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quarta-feira, 30 de setembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXVI)

 


A lixeira do prédio foi o lugar mais longe que visitei ontem. Fiquei enclausurado no apartamento. Exerci, pela manhã, as sagradas tarefas de dono de casa.

Lavei a louça dos últimos dias, uma pilha enorme, consequência do comer e beber durante três dias. Sei que não devia ter deixado a sujeira tomar conta da cozinha. Pratos e talheres que não podem ser utilizados são uma espécie de insulto para os neuróticos por limpeza. No entanto, nesse intervalo, fui tomado por um sentimento que sempre me pareceu qualidade: deixar para amanhã o que não quero resolver hoje. Só fiz alguma coisa quando a única alternativa disponível para continuar a baderna era comprar pratos e copos novos. Percebi que tinha ultrapassado a barreira do bom senso. Então, munido de pano de prato, esponja, detergente e coragem, fui à luta.

Aproveitei a disposição (não é todo dia!) e passei um pano molhado no chão da cozinha. Aquelas manchas fantasmas estavam lá de novo, a decorar o ambiente. Alguém me disse que é assim mesmo, ninguém consegue evitar, e que não é nada importante, apenas o resultado da fusão de um ponto de pó com a umidade. Parece haver lógica nessa tese, mas,... ¡No creo en brujas, pero que las hay, las hay!

Também fiz gelatina – morango. Quer dizer, era isso que estava escrito na caixa. Não descarto a hipótese dos morangos terem fugido antes de ser transformados em pó. Quando abri a geladeira, no dia seguinte, encontrei uma substância coloidal, de cor vermelha e sabor indefinido, mas que, como sempre, foi devorado vorazmente. Sim, eu sei, é difícil deixar de ser criança – inclusive estou planejando dar um passo além das minhas pernas: quero dominar a técnica de fazer gelatina colorida. Estou olhando uns tutoriais. Apesar das sacanagens (em diversos sentidos e direções), há coisas bacanas na Internet.   

Ainda sobre a limpeza do apartamento, deixei para trás duas tarefas importantes: o banheiro e o micro-ondas. Amanhã ou depois, resolvo essas pendências, com certa prioridade para o segundo item: andei esquentando uma carne e, como não tenho prática nesse tipo de atividade, provavelmente deveria ter usado algo que não usei, a gordura se espalhou pelo interior do aparelho. Toda vez que vou esquentar a água do chá, vejo aquilo e prometo que vou limpar, mas,... Aí, que preguiça!, exclama o Macunaíma que habita em mim!

No meio da tarde, fui tomado por fúria insana, parece que baixou em mim um santo escrevinhador. Escrevi quatro páginas sem precisar fazer esforço. Tenho que entregar o texto na próxima semana e estava sem parpite, como se costuma dizer no Planalto Catarinense. Ainda vou ter que acrescentar muitas coisas, refazer frases e parágrafos e equilibrar o esqueleto narrativo. Com sorte e um pouco de mágica, pode ser que fique aceitável. 

Terminei o dia revendo alguns episódios de Big Bang Theory, que considero uma espécie de anestésico contra o estresse. Quer dizer, comigo funciona. Mas, como é de conhecimento mundial, esse tipo de medicação não tem efeito positivo em gente mal-humorada. Dependendo do caso, a rejeição atinge índices similares a um tsunami. Fazer o quê? Algumas pessoas não sabem se divertir.  


segunda-feira, 28 de setembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXV)




Passei o fim de tarde de sábado e quase todo o domingo deitado no sofá, relendo Persuasão, um dos seis romances de Jane Austen. Durante a semana me assustei com as manchetes dos jornais virtuais, resolvi diversas questões familiares e econômicas, escolhi um tema para um pequeno ensaio. Enfim, cheguei ao fim de semana cansado de mim mesmo. Precisava de um momento de trégua.

Assim, fui procurar o descanso na história de Anne Elliot, uma mistura de Patinho Feio com Gata Borralheira. Perto de suas duas irmãs (Elizabeth e Mary), tudo o que ela quer é não ser envolvida em conflitos competitivos. A forma com que o narrador vai conduzindo a história parece induzir o leitor a pensar, em um primeiro momento, que Anne (ao aceitar uma vida sem grandes prazeres e voltada ao auxílio de quem dela precise) está destinada ao ingresso em convento ou à canonização – o que vier primeiro. Falsa impressão, evidentemente.

Com determinação, escrúpulo e lentidão (armas pouco eficazes em outras mãos), Anne – metáfora literária da aranha caçadora – vai tecendo a teia, preparando o terreno para enredar as vítimas. Na hora adequada, tudo se resolve como se fosse ocasional – mas não o é, porque há todo um trabalho (consciente ou não) de transformar o que parecia subserviência em triunfo da microfísica.

