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quarta-feira, 29 de setembro de 2021

DOIS ENCONTROS COM SÃO BOM JESUS

 

(Foto: Antônio Agostinho Vieira - PML)

Toda família católica tem (ou tinha) um santo de estimação. Uma espécie de anjo da guarda particular. Alguém a quem recorrer em caso de necessidade (ou desespero). Na nossa era comum pedir a proteção de Santa Bárbara (em dias de tempestade), São Cristóvão (em viagens), Nossa Senhora Aparecida (no dia a dia), São Longuinho (para o que se perdeu) e São Judas Tadeu (nos momentos em que todos os recursos pareciam esgotados). Outros santos também eram invocados, mas não lembro quais.

Na infância, tive alguma doença, algo grave, mas não sei exatamente o quê. O que importa saber nessa história é que minha mãe fez “promessa” para São Bom Jesus de Iguape, tido (naquela época) como um santo milagroso. 

Simplificando o causo, nas férias de fim de ano, em 1965 ou 1966, fui com meu pai até Iguape pagar a promessa, ou seja, depositar mechas de meu cabelo na sala de ex-votos do santuário. Foi um daqueles momentos mitológicos, onde estar longe de casa ainda hoje me parece ter sido mais interessante do que o motivo da viagem. Caminhão, trem, carroça, ônibus – independente do veículo, foi uma aventura inesquecível. Depois de tanto tempo, nunca esqueci o olhar de tédio do pai, um cigarro aceso na guimba do outro, um copo de café atrás do outro, o olhar perdido no horizonte, talvez se perguntando do porquê de estar acompanhando o filho naquela viagem insensata (quase 950 km de estrada).

Por fim, depois de algum tempo, talvez uns dois dias, chegamos lá, fizemos o que precisava ser feito, sem se esquecer de trazer para casa alguns fragmentos da famosa rocha ferrosa (que, dizem os devotos, deve ser depositada em água benta, uma beberagem que serve para curar os mais diversos males).

Recentemente, uma conjunção de fatores me levou até a gruta de São Bom Jesus, no bairro Ipiranga (antiga Lomba Seca). Foi o estopim para que esse redemoinho de imagens e vozes que povoam as recordações voltasse à tona. Como um bônus, lembrei que houve um tempo que era comum a realização de quermesses nesse lugar. As pessoas se reuniam para a missa, o churrasco, o bingo, os namoros. As crianças corriam para lá e para cá, sem se preocupar com o futuro. Era tão bom e divertido que o povo, em perfeita comunhão com a natureza, estendia toalhas xadrez no gramado e repartia a comida com os amigos (e, inevitável, com as formigas).

Em algum instante, provavelmente na adolescência, movido por outros interesses, perdi o interesse por essas coisas. Só fui voltar à região muitos anos depois, movido por algum assunto profissional, reuniões da Associação de Moradores com as autoridades municipais.

Depois de alguns dias de chuva, na gruta de Sambão Jesus (na definição bem-humorada de Edézio Nery Caon), renovei os laços com o sagrado. Acendi velas, fiz orações (a minha maneira) pelos que não estão mais entre nós, pelas coisas que foram se perdendo pelo caminho. Fui envolvido pelo silêncio. E reencontrei um cenário que se mostrou diferente daquele que tinha guardado na memória. Não me lembrava do filete d’água que escorre em volta da imagem do santo, nem da escadaria lateral. Outra coisa a acrescentar é a intensa ocupação urbana na região – a vegetação nativa foi substituída por casas e pequenos edifícios.

Queria ficar ali por mais tempo, mas nem sempre é fácil pausar a agitação do existir.

Dentro do carro, voltando para o centro da cidade, disse para mim mesmo que, mais do que nunca, estamos vivendo um tempo em que é necessário celebrar a vida, essa soma de histórias e desencontros.      

 

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

POR UM ANTÍDOTO CONTRA A IRRACIONALIDADE



o teu silencio corta os pulsos de quem anda por aí desavisado

(Camila Assad)


Toda cura é provisória. A reincidência não deve ser descartada. A doença está à espreita, preparando o seu retorno triunfal. Viver é muito perigoso, explicou Riobaldo Tatarana, numa dessas viagens do pensamento pela sabedoria popular, talvez ecoando, mesmo sem perceber, que filosofar não é outra coisa senão preparar-se para a morte, como escreveu Michel Eyquem, Seigneur de Montaigne (1533 – 1592), influenciado por Marcus Tullius Cicero (106 a. C – 43 a. C).

