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terça-feira, 26 de outubro de 2021

DESAFI(N)ANDO

 


Dizem que não há desgraça pior do que nascer desafinado. A pessoa pode acreditar em extraterrestres, ser viciada no jogo do bicho, praticar o veganismo ou pior, muito pior, dominar a trigonometria, são os azares da vida, ninguém está livre desses acidentes. Mas, desafinar, ah, desafinar é um defeito imperdoável.

Basta uma nota musical fora do tom e o sujeito se transforma em pária social. A harmonia desaba, o caos se instala, o universo mostra as suas ruínas. É algo que se aproxima do horror que existe nos dramas gregos, nos tsunamis, na derrota do império bizantino em 1453, no gol do time adversário aos 50 minutos do segundo tempo.

Ninguém se compadece dos desafinados. Ao contrário. Querem retirá-los da festa. Dizem que quem não sabe brincar não deve descer para o playground. Alegam que é de conhecimento amplo, geral e irrestrito que a vida fica mais tranquila quando se segue as instruções contidas na partitura, a beleza expressa no conjunto de instrumentos e vozes uníssonos. Abençoados sejam os bem-comportados, aqueles que não encontram maldade no mundo!

Condescendente, tentando acalmar os ânimos, alguém lembra que no peito dos desafinados também bate um coração. Bobagem. Tolice. Asneira. Disparate. Sandice. Sobram adjetivos. E nenhum é subjetivo. Os corações desafinados são corações mais maltratados do que os corações maltratados que encontramos pelas ruas da cidade. Ninguém deseja esse tipo de sofrimento. Ou deseja? Inúmeros boleros, tangos e tragédias parecem dizer que sim. E isso soa estranho.

Pois é, o amor se parece com música desafinada. Diversos elementos concorrem para esse abismo: os desentendimentos entre a soprano e o tenor, o gozo desencontrado, a flutuação do dólar, o amargor do mel, as fronhas de listras que não combinam com os lençóis floridos. Parece que há uma guerra em curso e que tudo gira em torno de migalhas e estilhaços. Às vezes o melhor a fazer é trocar a playlist do Spotify.

O que sei é que está cada vez mais difícil de viver sem desafinar. Em algumas ocasiões o desafio ocorre quando estamos tentando batucar caixa de fósforos, num desses sambas de fundo de quintal. O ritmo se esfarela nos dedos sem musicalidade. Em outros momentos, basta atravessar a rua – o lado oposto da calçada fica distante quando a música urbana parece não se importar com a vida.

Em outro canal desse dois prá lá dois prá cá é possível encontrar – em rota de colisão – a mentalidade dissonante. Torquato Neto disse da necessidade de desafinar o coro dos contentes. Carlos Drummond de Andrade, concordando com o piauiense, defendeu a ideia de que uma das tarefas da poesia (e do poeta) é ser gauche na vida. Nessa (des)ordem, eles não estão sozinhos. Étienne de La Boétie (amigo de Michel de Montaigne) era contra o discurso da servidão voluntária. Henry David Thoreau pregava a desobediência civil – uma forma de dizer não ao comportamento de manada.

Em uma das reprises do espetáculo, Nelson Rodrigues está cantarolando afinadíssimo – que toda unanimidade é burra.     

 

domingo, 24 de outubro de 2021

MINHA MÃE, A INQUIETA

 

Dona Vina (1939-2021), em algum lugar distante.


Quando põe o pé na estrada, ele obedece a uma força que, surgida do ventre e do âmago do inconsciente, lança-o no caminho, dando-lhe impulso e abrindo-lhe o mundo como um fruto caro, exótico e raro.                                       (Michel Onfray)


Minha mãe tinha espírito nômade. Ou cultivava – amorosamente – alguma espécie de distanciamento do mundo gregário. Essa coisa de fixar raízes era uma ideia estranha à sua vida (que estava sempre em mutação). Nunca pensou duas vezes antes de se deslocar. Quando não era possível fazer a mudança, trocava os móveis de lugar – e fingia que estava morando em outra casa.