Mas esse efeito não ocorre por cálculos refinados de enxadrista talentoso (que, em determinado momento, consegue visualizar a situação final com um olhar e o resto da partida é apenas a concretização do plano previamente esboçado). É o contrário. A passividade de Anne é que vai fornecendo a cadência, e, ao mesmo tempo, alterando o pensamento daqueles que estão ao seu redor. Aos poucos todos percebem que a virtude não é algo evidente, cristalino, e que muitas vezes está escondida atrás da timidez.

Uma das cenas que altera a ordem dos acontecimentos ocorre na praia de Lyme. A conduta dos diversos personagens diante do acidente de Louisa Musgrove determina o restante do andamento narrativo. Mas, evidentemente, não é só isso, há muitas outras coisas em cena, com o agravante de não haver humor. E isso é um problema, porque personagens excêntricos permitem uma maior fluência no desenvolvimento textual. Atribui-se parte do sucesso de Orgulho e Preconceito e Emma a algumas trapalhadas ou situações em que os personagens cometem admiráveis lances de insensatez.  

Como é comum nos romances de Jane Austen, tudo gira em torno de casamento(s). A regra geral diz que a(s) protagonista(s) precisa(m) superar as dificuldades e encontrar o(s) futuro(s) marido(s) e, de preferencia, que seja(m) rico(s). Não há felicidade sem dinheiro, parece afirmar quem narra o texto, embora destaque que o amor é condição indispensável (sempre com bastante conforto). Por isso, esses romances estão repletos de descrições de viagens, jantares, bailes, caminhadas, piqueniques, cavalgadas e acidentes. São os encontros sociais que determinam quem vai casar com quem.  

Na última página, há o encanto. E o fio da harmonia, aquele que sugere que foram felizes para sempre. Nada mal para 310 páginas onde quase nada de importante aconteceu.

xxxxx

P.S: uma das várias adaptações de Persuasão para a televisão foi realizada pela BBC, em 2007. Sally Hawkins e Rupert Penry-Jones nos papéis principais.   

  






terça-feira, 22 de setembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXIV)

 

A Primavera ou Alegoria da Primavera, têmpera sobre madeira, 1482,
de Sandro Botticelli, pseudônimo de Alessandro di Mariano di Vanni Felipepi (1445-1510).


Mudaram as estações, nada mudou

Mas eu sei que alguma coisa aconteceu

Tá tudo assim, tão diferente”

(Renato Russo).


No primeiro dia da primavera, o vento suave, porém frio, penetrou na carne até atingir os ossos. Mesmo assim, fui para a sacada ver as pessoas e os carros que passavam pela avenida.

O mundo não parou, constatei mais uma vez. O movimento continua intenso, um caudal de gente se deslocando, quase todos usando máscara. Seja por segurança ou por medo, a presença dos negacionistas e delirantes se tornou artigo raro. Melhor assim, mas não me iludo, eles existem, e, escondidos atrás das máscaras, aguardam o momento de aspergirem o mundo com Covid-19, hidroxicloroquina e ivermectina.

Antes do almoço, um acidente. Lá na ponte. Nada significativo. Prejuízos materiais e o susto. Barbeiragens. Não foi novidade. Basta alguém estar com pressa ou distraído ou falando no celular. Ou, em hipótese que não pode ser desprezada, a soma dos três motivos. Rapidamente, uma multidão se formou. Enquanto olhavam os estragos, emitiam opiniões sobre quem era o culpado e o que fariam se estivessem em situação parecida. Alguns hábitos nunca mudam.

No final da tarde, fui comprar pastel – uma dessas vontades insanas que aparecem não se sabe de onde. A pastelaria fica perto, uns cinquenta metros de distância, talvez um pouco mais. Antes, vesti o casaco, que a temperatura baixou e o inverno se recusa a ir embora. Não estava bom – o pastel. Gorduroso. Nem mesmo grandes goles de Coca-Cola conseguiram melhorar a situação.

Estou retornando a leitura de Estrela Vermelha (São Paulo: Boitempo, 2020), do Aleksandr Bogdanov, um romance de ficção científica estranhíssimo, escrito em 1908, e que retrata uma viagem a Marte, onde existe um governo comunista. Espero mudar de opinião quando chegar ao final, mas por enquanto me parece pouco atrativo. Talvez seja a linguagem, talvez seja o olhar viciado na literatura de outros escritores do gênero. Talvez seja essa semana, que está a pedir leituras mais convencionais, talvez um romance água com açúcar, desses que naufragam em cenas de encontros furtivos ao cair da tarde, beijos castos e todos os estereótipos que se repetem infinitamente como se fossem grandes novidades. Talvez seja hora de reler Persuasão, da Jane Austen, promessa que vivo adiando faz um bom tempo.

Amanhã ou depois, se o frio desaparecer, o mundo vai ficar colorido, árvores e flores nos mostrarão que, apesar das complicações, a vida sempre renasce. Aliás, esse é o mote da mitologia grega ao celebrar o tempo em que Perséfone deixa Hades (senhor dos infernos) e vai viver por seis meses (primavera-verão) com sua mãe, Deméter (deusa da agricultura e da fecundidade).

