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quinta-feira, 25 de novembro de 2021

SAUDADES DAS AGLOMERAÇÕES CULTURAIS

 


Frequentar vernissages e lançamento de livros era um dos esportes mais interessantes da vida cultural noturna. Era. A pandemia mudou essa forma de interação social, transportando os encontros para o mundo virtual. As lives e a ausência de materialidade dos streamings (um novo não-lugar) eliminaram ruídos e espaços para desavenças (a acomodação é uma espécie de câncer cultural). O contato humano (pele que transmite calor para outra pele) desapareceu e foi substituído pela atuação teatral diante da câmera. Todos se comportam como se estivessem em casa de chá. Tudo ficou anêmico.

As reuniões presenciais eram boas desculpas para ampliar o convívio social, praticar a trambicagem artística, estabelecer parcerias comerciais, fingir interesse pelas questões educativas e, se os deuses permitissem, iniciar algum contato amoroso (mesmo que fosse apenas por uma noite). Enquanto esses planos (modelo Dick Vigarista) eram colocados à disposição do distinto público, cabia se servir de bebidas alcoólicas e salgadinhos diversos. A qualidade dos quitutes  (queijos e embutidos, todos de procedência duvidosa) dependia do poder aquisitivo do artista ou dos patrocinadores do evento. O mesmo vale para o vinho que oscilava entre um chardonnay australiano e aquele tinto de garrafão, comprado no atacadista da esquina. No segundo caso (muitas vezes no primeiro), alguns convidados e penetras (mais aquinhoados pela vida econômica) costumavam levar aquelas garrafinhas de metal, escondidas no bolso interno do paletó, cheias de uísque ou conhaque de boa procedência – medida paliativa para evitar problemas hepáticos no dia seguinte.

Por pior que fosse o sortimento de acepipes, cabia forrar o estômago com euforia – a jornada era longa e as tentações, inúmeras. Depois do evento, a inevitável parada no boteco de preferência era de lei. Aditivados por incontáveis canecas de cerveja estupidamente gelada, ninguém poupava ninguém e os comentários politicamente incorretos não sofriam censura. Nada muito maldoso, apenas o necessário para firmar posição contra os medíocres. E isso incluía, em 99% dos casos, o artista e grande parte da lista de convidados.  

Recentemente, tomando todos os cuidados necessários (máscara, álcool em gel, distanciamento social) fui ao lançamento de um livro. Foi bom  porque estava com saudades de ver gente com quem se tem um mínimo de afinidade. Foi uma decepção  porque além de não oferecerem algum tipo de petisco, serviram água mineral (sem gás!). Parecia reunião dos Alcoólicos Anônimos (AA). Como é possível desenvolver a conversa sem poder “molhar a palavra” (como dizia um amigo)? Como é possível se livrar de um chato sem a boa e velha desculpa de pegar um pastelzinho na bandeja que adeja nas mãos do garçom?   

Encontrei uma cadeira no fundo da sala, próxima da janela, e lá fiquei fazendo pose de voyeur, triste compensação para quem não podia dispor, naquele momento, da sempre bem-vinda tonturinha alcoólica. Esporadicamente trocava algum comentário com os conhecidos. Mas, o ambiente não apresentava intensidade ou estímulo para diálogos mais significativos.

O que eu queria, naquele momento, era sair dali o mais rápido possível e ir para casa: a cerveja estocada na geladeira estava me chamando. Foi o que fiz – logo depois de conseguir o autógrafo do autor.   

 

terça-feira, 23 de novembro de 2021

LAGES: 255 ANOS

 


A aventura protagonizada pelo Capitão-mor António Correa Pinto de Macedo (1719-1783), sob as ordens do Morgado de Matheus, Luiz António de Souza Botelho Mourão (1722-1798), teve inicio em 22 de novembro de 1766. Nessa data foi fundada a Freguesia de Nossa Senhora dos Prazeres das Lagens (elevada à condição de Vila em 1768), situada nas margens do rio Carahá, e próxima do rio das Caveiras. A vila foi desmembrada da Capitania de São Paulo em 1820. Mais tarde se transformou em cidade. A população se multiplicou.

 

Mas, até que isso acontecesse foi necessário superar muito perigos: animais selvagens, assaltantes e a resistência indígena. As ameaças de invasão das tropas do reino de Castela e Aragão (mais tarde, Espanha) também eram uma preocupação. Foram tempos difíceis para aqueles que desbravaram a região. O sucessor do fundador, Capitão-mor Bento do Amaral Gurgel Annes (1730-1812), que administrou a Vila entre 1787 e 1802, precisou ser enérgico e corajoso. O mesmo se pode dizer dos governantes seguintes.