Em tempos de pandemia, sobra pouco espaço para a esperança. Todos os dias alguém desaparece (parentes, amigos, vizinhos, conhecidos e desconhecidos). A ausência, essa matéria que parece sólida na memória, em algum instante impreciso se dissolve ou é incorporada com outras faltas e escorre para longe, nos deixando à mercê das perdas emocionais. E sempre temos algo a perder.

A mentira se esconde nas estatísticas. As tabelas de Excel relativizam a existência humana, negam a pluralidade, usam o recorte para explicar fatos que estão distantes da explicação. Não se deve acreditar nos números. As palavras também não são confiáveis. Alguns horrores estão aquém da descrição textual. A linguagem mais precisa sempre será incapaz de retratar a tragédia. O mesmo se pode dizer sobre as imagens – esse conjunto de fragmentos que despreza a totalidade.

Todos os dias as redes sociais e os jornais televisivos anunciam o inominável. Ninguém diz que o futuro está saturado de ausências. A verdade tem gosto amargo e a coragem é um produto escasso no supermercado das banalidades. Quinhentas mil pessoas são mais do que duas vezes a população de uma cidade média brasileira. Negar a ciência significa dar um abraço na morte.

A estética da dispersão projeta as ruínas que alicerçam as realidades paralelas. Ao contrário do discurso do Estado, mais preocupado com a economia do que com a população, a pandemia não acabou. Só sobreviverá quem redobrar os cuidados, quem entender que a vontade de potência (Nietzsche) está no adotar as medidas de segurança. A falsa impressão de que o pior já passou é apenas isso, uma falsa impressão.

Na cena final de “A Peste”, de Albert Camus (1913-1960), Bernard Rieux, o narrador, observa que a alegria sempre esteve ameaçada. E diz que o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E que devemos estar preparados porque ele virá talvez no dia em que para desgraça e ensinamento dos homens, a peste [acordará] os seus ratos e os [mandará] morrer numa cidade feliz.

Assim como se deve olhar para os dois lados ao atravessar a rua, também cabe se proteger contra a irracionalidade. A precariedade do ser humano lembra uma folha carregada pelo vento.


sexta-feira, 24 de setembro de 2021

O HOMEM DO CASACO VERMELHO

 


O homem do casaco vermelho, de Julian Barnes (Rio de Janeiro: Rocco, 2021) é uma espécie de história social da França e da Inglaterra. Quer dizer, uma espécie de história sexual da França e da Inglaterra. Aparentemente, na virada do século XIX para o XX, todos dormiam com todos. Bastava um olhar convidativo e animais, vegetais e minerais se encaminhavam para a cama ou para qualquer lugar onde a troca de fluidos e humores fosse possível. Tudo muito civilizado, discreto na medida do possível, e seguindo a regra proposta por Mrs. Patrick Campbell, não importa o que você faz no quarto, desde que não o faça na rua e assuste os cavalos.

Ao centrar o seu livro na vida de Samuel Jean de Pozzi (1846-1918), um célebre ginecologista e cientista francês, Julian Barnes conseguiu reunir uma série interminável de narrativas sobre as aventuras fesceninas de algumas das mais importantes celebridades do fin-de-siècle. A alta sociedade (masculina, branca e rica) se reunia em alcovas pouco recomendáveis (quando não estava envolvida em questiunculas literárias ou lavando a honra em duelos sem sentido). 

Em outras palavras, a roda do mundo costuma girar com mais intensidade quando aborda a vida dos outros. E é disso que o livro trata, independente de que alguns personagens coadjuvantes foram dizimados pela poeira do tempo. Só restaram cartas, recortes de jornal, livros de memórias, depoimentos e algumas fontes históricas pouco confiáveis – recheadas por boatos disparatados e reputações conspurcadas pela perversidade e pela maledicência. Em sociedade tudo se sabe e se comenta. E ninguém perdoa ninguém.

Pozzi, além das inúmeras contribuições na área médica (escreveu um manual de ginecologia, defendeu procedimentos de assepsia, contribuiu com técnicas de laparoscopia, interessou-se por transplantes), colecionava obras de arte, amigos e amantes (a mais célebre foi Sarah Bernhardt). Sujeito simpático na vida social e profissional, nunca conseguiu equilibrar as crises familiares.  Alguns depoimentos de sua filha, Catherine, são adequados para algum estudo de caso psicanalítico. As brigas com a esposa, Thérèse, espelham um ambiente familiar hostil. A separação do casal aconteceu em 1914, depois de três filhos e mais de 30 anos de casamento.