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P.S: no final da tarde, precisando escolher entre Quatro Estações, do Antonio Lucio Vivaldi (1678-1741) e A Sagração da Primavera, do Igor Fiódorovitch Stravinsky (1882-1971), fugi da zona de conforto e ouvi uma das músicas clássicas mais assustadoras da história. Foi uma forma estranha de saudar a estação que se inicia e, simultaneamente, me despedir do inverno.  Le roi est mort, vive le  roi!


segunda-feira, 21 de setembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXIII)

 

A Pedra (São Paulo: Lote 42, 2017)


Alguns livros aparecem no mundo sem que se possa lhes oferecer classificação adequada. É o caso do romance do pernambucano Yuri Pires. Narrativa doida (e doída) parece ser a primeira impressão, ou melhor, expressão a ser usada pelo leitor depois que chega à última página, sem saber exatamente o que dizer ou sentir, tamanha é a confusão que se estabelece na mistura de frases, parágrafos, capítulos e emoções.

Aos que possuem algum conhecimento na área do fantástico, cabe lembrar Murilo Rubião e José J. Veiga (aquele de A Máquina Extraviada, conto canônico e canoro nas literaturas que forjam o Brasil). Os dois escritores estão presentes no texto de Yuri. Um pouco de cada um, sem se saber onde e em que quantidade. Mas há também um algo a mais, qualidade particular, e que se traduz em originalidade e inventividade. E se define na construção do nonsense, que chega devagar, modificando o realismo inicial, que parece duradouro, mas que vai erodindo lentamente. Surge uma nova gramática textual, e, em certa medida, uma visão apocalíptica. Átropos, a mais cruel das Moiras, sente prazer ao fechar as cortinas do espetáculo.

O primeiro fascínio é a linguagem. Os diálogos, que preservam o coloquialismo regional fornecem musicalidade, miríades de expressões que não são de uso comum mais ao sul do país – obrigando, aqui e ali, uma espiada no dicionário, que é para não perder o espírito da prosa, gosto estranho, mas saboroso.

Depois, os personagens. Quanta gente! A narrativa está centrada em Ambrósio, criado pela mãe e pela avó (como tantos outros). Ele vai aprendendo aos poucos, como se fossem socos no estômago, que a dor é o principal ingrediente da educação sentimental. Ao se apaixonar por Carminda, a prostituta, demora a entender a lição – e, como compete aos ingênuos, conserva a esperança de que existirão dias melhores.

Ao lado de Ambrósio está Felipe, o menino-bomba. Também aparecem em cena o pastor messiânico, o professor com as teorias da conspiração, o homem que é abandonado pela esposa e se torna alcoólatra, o jornalista que não tem partido (apenas interesses financeiros), a mulher que conversa com os livros porque não acredita mais nas palavras das pessoas. Ao longe, como se fossem guardiões do Estado, encontram-se os coronéis políticos, os Cavalcanti, uma dinastia que se perpetua no poder.

E há a pedra, esse monólito que surge sem qualquer explicação no meio da praça e vai contaminando lentamente a população de Lemuri (antigo distrito de Santa Cruz do Riachão). A imagem catastrófica, se, por um lado, lembra o Césio-137 (Goiânia, 1987) e as explosões dos reatores nucleares (Chernobyl, 1986, e Fukushima, 2011), também produz o reflexo especular do rompimento das barragens mineiras (Mariana, 2015, e Brumadinho, 2019). As situações são semelhantes em suas diferenças, centenas de mortos, a perplexidade tomando conta de tudo e reduzindo a vida ao nada.

Das muitas leituras possíveis, pode-se escolher entre a alegoria que antecipa o embotamento político, a fábula da perda da razão, a parábola sobre a religiosidade capenga e a metáfora que une o capitalismo oportunista e a destruição da vida. Por fim, a lição de que somos constituídos de matéria inorgânica, pedra.   


Yuri Pires

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXII)

 


Há momentos em que o melhor a fazer é não sair de casa, ficar escondido debaixo das cobertas, recusar ver o mundo. Vou contar o que me aconteceu, em desses dias da semana. Precisava passar no supermercado e, depois, levar algumas compras até a casa de minha mãe. Nenhuma novidade, faço isso quase toda semana. Os irmãos estão espalhados pelo mundo e aquele que está mais perto foi presenteado com o que é bom e o que é ruim. 

Coloquei a máscara, desci as escadas e... Na mesa, na entrada do prédio, encontrei vários pacotes com livros. Agradeci o fim da greve dos correios (depois descobri que o fim está longe de acontecer) e subi as escadas. Abri a porta do apartamento, entrei e, no escritório, desembrulhei os volumes. Vi o que havia chegado e fiquei folheando-os, sem a mínima pressa.

Uns trinta minutos depois, percebi que estava atrasado. Recoloquei a máscara, desci as escadas, abri a porta da entrada do prédio e encontrei a rua. Depois de uns dez passos pela calçada percebi que havia algo fora do lugar. A ausência de nitidez do que estava na minha frente revelou o estranhamento: esqueci os óculos.