Foram tantas as trocas de endereço que não me lembro de todas. Entre as mais importantes destacam-se as do bairro Brusque, onde residiu em pelo menos quatro oportunidades. Três na Carlos Vidal Ramos e outra na Cruz e Souza. Talvez se possa incluir nessa soma uma quinta ocasião, se valer a proximidade geográfica com a parte final da rua Coronel Córdova (quase na Av. Dom Pedro II). Duas vezes no bairro Universitário (antigo Aeroporto Velho): José Berlim e Germano Magaldi. No Coral, duas vezes: XV de Novembro e São José. Quatro vezes no Centro: Manoel Thiago de Castro, Irmã Laurinda, Sebastião Furtado e Lauro Müller. Também morou nos bairros Petrópolis, Popular, Santa Rita, Vila Nova, Copacabana, Caça e Tiro e Morro do Posto.

A média de estadia em algum desses lugares não excedia aos dois, três anos. Algumas vezes ela acordava com bicho-carpinteiro, disposta a fazer arte, e só sossegava depois de percorrer todas as imobiliárias, investigando quais imóveis estavam disponíveis para aluguel. Também telefonava para os amigos e conhecidos com o mesmo propósito. Às vezes, ia visitar os parentes  mas o que queria mesmo era ver se encontrava alguma placa de aluga-se, talvez fosse a possibilidade de morar em outro lugar, de preferência longe de onde estava. Muitas vezes, a transição entre um endereço e outro era imediata. Certa vez, ao visitá-la, encontrei a casa vazia – nem as lâmpadas sobraram para contar o que tinha acontecido. Fez a mudança e não avisou ninguém. Demorei uns dois dias para descobrir o novo paradeiro.

O movimento se opõe ao sedentarismo e afasta a estagnação mental. Creio que era isso que ela queria dizer instintivamente – mas por vias transversas (e travessas). Simultaneamente, não consigo perceber alguma base filosófica nessa peregrinação pelos quatro cantos da cidade. Algum psicólogo de botequim poderia dizer que, ao adotar uma proposta itinerante, ela estava fugindo de alguma coisa, talvez algum medo (físico, social, imaginário), talvez fosse apenas o exercício de negação das obrigações que acompanham o mundo convencional. Não tenho certeza da correção desse tipo de diagnóstico – que me parece artificial e ligado à etologia dos predadores. O que posso dizer é que, se ela tivesse nascido em Estados Unidos, possivelmente gostaria de morar em um trailer, a estrada como horizonte, o vento beijando o seu rosto. 

Quando cansava da cidade, viajava. Demorava seis meses, um ano, em terras distantes. E que ninguém sabia exatamente onde ficavam. Deixava tudo para trás: filhos, gatos, pertences. Às vezes, poucas vezes, mandava um cartão postal, um bilhete sem informações relevantes. Ou telefonava para dizer que tudo estava bem, que não estava com pressa para regressar.

Voltava revigorada – como se tivesse passado uma temporada em um spa ou em turnê turística pelo Mediterrâneo. Sempre interessada em recomeçar – como se o encontro com o novo inventasse um propósito para a vida.

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

RUA JERÔNIMO COELHO

 

Foto: Antônio Agostinho Vieira/PML

Quando escrevo sobre Lages tenho medo de ser sentimental. Algo me diz que é necessário adotar uma postura lógica, equilibrada, evitando a sensação de que os ossos, a carne e o sangue estão contaminados por um passado que insiste em voltar à memória como se ele ainda estivesse presente e que – infelizmente – não cansa de ser diluído na confusão que envolve a vida.

Um exemplo é a recente notícia de que, em breve, iniciar-se-ão (perdão pela temerosa mesóclise) as obras de revitalização da Rua Jerônimo Coelho. Parte de minha história pessoal está relacionada com aquela região da cidade.