 

Muitos anos depois, a cidade que, em certo momento, esteve dividida entre Colorados e Guarani “até debaixo d’água”, entre quem gostava de Crush ou de Capilé, entre quem ia ao cinema no Tamoio ou no Marrocos, foi unificada por Plínio Lürsen (aquele que deixava os adversários “comendo poeira”), Agostinho Malinverni Filho, Nereu Ramos, Vidalzinho e muitos outros. Sem esses personagens, a história de Lages seria mais pobre. Foram eles, os herdeiros dos desbravadores, que testemunharam a evolução do município e um de seus momentos mais emblemáticos, o ciclo da madeira (que misturou as palavras pinheiro e dinheiro). O que aconteceu depois ainda está para ser contado pelos historiadores e ficcionistas.

 

No aspecto geográfico, assim como Roma, Lages está cercada por sete colinas. Era isso o que dizia o escritor Marcio Camargo Costa, citando o Morro Grande, o Morro do Posto, o Morro do Sabão, o Morro do Tributo, o Morro do Juca Prudente, o Morro da Curva da Morte e o Morro que leva aos (atuais) bairros Ipiranga e Petrópolis. Talvez essa afirmação precise de correção, talvez ele tenha esquecido alguma coisa. O que importa saber é que a planície é uma ilusão – e, assim como a vida, está cheia de altos e baixos.

 

Há compensações em morar no interior de Santa Catarina. Poder olhar para o horizonte, um azul que parece pintado à mão, uma diversão da natureza, o sol multiplicando as cores, as flores e as nuvens (um convite para brincar de adivinhação), é um prazer que não se repete em outros lugares. E que se soma com outras qualidades, como a pureza da água e do ar. A vida, neste canto do mundo, é um encanto. O progresso e a tecnologia não eliminaram as delícias que são andar descalço na grama, visitar os familiares, namorar na praça, comer pão feito em casa. Tampouco excluíram o uso de expressões regionais como "homi du céu", "djáoji", "trezantonte" e "bombiá". Lages é o que é e há certo orgulho em ser assim.

Nesses 255 anos de existência de Lages, unindo a nostalgia, a saudade daqueles que não mais estão aqui, os amores, os amigos, as histórias complicadas, sobrou a sorte de morar em uma cidade que sempre conseguiu superar as adversidades, que nunca teve medo do futuro. 


segunda-feira, 22 de novembro de 2021

DANIEL LUCENA (1960 - 2020)


Louise Lucena, Daniel Lucena, Francisco José Soler de Matos
e Valéria Lucena em algum festival estudantil de música.  


No passado distante, talvez entre 1975 e 1977, fui colega do Daniel Lucena no Colégio Industrial de Lages (CIL). Não posso dizer que éramos amigos. Embora estudássemos na mesma sala, conhecidos me parece mais adequado. Mas isso provavelmente é culpa minha, sempre fui arredio a certas demonstrações de afeto. Além disso, conversávamos muito pouco, provavelmente porque tínhamos preocupações divergentes. Ele demonstrava grande interesse pela música (fazia parte de uma banda, dessas que se apresentavam em festivais) e eu passava todo o tempo livre na Biblioteca Pública, lendo e escrevendo.

Estivemos próximos em uma ocasião em especial. As professoras de português do CIL, Vânia Albuquerque e Célia Regina Ranzolin, inventaram um concurso literário. Não sei se desejavam movimentar a vida dos estudantes ou se estavam entediadas com o esquema quadro-negro e decoreba que caracterizava o ensino formal da época. Nós dois, além de dezenas de outros alunos, nos inscrevemos na competição – que foi realizada no Salão Nobre do CIL (que também era a sala de recreação). Convidaram o Nereu de Lima Goss (1924–2004) para ser um dos jurados. Talvez outras pessoas, além das professoras, fizessem parte da banca julgadora, mas não me recordo de ninguém.

Daniel apresentou uma proposta muito diferente da minha. Ele apostou em uma crônica satírica sobre o ensino profissionalizante. Eu escrevi um poema que defendia a consciência social em um mundo que (na minha visão) estava em ruínas. Felizmente, para o bem da literatura, as duas “obras de arte” não existem mais.

A parte chata da programação estava na apresentação do trabalho. A vítima precisava subir em um estrado e ler o texto diante de quase toda a escola. Exigia-se boa dicção e simpatia. Nisso nós também nos diferenciamos: ele era um sujeito extrovertido, que não tinha medo da plateia; eu, tímido, mal consegui ler o poema, queria era fugir daquele lugar o mais rápido possível.