Voltei. Abri a porta da entrada do prédio, subi as escadas, abri a porta do apartamento, caminhei até o escritório, encontrei os óculos, ajeitei-os no rosto, caminhei para fora do apartamento, fechei a porta, desci as escadas, abri a porta do prédio e caminhei pela calçada. E voltei.

Estava chovendo. Repeti todos os movimentos anteriores, a diferença foi o abrir a porta da área de serviço e escolher um entre os quatro guarda-chuvas. Aproveitei a oportunidade e, no quarto, troquei de sapato. Algum tempo depois estava caminhando pela calçada, guarda-chuva aberto, a garoa molhando o mundo.

Tocou o telefone. Atendi. Instintivamente. Telemarketing. Soltei um palavrão, daqueles que fariam corar anjos barrocos e madonas pudicas. Desliguei. Era só o que me faltava, disse para mim mesmo, como se essa frase fosse suficiente para explicar qualquer coisa.

No supermercado, conferi a lista de mantimentos e fui procurar o suco de laranja, o frango (coxinhas da asa), as frutas. No caixa, paguei com cartão (crédito), porque – mais uma vez – está sobrando mês no fim do meu salário. Levei o carrinho com as compras até o ponto de táxi. Sou freguês assíduo, conheço quase todos os motoristas pelo nome, alguns até fazem desconto, talvez por simpatizarem com esse trapalhão que sequer sabe dirigir.

Ganha um doce quem adivinhar a cena seguinte. Todos os táxis estavam em lugar incerto e não identificado. Outro palavrão – defendo (e pratico) a tese de que não devemos reprimir as emoções.   

Depois de uns trinta minutos, consegui levar a encomenda até o destino. Voltei ao supermercado, comprei o almoço em um dos restaurantes anexos e fui para casa, sem me importar com a chuva – que tinha aumentado. 

A cereja do bolo apareceu quando liguei a televisão para ver o jornal. Tinha som, não tinha imagem. Não foi a primeira vez que isso aconteceu. Talvez precise comprar uma nova – embora não seja artigo de primeira necessidade. Em todo caso, mais uma despesa.

Era melhor não ter saído de casa.   



quinta-feira, 17 de setembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXI)

 


O racismo é um dos nós górdios da brasilidade. A dívida histórica que o país contraiu com os descendentes de escravos costuma gerar um grupo de negacionistas e, consequentemente, acentua a discriminação. Quem tiver dúvidas sobre o tema, antes de qualquer chilique, por favor, consulte as informações disponíveis sobre renda familiar, empregos, habitação, grau de escolaridade, número de presos, etc.

Sem se ater sobre os fatos históricos, nem efetuar uma análise sociológica desse fenômeno, visto que muita coisa foi escrita e/ou discutida sobre o tema, o que chamou a atenção, recentemente, foram três acontecimentos que não receberam a devida atenção da mídia.

Em medida cautelar (e que, portanto, precisa ser confirmada pelo colegiado), o Ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Eleitoral, decidiu que os partidos políticos devem incentivar as candidaturas de pessoas negras nas eleições municipais de 2020. Ou seja, os negros terão direito ao financiamento de campanha e tempo de propaganda eleitoral gratuita no radio e na televisão em patamar proporcional aos candidatos brancos.

O vereador Fernando Holiday, nome político de Fernando Silva Bispo, filiado ao Partido Patriotas, apresentou, na Câmara de Vereadores de São Paulo, um Projeto de Lei para extinguir as cotas raciais nos concursos públicos da cidade. Alega que o sistema estigmatiza os negros, excluindo-os do mercado de trabalho. Quando percebeu que não teria os votos necessários para que o Projeto fosse aprovado, preferiu desistir de levá-lo a plenário. (Obs.: Fernando Holiday é negro).

Em partida pelo campeonato francês de futebol, Neymar da Silva Santos Júnior (Paris Saint-Germain) se desentendeu com Álvaro Gonzáles Soberón (Olympique de Marseille). Após ser expulso da partida, por agressão física, o brasileiro acusou o espanhol de racismo. Em contrapartida, a televisão espanhola recuperou parte da briga entre os jogadores e, através de leitura labial, acusou o jogador brasileiro de homofobia.

No conjunto, esses três episódios revelam que a questão é complexa. E que está longe de ser solucionada. Enquanto a paridade entre os candidatos na eleição municipal estabelece (discutível) equilíbrio nas candidaturas, a proposta do vereador paulista beira o nonsense. Querer destruir a possibilidade de acesso de um grupo que costuma ser preterido (exatamente pela cor da pele) somente se tornou possível em um tempo em que os valores foram invertidos.