Na Jerônimo Coelho moravam meus avós, Silvano e Henriqueta Guimarães. Na época, todos os proprietários rurais tinham uma casa na cidade e outra no interior (onde viviam).  Em algum momento impreciso, meu avô teve um "derrame”, ficou com o lado esquerdo paralisado, então, sem muita escolha, o casal decidiu viver, a partir daquele instante, na cidade. Uma de minhas irmãs morava com eles (muitos anos depois, ela comprou moradia na mesma rua, ao lado da antiga Panificadora Cinelândia). Nos fundos do terreno residia Selma, irmã de criação da mãe, com o marido e as filhas. Lembro que costumava visitá-los (avós, irmã, tia, primas), sempre de olho no café da tarde, que era o ponto alto desses encontros.

No lado direito da casa dos Guimarães morava Dona Maria Schmidt, famosa professora de matemática dos anos 70. Tive aulas com ela no Centro Educacional Vidal Ramos Júnior.

Em turmas e momentos diferentes, minhas duas irmãs foram alunas do Flordoardo Cabral, colégio estadual situado na esquina entre as ruas Jerônimo Coelho e João de Castro. E, salvo engano, todos os filhos da família Arruda nasceram com ajuda de parteira, no Hospital e Maternidade Teresa Ramos.  

Em determinado período, morei (com minha mãe e meu irmão) na Rua Irmã Laurinda – que é a continuação da Jerônimo Coelho. Naquele tempo o Clube Juvenil (que ficava quase em frente da casa em que morávamos) era frequentado pelo pessoal sem muito poder aquisitivo e que, por qualquer motivo, ia “às vias de fato”, como diria o repórter policial do O Momento – jornal que, mais tarde, por alguma razão que desconheço, transformou aquele prédio em sede. Durante um bom tempo (e em vários períodos) trabalhei no hebdomadário, dividindo tarefas e reportagens com Francisco (Chico) de Assis, uma das (poucas) pessoas por quem sempre tive imensa e intensa admiração.

Por uma dessas sincronicidades que dispensam explicações, o Brigadeiro Jerônimo Francisco Coelho (1806-1880), nascido em Laguna (SC), foi o fundador, em 28 de julho de 1831, de O Catharinense, o primeiro jornal de Santa Catarina.

Não bastassem todas essas histórias desencontradas, na primeira década do século XXI fui funcionário (pela segunda vez) do Facvest – que também estava localizado na Rua Jerônimo Coelho. Foram longas noites de inverno discutindo literatura e vida pessoal com os alunos. De forma lenta e gradual, a instituição mudou para outro endereço (o atual), e, no devido tempo, dispensou os meus serviços. Ficaram algumas lembranças e amizades.

Diante das reminiscências e dos passeios nostálgicos, algumas vezes tenho vontade de parar no meio da rua, encher os pulmões de ar, e dizer para mim mesmo que não há motivo para se preocupar com o lacrimejar – provavelmente causado por algum cisco no olho.


Foto: Antônio Agostinho Vieira/PML

P.S.: Salete Arruda Benthin e Sônia de Lucena Maggi me ajudaram a corrigir algumas das imprecisões do texto. Muito Obrigado!  

terça-feira, 19 de outubro de 2021

VICTOR

 