Depois de deliberarem sobre a qualidade do material apresentado, os jurados resolveram premiar os nossos escritos. Não lembro qual foi o prêmio. Talvez um ponto a mais na média mensal. Tenho certeza que não foi dinheiro. Também fomos publicados no jornalzinho da escola (editado pelo Centro Cívico), que era uma folha A4 dobrada ao meio, mimeografada a álcool. 

Uns dois ou três semestres depois, deixei o CIL no meio do ano e fui tentar resolver minhas crises pessoais em outro lugar. Possivelmente, Daniel  terminou o curso secundário no CIL.

Fiquei muito tempo sem ter notícias dele. Em algum momento, vários anos depois, e não sei precisar quando, descobri que era o vocalista e o principal compositor do Expresso Rural (provavelmente o grupo musical mais importante da história de Santa Catarina). Mas, quase nada sei sobre como isso se tornou possível.

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Fui, dia 20 de novembro, ao lançamento de Algum caminho que me leve ao sul, a biografia autorizada de Daniel Lucena, escrito pelo psicólogo Felipe Rigon Borba. O evento aconteceu no Casarão Juca Antunes (esquina das ruas Benjamin Constant e Coronel Córdova) e contou com grande público. Aos poucos a vida cultural da cidade vai retomando o seu rumo.



quarta-feira, 17 de novembro de 2021

MIOSÓTIS E O BETÃO DA PENHA (versão modificada)

 


Vestindo a bombacha suja, arregaçada na perna esquerda, tomando a sua cervejinha básica de toda hora, ali no balcão do bar Grenal, Adalberto Medeiros Silva e Souza, o Betão da Penha, viu Miosótis passar. Quer dizer, naquele momento, ele não sabia que a moça se chamava Miosótis, mas com aquele ar de delicadeza só podia ter nome de flor.

Betão deixou sobre o balcão uma nota de dez reais e, tastaviando, saiu à rua. A mulher tinha desaparecido na multidão. Quer dizer, pela rua caminhavam umas cinco ou seis pessoas, mas nenhuma delas era Miosótis. Como acontece nesse tipo de situação, a ausência instalou uma fenda no peito de nosso herói. Buraco que ele tentou preencher com um Amazonas de cervejas, quando voltou ao balcão do boteco. Só tentou. Um sentimento complicado impediu a inundação. Será possível sentir saudades de uma mulher que lhe era − até aquele momento − estranha?

Betão sentiu medo. Para aquele que anulava os finais de semana domando touro e cavalo, medo era uma palavra difícil de aceitar. E, por mais estranho que isso possa parecer, Betão estava com medo. Medo de se apaixonar.

Foi então que o seu olhar, até aquele instante vago e incerto, se encheu de alegria e esperança. Ele viu, na parede do bar, um cartaz da festa do Pinhão. Não sei se foi a cerveja, o destino ou pura sorte, mas ele teve a premonição, naquele instante, de que Miosótis estaria lá, na festa. Recuperou a consciência e a lucidez. E tomou uma decisão. Iria à festa. Iria encontrar aquela prendinha mimosa qui nem orquídea na encosta da serra, qui nem pelego em noite di inverno, qui nem....

Para comemorar essa decisão, solicitou ao garçom uma garrafa de água mineral. Sem gás. O garçom ficou apavorado com o inusitado do pedido.

Durante a semana, com o olhar de cachorro pidão, Betão aguardou. Aguardou pelo dia da festa. A espera corroeu a alma, atiçou a úlcera que cultivava com carinho e o tornou irritadiço. A isso devemos acrescentar outros horrores: roeu unhas, se alimentou mal, empalideceu. Como um personagem romântico, sofreu de amores.

No sábado, por cima da camisa de seda amarela, fez questão de usar um lenço colorado. E assim vestido, como um piá que vai para a primeira comunhão, esticou as canelas até o Parque de Exposições do Conta Dinheiro.

Mal chegou lá, encostou-se no primeiro balcão que viu e, pra firmá o purso e diminuí o nervoso, pediu um liso de cachaça. Depois, tomou uma cerveja − para rebater.

E teria ficado ali durante uma eternidade se não tivesse encontrado um amigo de infância. Começaram a contar causo dus antigamente. Betão se distraiu e a conversa ficou loca di especiar, qui nem dinhero achado.

Depois de umas dez cervejas e duas porções de linguiça frita, Betão foi procurar pela futura namorada. Queria conquistar aquele coraçãozinho de gazela.

No quiosque do Gervásio pediu um engradado de cerveja e disse, em alto e bom tom, para quem quisesse ouvir, que o amor precisa ser comemorado como uma dádiva divina. Em seguida, mandou distribuir pra xiruzada macanuda metade das ampolas. A outra metade fez corredeira na garganta de Betão. Pelo entusiasmo, poder-se-ia dizer que o cara estava disposto ao crime.