Naquela época, Paris e Londres eram os únicos lugares do mundo onde era possível encontrar em qualquer esquina alguns dos personagens que caracterizaram um dos grandes momentos da história do jornalismo, do teatro, da literatura, das artes plásticas e da política: príncipe Edmond de Polignac, conde Robert de Montesquiou-Fezensac, os irmãos Marcel e Robert Proust, Henry James, Oscar Wilde, Jean Lorrain, Jules Barbey d’Aureville, Edgar Degas, John Singer Sargent, Emile Zola, Leon Daudet, Alphonse Daudet, Joris-Karl Huysmans, Sadi Carnot, Jules Renard, Guy de Maupassant, os irmãos Edmond e Jules Goncourt, entre outros. Nessa festa (em que os convidados constituíam uma miríade de egos inflados, inflamados pela fama e pela vaidade) era possível fazer as maiores loucuras e sem olhar para as consequências. Como é de praxe no mundo burguês, poucos receberam o devido castigo.

O homem do casaco vermelho é um livro em que o cheiro de suor e esperma extrapola o aroma dos melhores perfumes franceses. Provavelmente isso não incomodava os convivas da grande festa que caracterizou aquele período sociocultural. Talvez tenha servido de afrodisíaco para que o banquete dos corpos adquirisse novos temperos.

Para quem se interessa por parte da história da Belle Époque, é leitura imprescindível.


Julian Patrick Barnes





 

terça-feira, 21 de setembro de 2021

Das razões da fundação de Lages

 

(Estátua de António Correa Pinto de Macedo. Foto de arquivo - PML)

Em carta de 24 de dezembro de 1766, dirigida a Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), Conde de Oeiras, mais tarde Marquês de Pombal, Luis António de Souza Botelho Mourão (1722-1798), 4º Morgado de Matheus, Governador e Capitão General da Capitania de São Paulo, afirma que as terras que circundam a região conhecida como das Lagens eram propícias para a implantação de fazendas de gado e o cultivar de todos os tipos de frutos.

Ressalta que o local, distante mais de cem léguas de Curitiba, precisava ser povoado para acudir aos moradores daquele Certão com a administração dos Sacramentos por estarem ali vivendo muitos que se retirarão do Rio Grande de São Pedro, e outros criminosos que se refugiarão por aquellas partes e estão vivendo nos mesmos crimes (sic).

Por trás desse discurso civilizatório, que elogia a fertilidade do solo e, simultaneamente, se mostra preocupado com a segurança dos primeiros habitantes do Planalto Serrano, é possível entender que a ocupação física e militar da região atendia aos interesses geopolíticos de Portugal, que desejava impedir a expansão das colônias do reino de Espanha na América do Sul – assegurada pelo Tratado de Tordesilhas, de 1494. A fundação da Colônia de Sacramento (1680), e as diversas complicações que resultaram da aventura, talvez sejam alguns dos sinais mais evidentes dessa proposta.

A expedição de António Corrêa Pinto de Macedo (1719-1783) seguiu o plano de ocupação territorial portuguesa. A povoação deveria ser instalada nas bordas do Rio das Pelotas ou nas margens do Rio das Canoas (caudalosos e rápidos, abundantes em peixes). Ou seja, em lugares onde eram menores as dificuldades para garantir a subsistência dos novos moradores e seria possível fazer com pouca gente a mayor defença contra o mayor ataque que possa haver em alguma invazão do inimigo (sic). Entenda-se como inimigo, as forças militares que não eram lusitanas e os aborígenes que habitavam as proximidades da futura povoação.

Outro motivo estratégico estava assentado na possibilidade de socorrer a Vila de Santo António dos Anjos da Laguna, situada em frente ao oceano Atlântico e, portanto, vulnerável aos ataques dos castelhanos, como o que aconteceu em fevereiro de 1777, quando Pedro Antonio de Cevallos Cortéz y Calderón (1715-1778), Vice-Rei do Rio do Prata, avançou pelo litoral do sul do Brasil, arrasando o que encontrou pela frente, e só parou quando conseguiu ocupar Nossa Senhora do Desterro (atual Florianópolis). A manobra defensiva poderia acontecer, em sentido inverso, se o ataque ocorresse em campo aberto, cabendo às forças lagunenses socorrer aos que estavam sendo ameaçados no alto da Serra.