A ironia é o biscoito fino da modernidade. Embora se confunda, algumas muitas milhares de vezes, com cinismo ou sarcasmo. Ou piada sem graça. Ou mau humor. Questões de sabores e condimentos. Pedagogia do paladar. Estou lendo o livro póstumo de Victor Heringer (organizado pelo Carlos Henrique Schroeder). Uso marcador de página da dupla Calvin & Hobbes. Victor e Calvin & Hobbes constituem parte do meu paideuma (talvez mãe de outra). Fundir palavras e imagens muitas vezes significar fuder com a estabilidade. Sem palavrão, não há solução. O caos como elemento ordenador. Abrir uma janela para ver a luz. Metáforas estendidas no varal das palavras. Abalos sísmicos nas certezas. Lentidão de lava escorrendo na direção do vilarejo. Sem pressa. Ou pressão. Tudo é poesia antilírica (a fila anda. eu ando atrás. não sei do quê). A bandeira de Manuel acenando ao longe, antídoto contra a monotonia. Alguém sustenta a tese de que aquele que escuta nem sempre escuta o que foi dito. O mesmo se pode dizer sobre o que está escrito. É preciso ter olhos e ouvidos para se movimentar na areia movediça que Victor (contaminado pelo machado do Assis) escreveu. Poucos conseguem entender o que significa usar os sapatos do pai. As dificuldades em cada passo. Os empecilhos no trafegar (traficar) nessa estrada que leva o nada a lugar nenhum. Escrever é uma forma de não se sentir perdido – embora tudo signifique perdição e pecado e ausência e solidão. Abundância de matéria-prima para preencher o mundo com autoficção. Enquanto sobra fôlego, crônicas – esse gênero menor, potência exponencial. Não devo ter trocado meia dúzia de palavras com Victor, que não tive o prazer de conhecer pessoalmente. As redes sociais são teias que unem aranhas e moscas no mesmo ritual primitivo. Elogiei dois ou três textos, que apareceram aleatoriamente na tela do computador. Talvez ele tenha respondido, não recordo, não recorto essas coisas, a vida é muito curta para adotar resumos como se fosse um desses romances intermináveis, infinita descrição de pormenores, ecos menores de algo a que não se tem estimação, exceto como literatura – ou seja, questiúnculas de suma importância. Sumo e soma, como Aristóteles sabia e dizia – sem escrúpulos – aos seus socráticos discípulos, em um daqueles catataus que a gente lê aos pedaços, talvez para cumprir com alguma tarefa acadêmica, talvez para dar uma demão no verniz intelectual nosso de cada dia. O fato básico é que não há interesse na vida. Vida desinteressante. A tristeza inescapável. Ou o contrário. O curto-circuito como leitmotiv. Vai ver que é assim mesmo, esse estranhamento que faz as palavras escorregarem para debaixo do tapete, um medo de amar, sei lá, somos homens avulsos. E nos escondemos atrás dos sentimentos que fingimos não ter. Sombras de Pessoa. A revista, não o amanuense. Mas que, sincronicamente, parece estar no mesmo flow, flor do jardim perfumado que cultivamos entre bibliotecas e sonhos e as (inexistentes) virtudes da vida virtual (viral), basta um movimento no mouse e os signos (clique aqui para fotos de gatinhos) surgem diante dos olhos, milagres da tecnologia  essa moenda (moeda) da inteligência. Lá pelas tantas é que as coisas costumam acontecer, o inusitado alimenta o espanto, quem lê Calvin & Hobbes ou Victor sempre encontra esse espetáculo no quadrinho seguinte, na frase seguinte. A máquina fotográfica não sacia essa vontade de lembrança total. Talvez seja possível, em um desses delírios oníricos que tumultuam as noites e os dias, se enfurnar num monastério. Não acredito muito em Deus, mas não importa; é só um detalhe.   

Victor: o fim do mundo foi meio sem graça.

 

Victor Doblas Heringer (1988 - 2018)


quarta-feira, 13 de outubro de 2021

A FILA E A FILA DA VACINA

 

Foto: Antônio Agostinho Vieira

As filas foram feitas para torturar os homens e as mulheres de boa vontade. Não bastasse a eternidade que constitui o tempo de espera para ser atendido em um dos guichês e a constatação de que uma das leis de Murphy está em vigor (a fila ao lado sempre anda mais rápido), ainda há que se ser tolerante com gente gritando no telefone, mãe mandando criança ficar quieta, conversas inapropriadas para menores de 50 anos, apressados que não param de olhar no relógio, indivíduos que insistem em não usar máscara. É uma confusão sem fim.

A elegância, essa preciosidade civilizatória, está cada vez mais distante do viver em sociedade. Nem sempre aquele que está na fila se esforça para que a ordem do universo seja restabelecida. Muitas pessoas não respeitam o distanciamento social. Então, a qualquer descuido, surge alguém pisando no calcanhar daquele que está na sua frente. Em lugar de pedir desculpas, a criatura inicia uma conversa desbaratada, produto da falsa intimidade, apostando que vai se transformar no mais novo amigo de infância da vítima.