O último caso merece uma análise mais detalhada. Alguns anos atrás, perguntado sobre o tema, o jogador do PSG negou ter sido vítima de racismo em qualquer momento de sua carreira e, mais interessante, declarou que não era negro. Na época, houve quem perguntasse se o efeito Michael Jackson havia atingido o rapaz. Como o autoengano é comum naqueles que vivem em um mundo particular e o futebol é uma terra sem lei (principalmente porque o jornalismo esportivo costuma ser parcial), a contradição foi jogada para debaixo do tapete. Na semana passada, Narciso olhou no espelho e viu que a imagem não correspondia à projeção do ego. Deve ter sido um choque para o jogador descobrir que não é branco – e, pior, só tomar conhecimento desse fato na França, que, como se sabe, é um país civilizado (embora trate mal os estrangeiros). Se o zagueiro espanhol o fez perceber que nem tudo é bonito e glamoroso (ou ele, em ritmo cai-cai, resolveu transferir a culpa pela derrota de sua equipe), o que é que se deve dizer sobre o comentário a respeito da sexualidade de Álvaro Gonzáles? Um preconceito não substitui o outro. A coerência nunca foi a principal qualidade dos jogadores de futebol (independente da cor da pele).    





domingo, 13 de setembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLX)

 


Fui dormir depois das cinco horas da manhã.  Decidi terminar a releitura de 1984, o clássico distópico de George Orwell. Então, enquanto os olhos devoravam páginas e mais páginas de um livro angustiante (principalmente na parte final), o tempo foi sendo diluído e quando cheguei à última página (completamente atônito com as semelhanças com o mundo contemporâneo) estava amanhecendo.

Resultado: dormi a manhã inteira. E fiquei entediado o resto do dia. Nem mesmo o futebol me salvou do aborrecimento. O Santos jogou ontem à noite e não tenho interesse pelas outras equipes do campeonato da primeira divisão. Trocando em miúdos, a tarde e a noite foram uma interminável inércia dominical.  

Pensei em sair para caminhar, mas consegui controlar a ansiedade. Amanhã terei que resolver duas questões estressantes na rua, então o melhor a fazer foi ficar em casa, escutando música e assistindo vídeos de Big Bang Theory. O patético Sheldon Cooper me diverte. No intervalo entre uma coisa e outra, fiz o que costumo fazer nesses momentos: tomei chá, comi gelatina, fui para a sacada olhar o movimento na avenida, pensei em temas que podem ser desenvolvidos em algum texto.

Também acessei vários blogs (e canais no Youtube) de literatura – na vã esperança de encontrar alguma novidade, mas, infelizmente, quase todos parecem interessados em promover os livros editados por clubes de leitura (muitas reedições ou aquela água de flor de laranjeira que dá enjoo). Nada tenho contra o que está na moda. Ao contrário, o parquinho não deve ter restrições e a diversão está liberada para todos. O importante é ler. Quanto mais leitores, melhor o mundo. Evidentemente, tenho esperança de que o leitor de Agatha Christie ou de H. P. Lovecraft possa – em algum momento – mudar as referências e descobrir que existem outros autores no horizonte.

Antes que alguém me entenda de forma atravessada, informo que não estou defendendo (neste instante) os clássicos. Longe disso. Os livros canônicos são para outro público (ou talvez para o mesmo, mas essa é uma escolha que deve ser feita pelo leitor). Lembro que Mestre José Paulo Paes, nos anos 80, em ensaio exemplar, afirmou que a literatura de entretenimento estava em falta no Brasil. Passou muita água por debaixo da ponte nesses 60 anos. No momento existe outro panorama na literatura brasileira contemporânea. Foram publicados (na virada do século e depois) muitos romances e contos de ficção científica, góticos, fantasia, temas policiais (e similares). Quase todos estão disponíveis em e-book. Então, o problema não é o acesso.  

Voltando ao 1984, que devo ter lido no final da adolescência, o que me assustou foi a atualidade do livro (publicado originalmente em 1949). O leitor não necessita fazer analogias ou tentar decifrar as metáforas. O texto não utiliza esses recursos. As descrições são lineares, sem qualquer tipo de malabarismo narrativo. O que impressiona é a soma gradativa de tensões em cada linha, em cada parágrafo, e que deságua em lavagem cerebral. Outro tópico assustador é o sistema de vigilância, promovido pelo Estado, e que reflete algumas práticas cotidianas, câmeras de segurança em todos os lugares. Em nome da proteção da propriedade, a vida perdeu o significado e a intimidade desapareceu. A liberdade se transformou em conceito abstrato, mera figura de retórica.

Alguns leitores evitam esse tipo de literatura. Alegam que, em tempos de pandemia, não convém ampliar a depressão. É um argumento.   

 

George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair (1903-1950)




sexta-feira, 11 de setembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLIX)

 


Estou com as costas em pandarecos. Não sei de onde surgiu a expressão pandarecos, era muito comum algum tempo atrás, fui ao dicionário verificar o significado, tá lá, assim mesmo, no plural: estilhas, frangalhos, destroços, pedaços. Enfim, a palavra serve para contextualizar a bobagem que fiz ontem.