Essa segunda possibilidade foi manifestada em carta de 1766, ao Coronel José Custódio de Sá e Faria (1710-1792), Governador da Capitania de Rio Grande de São Pedro, quando o Morgado de Matheus alertou para as conveniências decorrentes de fortificar a área abrangida pelo Rio das Pelotas, principalmente contra as tropas do império espanhol, que poderiam tentar ampliar os seus domínios partindo do território conhecido como das Missões.     

António Corrêa Pinto de Macedo relutou em aceitar a missão de fundar uma povoação no “Certão de Curitiba”. Um de seus desafetos, Pedro da Silva Chaves (1703-1781), estava refugiado naquelas paragens e vivendo a lei segundo as suas vontades. Queria evitar o confronto, que poderia resultar em derramamento de sangue. Outro impedimento era a idade, 47 anos. Faltava-lhe disposição para se transformar em desbravador.

Suas objeções não foram levadas em consideração. Foi promovido a Capitão-Mor Regente do Certão de Curitiba (9 de julho de 1766) e ficou sem alternativa. Com um pequeno grupo de bandeirantes, as bruacas e canastras repletas de mantimentos, pólvora, chumbo e ferramentas, marchou para o interior do país, seguindo o traçado da Estrada do Sul. Depois de vencer muitos obstáculos, cruzando Lapa, Passa Três (atual Rio Negro), Ribeirão do Mato do Espigão (atual Mafra), Campo Alto (atual Santa Cecília) e Campo dos Curitibanos, chegou à região serrana em 22 de novembro de 1766.

A história de Lages estava começando. 

domingo, 19 de setembro de 2021

CARTA ABERTA AO DUDU

 

Foto: Wladimir Nequesaurt Pereira Neto

Ilustre e ilustrado,

Um amigo comum comunicou-me, via whatsapp, que estamos (eu e você) de relações rompidas. Contestei essa afirmação, pois não me lembro de ter proferido alguma amabilidade a teu respeito ou de ter destacado as virtudes de teus familiares. Mas, obviamente, isso pode ter acontecido, o mundo é um moinho (como cantou Cartola) e (na opinião de uma de minhas irmãs) abuso da pose de artista temperamental. Mítia, o herdeiro de minhas dívidas e dúvidas, é mais sucinto: não passo de um velho. Os dois, unidos em complô contra esse gentleman que sou, concordam que, frequentemente, falta-me delicadeza (um sinônimo sutil para má educação). E que eu costumo esquecer que existem pundonores mais aflorados, menos permeáveis às travessuras da linguagem. Enfim, completam o diagnóstico dizendo que sou um craque na arte do sincericídio. E que isso não é exatamente uma qualidade no contexto social.

Pasmado fico ao ouvir esse tipo de juízo de valor, mas raramente discordo.

Disse-me esse amigo que deveria falar com você sobre o mal-entendido e agitar a bandeira branca na direção das tropas adversárias. Pareceu-me justo, embora eu seja péssimo no exercício da arte de pedir desculpas. Principalmente quando não consigo perceber onde errei – se é que errei.  

Não vou lhe telefonar ou mandar mensagem por redes sociais. Provavelmente, com a sensibilidade de elefante em loja de louças que me atribuem, iria empelotar o angu de vez. É que essa confusão me causou risos. E, infelizmente, nem todos concordam que rir é o melhor remédio. E se você ficou magoado por algo que eu disse (ou não disse), então me cabe tratar a questão com seriedade (mas não muita). Prefiro escrever, que é algo que sei fazer (embora não muito bem). Ao optar pela forma epistolar, que é um meio de comunicação fora de moda e, ao mesmo tempo, sem modos (como comprovou, na recente história da República, o golpista rei das mesóclises), o fiz como uma forma de compartilhar com o distinto público o que deve ser público e distinto. Nada tenho a esconder, exceto o que escondo – e não é pouco, lamento dizer.  

Nesses termos (e em outros mais, pois quem quiser moleza que vá sentar em pudim), cabe-me esclarecer que concordo com Guimarães Rosa, que, através de Riobaldo Tatarana, colocou as coisas em seu devido lugar: A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.