Algumas pessoas não suportam a soma de inconvenientes provenientes da fila. Principalmente nos casos de fila da fila. Ou seja, fila para pegar a senha para a próxima fila. O nível de tolerância entra em alerta vermelho ou estoura a bolha da paciência. A qualquer momento pode ocorrer uma troca de pontapés ou, nos casos mais brandos, uma discussão acalorada. Usualmente a turma do deixa disso controla o caos, mas é inevitável que alguém volte para casa com algum hematoma (físico ou no ego).  

Nestes tempos de pandemia, há uma fila em especial que não causa irritação ou desavença. Quer dizer, não deveria. Mas, como diz o filósofo, nada do que é humano pode ser considerado estranho. Então,...

A fila da vacina merece aplausos. Não importa se ela dobra o quarteirão ou se o alvoroço se faz presente. A possibilidade de diminuir as chances de contágio e, consequentemente, não ficar doente, compensa os incômodos. Viver em sociedade implica em entender que as ações coletivas devem prevalecer sobre as ações individuais. Para quem já tomou as duas doses (ou a dose única), logo se iniciará a chamada para o reforço. Sim, mais uma fila. Cabe ter calma e consciência social.  

O Covid-19 mostrou, mais uma vez, a vulnerabilidade da vida. Episódios históricos como a revolta da vacina (1904) ou a gripe espanhola (1918-1920) não foram suficientes para ensinar que a ciência está (em 95% dos casos) a serviço da vida.De qualquer forma, ainda há tempo para aprender a lição.

Os incrédulos, portadores da síndrome de super-heróis de revista em quadrinho, não querem entrar na fila da vacinação. Preferem tomar vermífugos. A vida é feita de escolhas. Talvez estejam se inscrevendo para participar da fila derradeira.

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

MINHA CIDADE (versão modificada)

 

Foto do arquivo do Museu Thiago de Castro

Todas as manhãs, ao abrir as cortinas, a luz plúmbea entra pela janela com uma violência assustadora. É um pequeno esplendor silencioso, que parece conversar com o vento – essa insensatez que enche de ruídos os vazios construídos na imensidão do planalto. Ao longe, o sol fraco, quase ausente, parece estar guardando o seu calor para outro lugar.

Houve um tempo em que esta cidade lembrava fotografias em preto-e-branco, gatos dormindo na varanda, intermináveis partidas de dominó, pedaços de doce de gila brincando de espalhar sabor pela boca, vizinhos – escorados na cerca que dividia quintais – trocando um dedo de prosa. As vacas mugindo logo ali, no campinho onde a gurizada jogava futebol.

Saudades daquilo que não pode mais ser recuperado. As ruas de chão batido, a argila grudada nos pés, a chuva inesperada, os barquinhos de papel deslizando nas poças d’água. A avenida Presidente Vargas parecia conduzir até outra cidade – onde era impossível ouvir a sirene da Rádio Clube e os sinos da Catedral.

Tardes devoradas no café com mistura, junto com pão feito em casa, roscas de coalhada, queijo colonial, doce de marmelo. Ainda é possível ouvir algumas vozes (cada vez mais distantes) contando as histórias de família, aventuras envoltas em nostalgia, fornecendo a ilusão de que o passado foi melhor do que o presente – esse instante que não parece ter futuro. Quem nos contará, ao redor do fogão de lenha, causos de assombração, as lendas da serpente do Tanque e do tesouro dos jesuítas enterrado no morro do Juca Prudente? Quem se recordará, com paciência e leveza, das profecias de são João Maria e da guerra do Contestado?

Domingo era dia de ir à missa. Uma espécie de ritual civilizatório, todos estavam lá, todos aqueles que não estão mais lá. No início da tarde, matinê no Cine Tamoio ou no Marajoara, farvestão daqueles, daqueles que nunca mais foram os mesmos, mesmo agora, muitos anos depois, quando podem ser vistos na televisão a cabo, apenas para lembrar que algo se rompeu, foi embora.