Resolvi colocar as estantes com a literatura brasileira em ordem. Coisa pouca, o trivial básico. Ninguém que quer se especializar em um assunto escapa dessas armadilhas – e, antes que alguma voz se pronuncie em defesa da modernidade, declaro minha aversão literária aos instrumentos digitais, PDFs, Kindles e demais quinquilharias. Gosto de livros com vida – isto é, com capa, textura de papel, cheiro e peso. Na minha concepção, os personagens somente adquirem substância e densidade no livro físico.

(Preciso abrir parênteses para relatar que uma de minhas maiores angústias ocorreu quando li, no excelente Ex-Libris – confissões de uma leitora comum, da Anne Fadiman, vários exemplos de loucuras cometidas por leitores excêntricos. Um dos que mais me assustou foi o de seu pai, um leitor voraz, que, para diminuir o peso dos livros que carregava, rasgava os capítulos lidos e os jogava no lixo. O retorno da barbárie foi o mínimo que pensei.).

O fato que importa nesta narrativa é que, nos últimos tempos, eu ia retirando os volumes do lugar, e, depois, os amontoava em cima da mesa, a velha bagunça de sempre. O mesmo acontecia com as novas aquisições. Acabei transformando a área onde está o computador em uma ilha. Mais do que isso, fiquei asfixiado. A situação exigia uma atitude. E de forma imediata e efetiva.

Fiz o que precisava ser feito. Separei os volumes em ordem alfabética por sobrenome de autor e fui tentando encaixá-los entre os outros livros. Inevitavelmente, precisei afastar alguns para a próxima prateleira. E, nesse ritmo, fui executando a tarefa, durante umas duas horas. O problema é que esqueci que não tenho mais 18 anos. Lá pela letra D, o suor escorrendo pelo rosto, sentei no sofá e pedi água. Literalmente. Foi nesse momento que percebi, pela primeira vez, que algo estava errado. Mas, como compete aos heróis das histórias em quadrinho, ignorei os sinais de perigo e prossegui – acreditando no mito de que apanhar faz parte da luta, no fim o mocinho sempre vence, não importa a profundidade das cicatrizes.

Depois da pausa e da hidratação, retomei o serviço. Mas, sem o mesmo empenho. Uma dor – de difícil localização – começou a incomodar. Fiz de conta que era uma bobagem sem maiores consequências. Foi um erro.  

Na letra T acabou o espaço de manobra. Em outras palavras, precisarei comprar novas estantes. Os autores que o sobrenome começa com as letras U, V, X, Z, Y e W estão temporariamente amontoados em cima de outros livros.

De uma forma ou de outra, consegui implantar o suave tédio da ordem (nas palavras de Walter Benjamin). Obviamente, não esqueci que todo esse esforço está ligado ao temporário. Amanhã ou depois vou precisar olhar esse ou aquele texto e, mesmo que consiga ter um mínimo de disciplina, a desordem será restabelecida, confirmando que o caos sempre vence. 

O que parece ser permanente é a dor nas costas. Antes de dormir, tomei um relaxante muscular. Dose dupla. A doce ilusão de que uma noite de sono seria suficiente para resolver a questão. Acordei pior. Dói tudo e mais um pouco. Estou velho.






segunda-feira, 7 de setembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLVII)

 


Minha mãe recheava dois pedaços de polenta com queijo, empanava tudo em ovo e farinha, e fritava. Era mágico. E delicioso. Nunca mais encontrei esse conjunto de sabores.

Essa comida rústica (e, ao mesmo tempo, sofisticada) era servida quente. Ao primeiro corte, o queijo derretido se espalhava pelo prato. Naquele tempo, minha família não comprava queijo no supermercado – sequer conhecíamos essas fatias amarelo-desmaiado, insípidas e ricas em conservantes, envoltas em plástico, e disponíveis nas seções de frios. Tampouco a fiscalização sanitária se incomodava com a produção rural e com o controle de qualidade. O laticínio usado por todo mundo era o queijo de colônia (colônia de bactérias, como costuma dizer a mãe de Mítia). No Mercado Público ou no armazém da esquina era possível adquirir um pedaço (quase sempre a metade) de umas peças redondas, pesadas, e que tinham mil e uma utilidades (sanduíches, macarronadas, para comer com goiabada, etc.). De acordo com o método de produção, era possível encontrar alguns queijos mais salgados ou mais insípidos, mais “curados” ou mais “verdes”. Variedade nunca foi um problema.

Estou lembrando o passado distante, mais de 45 anos, quase 50. A resistência bacteriológica da população também era outra. As crianças andavam descalças, as ruas eram de chão batido, ninguém ficava doente por caminhar na chuva e os brinquedos não exigiam pilhas alcalinas extra-hiper-super-mega-potentes. Tudo era mais simples (claro, isso não quer dizer que era melhor).

Depois, com o passar do tempo e das experiências, as preocupações dos adultos se transformaram em problemas para todos. E tudo ficou mais confuso. E menos calmo. A inocência se perdeu na necessidade de encontrar mecanismos de sobrevivência.

