguardam o ritmo

que a superestrela virgem ditará,

apertada em corpetes e botas militares.

vocês são o rosto das mulheres do mundo.

o que será de nós sem as barbies?



CASAMENTO

(Adélia Prado)

 

Há mulheres que dizem:

Meu marido, se quiser pescar, pesque,

mas que limpe os peixes.

Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,

ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.

É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,

de vez em quando os cotovelos se esbarram

ele fala coisas como ‘este foi difícil’,

‘prateou no ar dando rabanadas’

e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos pela primeira vez

atravessa a cozinha como um rio profundo.

Por fim, os peixes na travessa,

vamos dormir.

Coisas prateadas espocam:

somos noivo e noiva.

 

 

TEIA

(Orides Fontela)

 

A teia, não

mágica

mas arma, armadilha

 

a teia, não

morta

mas sensitiva, vivente

 

a teia, não

arte

mas trabalho, tensa

 

a teia, não

virgem

mas intensamente

                  prenhe:

 

no centro

a aranha espera.

 

 

Tarot

(Assionara Souza)

 

Vou confessar, querida

Tenho isso de gostar dos loucos

Observo de longe o jeito que eles comem com os olhos

Com você foi assim

Esse esmalte vermelho sempre em dia

Esse passado colado no álbum com cantoneiras e papel vegetal

Quero a receita completa

Desde o suspense antes do desfecho da trama

O disparo, teu olho assustado pra câmera

Por trás da palavra pêssego

corre um rio espesso

Mordo a palavra pêssego

E as comportas desabam — uma cidade inteira vem abaixo

Corremos, corremos para bem longe do set de filmagens

Vida real é um cão dormindo no silêncio da tarde de um domingo

 

 

querida sara,

(Alessandra Safra)

 

agradeço sua umidade nessa tarde ardida tão seca. sobre a

recusa de flores, preciso esclarecer que não aprecio esse

roubo da natureza apenas você [como sempre] basta.

 

Agradável sua visita nesse domingo insípido, aliás, todos

os domingos minhas ilusões tiram folga e esse mal estar

acumulado me força olhar para o ridículo dessa peleja

diária. estava afundada na cólica desses farelos quando

você me salvou com seu instinto de vida.

 

bom passar o tempo sob & sobre seu corpo ouvindo a

música dos seus gemidos.

 

Se puder, volta para me salvar no próximo domingo

também.

 

beijos

Anna S.

 

 


sexta-feira, 13 de maio de 2022

PERDER OS ÓCULOS É PERDER PARTE DO MUNDO

 


Perder os óculos é uma tragédia. Tudo fica opaco – um conjunto de sombras, sobras daquilo que, em tempo anterior, era cor e vida. A beleza do mundo e a emoção que é olhar (o perto e o longe) se diluem na névoa. Claro que isso não é o fim do mundo. Talvez seja o começo de outra catástrofe.

No final da tarde, a garoa ameaçando se transformar em temporal, ele apressou o passo – queria chegar ao apartamento o mais rápido possível. A gripe costuma acompanhar a chuva e, em tempos pandêmicos, todo cuidado é pouco.

No momento em que estava prestes a desfrutar da segurança que é estar em casa notou que alguma estava em falta. O quê? Levou a mão ao rosto, ao bolso da camisa. Procurou na pasta que sempre o acompanha. Desesperou-se. Onde será que estavam os óculos? Procurou por todos os lugares onde poderia procurar. Na cozinha, no escritório, próximo do telefone fixo, no banheiro. Não o encontrou. Tinha desaparecido.

Fez um exercício de memória em relação aos lugares em que esteve antes de chegar ao prédio. Será que tinha deixado no banco, onde fora pagar um daqueles boletos que não cansam de chegar todos os meses? Imediatamente, por analogia, se lembrou das várias vezes que esqueceu o cartão de crédito no caixa eletrônico e teve que retornar correndo, desejando que o objeto ainda estivesse no lugar onde foi abandonado. Nenhuma novidade na vida de um perdedor. Quer dizer, perder coisas é uma de suas especialidades. São incontáveis os livros, as chaves, as canetas, e outros utensílios que ficaram pelo caminho e que nunca foram recuperados. Incorrigível paspalho – foi o que disse para si mesmo.