Isso era apenas aparência – tanto que Betão estava bebendo para afogar as mágoas. Em sua mente, a vida parecia letra de bolero. Só faltava ouvir as vozes de Lucho Gatica e Altemar Dutra: El día que me quieras / la rosa que engalana se vestirá de fiesta con su / mejor / color.

Pediu mais alguns quilos de cerveja, vários centímetros de cachaça e diversas coxinhas de galinha (uma gota de óleo escorreu pela camisa). Algum tempo depois, debruçado sobre a mesa de metal, babando ligeiramente, entrou em coma alcoólica.

Foi nesse instante que Miosótis, na companhia de amigos, sentou-se próxima da mesa onde o esqueleto de Betão da Penha roncava. Com voz de puro veludo, a garota pediu um guaraná diet. E, intimamente, lamentou não ter namorado.

 

domingo, 7 de novembro de 2021

DISTRAÍDO

 


Sofro de distração. Algumas vezes pensei em pedir ajuda especializada para, no mínimo, tentar entender o que está acontecendo. Enquanto isso, acrescento no currículo várias confusões e encrencas − algumas absolutamente ridículas. Um amigo, em momento de irritação e mau humor, disse que sou tão alienado em determinadas situações que – se um dia o mundo acabar – vou perder o espetáculo.

Diferente de alguns distraídos clássicos, minha patologia nunca passou pela humilhação de usar sapatos (ou meias) diferentes. Tampouco precisei amarrar fio de barbante (ou de linha) nos dedos para recordar alguma coisa importante. Jamais saí à rua faltando botão na camisa. Sempre tirei os óculos antes de ir para o banho. Em tempo algum entrei na sessão errada de cinema. Ah, consegui evitar o vexame que é esquecer o lugar onde o carro está estacionado (embora isso não seja vantagem: nunca tive carro e não sei dirigir).

O meu problema sempre foi de outra (des)ordem: nomes, datas, rostos. Repetidamente esqueço o dia de vencimento das contas – o que me causa problemas com multas. Raras vezes consigo recordar do rosto das pessoas que me foram apresentadas na semana anterior. Certa vez quase viajei para Florianópolis sem documentos e dinheiro (a carteira ficou em cima da mesa e só percebi a tragédia dentro do táxi). Prometo escrever textos e só percebo a proximidade do “dead line” umas duas horas antes (nessas situações, pedidos de desculpa sempre se mostraram insuficientes). Raramente me lembro dos aniversários (irmãos, sobrinhos, amigos). Sou um desastre na arte cavalheiresca das boas maneiras sociais e familiares. Quem me salva é a agenda do telefone celular, programada para avisar que o circo vai pegar fogo se algo não for feito em regime de urgência.

O vexame maior ocorre em relação ao nome das pessoas. É um problema sério para quem trabalha com cultura (e jornalismo). No meio de alguma conversa... você olha para a vítima e não consegue lembrar se o sujeito se chama Joaquim ou Adalberto. É o horror. Então, para tentar diminuir a agonia, é preciso improvisar e tirar da manga alguma palavra mágica: senhor, doutor, mestre,... E fingir que tudo está bem. 

Um exemplo clássico (e constrangedor) ocorreu quando encontrei alguém que estudou comigo. Fazia tempo que não o via. Por convenção, costumo tratar todo mundo pelo primeiro nome. Depois de conversar um pouco sobre os velhos tempos, me despedi. Abraços, Paulo! E fui embora. Coincidentemente, encontrei “Paulo” várias vezes depois disso. Estaria tudo bem se ele não tivesse perdido a paciência: Meu nome é Júlio. Meu primo, que também estudou conosco, é que se chama Paulo. Então, não esqueça: eu sou o Júlio! Passar vergonha não tem preço!

Quando preciso ir ao supermercado, faço uma lista do que devo comprar. Muitas vezes a esqueço em algum lugar entre a geladeira e o microondas. Então, trago para casa produtos que não são necessários. E aqueles que deveria ter comprado ficam para trás. Resultado: nova visita ao templo do consumismo. 

Vivo caminhando nas nuvens, como diz a sabedoria popular. Como não tenho aptidão marqueteira para transformar minhas deficiências em algo positivo, muitos adjetivos ofensivos (antipático, esnobe, entre outros) costumam ser disparados em minha direção. Alguns acertam o alvo.

Na Internet, escuto algumas vezes um sucesso antigo, cujos versos eu deveria aceitar como um resumo de minhas bagunças: O acaso vai me proteger / Enquanto eu andar distraído.