Para não me alongar nesta prosa sem poesia, gostaria de poder reaver a sua presença no mundo virtual (e mais tarde, quando a pandemia e a banda passarem, ao vivo e em cores) para que possamos dar continuidade nas nossas conversas sem pé nem cabeça (juntos com nosso amigo e com quem estiver disposto a nos aturar). Será pedir muito?

Antes das despedidas, o que mais posso dizer? Ah, você me é caríssimo (em parte pela inflação e pelo atual preço cambial do dólar).

Abraços,


quarta-feira, 15 de setembro de 2021

FRAGMENTOS DE UMA CIDADE QUE NÃO EXISTE MAIS




O passado é uma névoa que vai se desmanchando lentamente. Muitos personagens e lugares desapareceram na poeira do tempo. A vida é transitória. Lembrar se impõe como forma de resistência ao esquecimento.

 

a)      As crianças ficavam em frente da vitrine do Bazar Danúbio com o mesmo brilho no olhar com que cobiçavam os doces da Confeitaria das Famílias.

b)      Assistir as partidas de basquete no sábado, ir à matinê de domingo no Cine Tamoio, emprestar livros na Biblioteca Pública, aulas no Centro Educacional, comprar bilhetes da rifa na festa da Igreja da Santa Cruz, ir ao Festival de Teatro de Lages (FETEL), sonhar com amores que jamais olharam para o nosso rosto. Tudo era mistério e tudo era bom.


c)      No salão de sinuca do Clube 14, o De Carli conseguia controlar a “jeunesse dorée” da época, todos tratados com o carinho adequado à futura elite econômica da cidade. Divididos entre partidas de pebolim e “vida”, ensurdeciam o mundo com palavrões e ameaças de brigas. No andar de cima, Orimar Gentil Demeneck, a gentileza em pessoa, servia doses generosas de uísque falsificado para a turma do João Saldanha (leia-se Esporte Clube Internacional).


d)     Em que mundos paralelos estão perdidos Rei do Frango, Marroquinhos, Gaitaço, Bolicho, Gato de Botas, Paraphernalia, Boemia, Caravelle, Lennon’s, Kalash, Maria Maria, Five O’clock, Casa do Suco? O som da sirene da Rádio Clube serve de lembrança para tardes e noites no Aeroclube, no Portuga’s, no Sentinela, no Porteira Serrano, no 25 ou talvez, naqueles tempos de carência, quando não se podia dizer que dessa água não beberei, no Gato Preto ou na Boate do Mário.


e)      No King’s Sauna reinava Waltrick, um cabeleireiro com ares intelectuais, que lia Laranja Mecânica e Adelaide Carraro com a mesma curiosidade.


f)       Como esquecer as noites intermináveis no Cisne Branco quando, fugindo do terceirão do Colégio Diocesano, alguns alunos preferiam ter “aulas” com o pessoal mais velho: Athos Athayde, Rogério Castro, Wilson Vidal Antunes Júnior, entre outros?  A cerveja, sempre gelada, e a fumaça dos cigarros envolviam tudo e todos, dando um colorido que nunca mais se repetiu.


g)      Algumas coisas se apresentam como surpresa.  Talvez seja essa a maneira mais fácil de explicar a passagem meteórica do Alencar (Pizzaria PX) por Lages. Um anjo da guarda muito desajeitado e que nunca economizou afeto.


h)      Almoços de sexta-feira na Churrascaria Joia (antiga rodoviária). Uma vitrola antiga, discos de vinil, musica caipira, volume acima do suportável.


i)        Poucos conseguem esquecer o Jader Rocha, na porta do Café Ouro, cigarro na mão, pose de astro do cinema francês. Enquanto isso, os fregueses do almoço, servidos pelo Gilmar (que, mais tarde, se transformou em radialista), devoravam enormes coxas de frango. Nesse mesmo balcão, em um fim de tarde, sem saber o que fazer da vida, Pedro Leite e Itamar Garcez, jornalistas do Diário Catarinense, olhavam para o nada, mortos de saudades da Porto Alegre que, a cada minuto, se tornava mais distante. 


j)        Em momento impreciso, no Lanchik, lugar onde todos iam comer “sanduíche americano” e beber a sempre eterna pilsen da Antarctica, apareceu Henrique Belling, vindo de São Paulo, Nova Iorque ou de algum outro paraíso exótico, e ergueu do solo todo mundo num abraço interminável, uma ternura que poucas vezes a província conseguiu sentir.