Outra possibilidade era a de que o tivesse perdido em algum lugar durante o caminhar. Bastaria um gesto brusco e os óculos poderiam ter deslizado suavemente para fora de seu alcance. As calçadas possuem esse tipo de atração. Sim, isso poderia ter acontecido. No desespero, munido do guarda-chuva, refez parte do trajeto por onde poderia ter acontecido a separação. Olhando cuidadosamente para o chão nada encontrou.  

Consciente que precisaria tomar uma série de providências no dia seguinte anotou o número do telefone da clínica oftalmológica. Teria que marcar uma consulta. Depois, precisaria mandar aviar a receita das lentes e da armação– nitidamente em desacordo com o seu saldo bancário. Teria que parcelar os gastos astronômicos em intermináveis parcelas.

Nas primeiras horas da manhã seguinte, estoicamente, decidiu seguir em frente – como se a perda significasse apenas um pequeno contratempo. Um sinal de que não é possível ter controle sobre certas situações.

Um pouco antes de sair para o trabalho, ele pegou a bolsa, que estava em cima do sofá. Nesse momento, os óculos caíram no chão. Perplexo, ele recolheu o objeto e agradeceu aos deuses do Olimpo, além de Buda, Ganesha, São Longuinho (apesar de não ter feito os tradicionais três pulinhos).

Ter encontrado os óculos é um mistério que ele nunca conseguirá resolver. Em cima do sofá foi um dos lugares onde procurou – diversas vezes. Não poderia estar lá. Não poderia. Mas, estava. Algumas pessoas possuem mais sorte do que juízo.

terça-feira, 10 de maio de 2022

CINQUENTA POEMAS QUE RELEIO FREQUENTEMENTE (2ª PARTE)




NATAÇÃO

(Adriane Garcia)

 

Maníaca

Quis casar e ser dona

De casa

Marido filhos vida regular

 

Mas não pode entrar

Num lugar

 E ver aquários

 

A casa inteira alagando.

 

 

CASABLANCA

(Ana Cristina Cesar)

 

Te acalma, minha loucura!

Veste galochas nos teus cílios tontos e habitados!

Esse som de serra de afiar as facas

não chegará nem perto do teu canteiro de taquicardias...

Estas molas a gemer no quarto ao lado

Roberto Carlos a gemer nas curvas da Bahia

O cheiro inebriante dos cabelos na fila em frente no cinema...

As chaminés espumam pros meus olhos

As hélices do adeus despertam pros meus olhos

Os tamancos e os sinos me acordam depressa na madrugada

                                                                   [feita de binóculos de gávea

E chuveirinhos de bidê que escuto rígida nos lençóis de pano

 

 

IX

(Camila Assad)

 

Meu companheiro é Barão da Pindaíba

em um país não monárquico.

Usa chapéu de pelo de lebre e

um relógio de corda que parou faz algumas décadas.

Me chicoteia todos os dias às nove e meia

durante o segundo intervalo da novela

 

E vovó diz que isso sim é que é um homem.

Devo usar diariamente o meu melhor peignoir

e servi-lo com um bom boquete, perdão, banquete.

 

 

tempo

(Micheliny Verunschk)

 

o homem toca piano no andar de cima

do lado de fora se misturam

o canto dos pássaros

e as vozes quase infantis dos desenhos animados.

tudo na mais perfeita ordem

exceto, é claro, pelos fascistas que marcham na avenida.

 

 

(Paula Taitelbaum)

 

tô cansada

de foda

cronometrada

queria horas

e mais horas

de cravada

depois dormir

em concha

encaixada

com a xota

cheia

e toda

inchada