Quando a tempestade familiar passou, após cerca de dois anos de afastamento, voltei a morar com minha mãe. A polenta com queijo foi ficando para trás, nessa corrida de obstáculos que é a vida. Ela só fazia esse prato em ocasiões especiais (um ou outro aniversário ou quando a insistência era insuportável). No geral, costumava dizer que dava muito trabalho, que podíamos comer coisa melhor – mesmo que fosse apenas ovo frito.

Não foram poucas vezes em que as dificuldades econômicas atropelaram os nossos sonhos por boas refeições. Os bifes à milanesa eram escassos, mas sempre bem-vindos. O mesmo se pode dizer das lasanhas, naquelas travessas de vidro enormes, que saiam do forno fumegando odores e sabores. Dobradinha (bucho) era presença constante, possivelmente uma vez por semana (inclusive porque era comida barata). Apesar de todas as dificuldades, sempre tinha alguma sobremesa: doce de gila, figo em calda, sagu de vinho, arroz doce, gelatina, fruta (banana ou bergamota). Chocolate só era possível no Natal ou na Páscoa. Refrigerante era uma ficção somente ao alcance dos ricos. Ao nosso alcance estavam Q-Suco, capilé, limonada, suco de laranja (raramente). Ou água.  

Agora, que Dona Vina abandonou os afazeres da cozinha, percebo que era nas refeições que amarrávamos os sentimentos. Nada muito explícito. Nunca fomos de distribuir beijos e abraços como se fossem balas de hortelã. A vida nos ensinou que o afeto produz vulnerabilidades.



sábado, 5 de setembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLVI)



Lavar a louça me aproxima da filosofia. O calor do corpo contrasta com o vidro e a porcelana de copos e pratos. O tempo e o espaço são engolidos por um vórtice difícil de definir. Olho para as mãos molhadas e percebo que a (minha) vida está pulsando. Sêneca e Epicuro (que li em tempo pretérito) voltam a fazer sentido.

Contei nove colheres, três garfos e cinco facas. Deve existir alguma explicação lógica para essa falta de proporção. A grande dificuldade está em entender porque usei mais um talher e menos o outro. Poderia rastrear as últimas refeições, investigar quantas vezes abri e fechei a gaveta onde essas ferramentas estão guardadas. Não há necessidade de fazer isso. O desejo não está voltado para essa direção.

Ninguém lava a louça duas vezes na água que escorre pela torneira. Imagens e pensamentos aparecem e somem na medida em que o trabalho vai sendo realizado. A ação mecânica do ato doméstico (não) corresponde à sensação de que tudo está envolto pelo transitório. A espuma que encobre o prato (que em algum momento esteve sujo) sinaliza que algum tipo de perda está próximo. Limpar a louça significa produzir outra realidade, atravessar o momento de conflito e descobrir que os afetos desequilibram o controle das emoções. Ter consciência de que, em algum momento, a dor terá consistência e espessura.

Nada perdura. Tudo existe (em algum momento ou dimensão). A luta consiste em perseguir o entendimento que foge a cada instante, que não se deixa apreender. Em alguns momentos, o sinônimo do existir é o esquecimento.    

Diante da pia, algumas analogias. Ao manejar o pano de prato surgem figuras, sombras e sobras. Os fantasmas. Seres que anunciam o horror. Ou o fim do mundo. Que no es lo mismo / pero es igual, como cantou um dos muitos menestréis de América Latina. Difícil manter a serenidade e o estoicismo diante das urgências do agora.

Talvez seja sensato viver cada dia como se fosse o último. Sem pressa, sem se ater aos interesses daqueles que querem comprar e vender mercadorias como se fossem artigos necessários para garantir a felicidade. A ilusão não pode ser uma proposição existencial, mas também não pode impedir a utopia.

Terminada a tarefa, os pratos, os copos e os talheres limpos, o cenário se modifica. Restam muitos fiapos do pensamento, fragmentos da busca intelectual, e a certeza de que o caos do mundo jamais será domesticado. O vazio se estabelece como uma brasa dormida. De qualquer forma, amanhã recomeço. 

     

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLV)

 


Winston Smith, funcionário do Ministério da Verdade, retifica, diariamente, alguns dados oficiais. Em todas as publicações que usaram esses números, ele os substitui pelo último informe do Ministério da Pujança. Em seguida, descarta as informações anteriores, impedindo que a nova versão seja contestada.

Os discursos também são adaptados para se enquadrarem na nova situação. Ao eliminar os erros, os equívocos, as imprecisões e toda e qualquer distorção que possa existir no pensamento do Grande Irmão, garante para a posteridade a expressão absoluta da verdade – ou daquilo que se pretende que seja a verdade.     

Esse tipo de emenda também incide em relação aos nomes daqueles que – citados no texto que foi expurgado – caíram em desgraça. Infelizmente, por diversos motivos, algumas pessoas são incapazes de corresponderem aos anseios do partido. Nada mais resta ao Estado senão “vaporizá-las”.   