Ouvir a voz dos lageanos, as sílabas espaçadas, ôôôô de ca-sa! O “l” e o “r” trocando figurinhas (borso, carçado, armoço). A construção da linguagem em sua forma mais primitiva, traços inconscientes do arcaísmo quinhentista português (quequiéra?, tresantonte, trupicou, minhazarminha-du-céu). Não há motivos para se incomodar com o atropelar da gramática, o prazer indelével de arremessar palavras ao mundo – como se fossem canções.

Houve um tempo em que esta cidade lembrava algumas maçãs ácidas. A magia ocorre quando as transformamos em geleias dulcíssimas.

A beleza devastadora de viver em um lugar que chamamos de lar.


Foto do arquivo do Museu Thiago de Castro

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

DECLARAÇÃO DE INTENÇÕES

 


No corpo da cidade estão escondidas muitas histórias. Basta ter sensibilidade para ver e ouvir o que está presente nas ruas, praças, esquinas, vielas, rodovias, dentro das casas, na área rural. Algumas dessas histórias são tristes; outras, alegres. Algumas envolvem multidões; outras, confusões. Algumas nos afastam do mundo objetivo; outras, o tornam suportável. Todas espelham um conjunto de sentimentos que se desloca entre o humano e o fantástico, o sagrado e o profano, o extraordinário e o banal.

A mulher que passa, a mudança das estações do ano, a crise econômica, as vozes daqueles que já não estão entre nós, a chuva repentina, os relacionamentos tóxicos, sonhos, perdas, vizinhos, amor, uma ou várias músicas, filhos, sustos que não passam – tudo é aroma da madeleine molhada no chá de tília. Momentos que dão colorido à vida. E que, de uma forma ou de outra, multiplicam-se no imaginário popular. Quem conta um conto, aumenta um ponto. Na vida não há desconto. Embora algumas situações estejam em permanente liquidação. Viver é perigoso. Muito.

Ao cronista cabe transformar em texto as histórias que chegam ao seu (dele) conhecimento. Ou que ele inventou. Entre o que ouviu e/ou observou ou imaginou existem muitas dificuldades. Hiatos, lacunas, interstícios, entrelinhas, névoas. Na tentativa de resolver os impasses, usando e abusando das liberdades criativas, a solução mais fácil é misturar o que aconteceu com o que gostaria que tivesse acontecido. Funciona – às vezes. Curtos-circuitos fazem parte do show.

O texto precisa ser fluído, capaz de atrair a atenção do leitor da primeira até a última linha. E deve usar uma linguagem acessível, sem expressões que possam causar problemas no entendimento. Cabe evitar palavras em língua estrangeira. Em nenhum momento é apropriado citar bolachas francesas, poemas e jagunços. O distinto público raramente consegue alcançar a extensão das referências literárias e cinematográficas. Melhor usar exemplos da novela televisiva ou do reality show da moda. São recursos que fazem mais sentido, embora (segundo reza a lenda) conduzam em direções contrárias ao esclarecimento.

Outra coisa, a modernidade não tem fôlego para ler textão. Há quem acredite que mais de 500 palavras é aventura destinada aos maratonistas quenianos. Então, por livre e espontânea pressão, a síntese se faz necessária. E isso não é fácil de conseguir. Exige técnica e suor. Ninguém consegue escrever crônica com a mesma naturalidade com que respira. Frequentemente falta ar. Falta tubo de oxigênio. E o texto morre por asfixia. Ou por abandono. Sempre há algo mais interessante para ser visto e/ou lido nas redes sociais. O entretenimento é a chave do sucesso.

Dito isso e omitido aquilo, cabe perseguir o texto onde a palavra exata não seja exceção. Enquanto isso não acontece, e não sei se será possível algum dia, resta continuar tentando. Fracassar outra vez, fracassar melhor. Talvez esse seja o dístico (lema, slogan) adequado ao cronista. E ele que se contente com esse quinhão ou vá plantar batatas no asfalto com enxada de borracha.

A crônica de hoje embrulha o peixe de amanhã, diziam em outros tempos.