k)      As vozes de Ademir e Toni, cantando boleros, ecoava na Cantina Del Nonno – destino inevitável em algumas noites em que a fome se manifestava de forma incontrolável.


l)        Zezé (José Carlos Suzin) costumava caminhar pelo calçadão. Leitor do Pasquim, sempre tinha uma história para contar, saudoso de um Rio de Janeiro mítico que ficou preso no passado.


m)    Elionir Martins de Liz irradiava o poder agregador. Foram inúmeras as vernissages em que reuniu Nelson Di Córdova, Márcio Camargo Costa, Adilson Guanabara, Jonas Malinverni, Rudimar Cifuentes, Lota Lothar Cruz, Gilca Maria Silva, Nereu de Lima Goss, Katia Volkert e Clênio Souza em conversas regadas a vinho de garrafão e queijo colonial.


n)      Francisco (Chico) de Assis e Estevam Borges, jornalistas que transcenderam o tempo e o espaço e se tornaram mestres de uma geração. 


o)      As disputas esportivas entre os colégios eram uma forma de integração e divertimento. O mesmo se pode dizer dos festivais de música (Fesinc, Feinc, Fejuc, Festinver).

 

Falta alguém para narrar essas confusões. É material para um romance. Ou dois.   

 




(Fotos do Arquivo da Prefeitura Municipal de Lages)

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

À LUZ DE VELAS (versão modificada)

 


Durante algumas horas, como consequência de uma tempestade, parte da cidade ficou no escuro. Sem saber exatamente o que fazer, esperando que a energia elétrica fosse restabelecida, ele foi até a janela do apartamento. Olhando a escuridão urbana e a chuva que não parava, lembrou-se dos dias em que a luz das velas ou do lampião de querosene estabelecia cores e sombras que deixaram de existir.

Na infância, em Morrinhos, no coração da Coxilha Rica, na propriedade de seus avós, não existia eletricidade, todos dormiam antes das vinte e uma horas e o mundo era mais simples, menos dependente da tecnologia. Um dos poucos contatos com o mundo exterior era ouvir, no rádio de pilha, a sessão de avisos da Rádio Clube.

Pela manhã, depois de ajudar na ordenha das vacas, o menino ficava sentado na soleira da casa grande. Caneca de camargo na mão direita, pedaço enorme de pão feito em casa (camada de nata com um dedo de espessura) na outra mão, a boca lambuzada pela voracidade, seu olhar ultrapassava a mangueira, as vacas que estavam sendo conduzidas para a invernada, os gritos do capataz, o dia que rompia, inexorável como a vida.

Algumas vezes o céu ficava encoberto pela névoa – que ia se dissipando lentamente. As poucas nuvens que surgiam no horizonte lembravam pedaços de lã estendidos na cerca de arame. O sol, ao amanhecer, era uma mancha sanguínea – mais tarde se transformava em imenso girassol.

Para o almoço, bastava pedir que alguém fosse à horta e colhesse batatas, tomates, alfaces, cebolinha verde. Na volta, se pudesse carregar, trazia parte da sobremesa: um punhado de butiás, cachos de uva, ameixas, figos (carnudos, sumarentos, doces como deve ser o paraíso). Na despensa, guardadas em vidros um pouco diferentes daqueles da compota de pêssego, vários tipos de geleias, doce de gila, marmelada – quitutes reservados para as raras visitas, de seis em seis meses aparecia um vizinho querendo negociar pelegos, sabão de cinzas ou uma saca de feijão.

No final da tarde, diante do oratório, ninguém escapava de rezar o terço, um ritual interminável. A voz da avó ditava o ritmo das orações e as crianças aproveitavam o momento místico dos adultos para prestar atenção ao carreiro de formigas que atravessava a sala e desaparecia em um buraco na parede. Aquilo era uma praga doméstica, não adiantava destruir os formigueiros, era impossível evitar que a casa, algum tempo depois, fosse assaltada por um novo exército de operárias. Essa distração servia para questionar o estar ajoelhado, rezando, uma tarefa que não era divertida. Melhor era sonhar com outra vida, de preferência na companhia dos brinquedos feitos com ossos e madeira.

Não sei quantos minutos ele ficou na janela, olhando para um tempo em que computador, televisão e celular não tinham importância. As recordações desapareceram quando a luz voltou e foi necessário devolver o passado à escuridão.