O horror está presente em diversos momentos do romance 1984, de George Orwell, publicado em 1949. Mas, no trecho descrito acima, e que foi inspirado no revisionismo stalinista, percebe-se a antecipação dos conceitos contemporâneos de pós-verdade e fake news. Para o Estado (e para aqueles que utilizam o governo para se manterem no poder), os fatos (verdadeiros ou não) perderam a relevância. Não servem sequer como curiosidade histórica. E, por isso, precisam ser eliminados administrativamente. Nenhum traço do passado que deixou de interessar deve ser conservado. Cabe abastecer a população com documentos constantemente atualizados – e que autenticam os interesses do agora.

Uma das principais características de uma significativa camada da população consiste no cultivar da amnésia. A ignorância é uma benção divina (quanto menos se souber sobre qualquer assunto ou tema, maior a probabilidade de atingir a felicidade – dizem os estudos sobre comportamento social). Com o passar do tempo, os indivíduos vão abrindo buracos da memória, esquecendo o passado e aceitando como expressão do real aquilo que é endossado pelo Estado.  

Mesmo assim, apesar da repressão e de muitas ameaças (veladas ou explícitas), ocorrem algumas dissidências e, consequentemente, a contestação das comunicações governamentais. Independente da correção desse proceder, algum tipo de punição sempre ocorre. A Lei (que é um dos tentáculos do governo) não admite ser contrariada.  

Qualquer analogia com o atual governo federal não será mera coincidência. Os sistemas totalitários nunca desaparecem, confirmando o axioma hegeliano de que a História se repete no mínimo duas vezes; ao que Karl Marx acrescentou: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.

Estamos na era do farsesco. Ou do simulacro. A ideia de usar uma régua particular para negar as experiências do passado significa construir alternativas sem identidade e sem estrutura. Provavelmente desabará em pouco tempo. O exemplo mais trivial dessa tese está no esforço que fazem para “cancelar” Paulo Freire – o educador mais importante da História brasileira.

Em síntese: querem obter a tabula rasa instituindo o palimpsesto.





terça-feira, 1 de setembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLIV)

 


Setembro começa hoje e anuncia, timidamente, que a primavera também está chegando. O céu está encoberto, uma metáfora dos tempos sóbrios que estamos vivendo. Em breve as flores e as folhas darão algum colorido ao mundo. Mas, exceto a mudança climática, nada de significativo está desenhado no horizonte. Aparentemente, tudo continuará igual.

Os jornais alardeiam que vacinas contra o Covid-19 estão sendo desenvolvidas por diversos laboratórios. Mas, ressaltam que os testes ainda não terminaram e que, se essa fase for bem sucedida, a produção em larga escala ainda vai demorar. Alertam que janeiro como meta pode ser muito otimista. Enquanto isso, as curvas estatísticas da necropolítica continuam oscilando – e assustando. É necessário ter nervos fortes para suportar o massacre diário.  

Salvo engano, 2020 será lembrado pelas próximas gerações (se houver próximas gerações) como um momento de impasse entre o utilitarismo tecnológico e a necessidade de adotar medidas profiláticas para a preservação da vida. Vitória do primeiro grupo, evidentemente.

Nada contra o progresso (seja lá o que isso for). Alguns grupos de analistas garantem que a qualidade de vida no século XXI evidencia superioridade ao século XIX. E citam, para comprovar essa tese, os avanços da medicina, da agricultura, da construção civil, da informática e dos direitos civis. Quem interpreta a modernidade frequentemente se esquece de citar os itens que permanecem inalterados (racismo, feminicídio, homofobia, desigualdade de gênero, genocídio indígena, salários aviltantes, etc.). Gostariam que essas questões não fizessem parte da discussão.

O cinismo capitalista não possui limites. Na hora da discussão teórica, todos proclamam que o direito à vida é inalienável e que devem ser realizados todos os esforços possíveis para mantê-la. Na hora da prática, o que interessa é o som das moedas (a soma entre a produção e o consumidor é igual ao lucro). Simples exercício de ética flutuante.

Contemporaneamente, o mercado determina o valor dos indivíduos. Isto é, quem deve viver e quem deve morrer. As regras do jogo (poucos percebem que as cartas estão marcadas) estabelecem quem tem direito ao mercado de trabalho e quem deve procurar soluções alternativas. “Cidadãos de segunda classe” dificilmente terão acesso às vacinas (ou algum antidoto) – confirmando que o Estado não está interessado em fornecer qualquer tipo de assistência médica à população em situação de vulnerabilidade ou que possua baixa renda mensal.

No momento em que ficar comprovado que a barbárie venceu a civilização, também se descobrirá que as portas da cidadela não foram arrombadas, mas sim abertas por dentro. Além das trapaças com cavalos de Troia, há traidores em todos os cantos.   

Por enquanto, para aqueles que estão enquadrados nos diversos “grupos de risco”, cabe esperar pela primavera ou pela morte – o que vier primeiro.