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terça-feira, 31 de março de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (IX)


A grande novidade do dia é que troquei o detergente biodegradável por sabão de coco. Segui a recomendação de um amigo, especialista em lavar louça. Disse-me que não resseca as mãos. Ter mãos eternamente macias é um dos meus objetivos na vida. Por isso, e por meia dúzia de motivos muito mais banais, aceitei a aventura. O que não sei é se o efeito é imediato ou se precisarei aguardar até o fim da quarentena. Esqueci-me de fazer essa pergunta de suma importância.



Não importa. Hoje, a pia da cozinha está limpa. Só não digo que está brilhando porque ainda sou aprendiz nesse tipo de serviço. Estou adquirindo prática. Quiçá precise dessas habilidades em algum momento do futuro. A vida muitas vezes se parece com um turbilhão, sempre existe a possibilidade de alguma reviravolta – para nos punir por algo que fizemos ou deixamos de fazer.

Por exemplo, fui abrir um enlatado para o almoço. Não sei qual foi o maior desastre, se aquela gosma engordurada na minha camiseta ou no piso da cozinha. Soltei vários palavrões em alto e bom som. É possível que os vizinhos do andar de cima tenham escutado. Não vai ser fácil cumprimentá-los, como se tudo estivesse bem, quando os encontrar no corredor do prédio. Depois dessa pequena crise de destempero, minha fama de “estranho” provavelmente aumentou. 


Lá fui eu atrás de um pano para tentar limpar o chão. Demorei uma eternidade nessa faxina inesperada. Provavelmente fiz alguma besteira. Em algum momento descobrirei o quê. Destruídas as chances de ter uma refeição decente, fui tomar banho. Depois, administrei o caos. E isso quer dizer que resisti à tentação de pedir comida pelo delivery. Improvisei. Ficar com fome não era opcional.

Passei a tarde toda trabalhando. O computador é o meu feitor de escravos. Serviço não falta – o que falta é a vontade de trabalhar. Sempre defendi a tese de que é melhor deixar para amanhã o que não quero fazer hoje. E raramente quero fazer alguma coisa – hoje ou amanhã.

Infelizmente, o direito à preguiça é uma escola filosófica que conta com poucos adeptos no mundo utilitarista contemporâneo. Falta crédito. Sobram débitos.  

Os detentores dos meios de produção, vulgarmente chamados de empresários ou empreendedores, alegam que os trabalhadores devem produzir incessantemente e que os custos para obter o máximo da força de trabalho devem ser mínimos. Simultâneo a essa postura, o medo de que aconteça algo imprevisto acena como uma espada no pescoço do condenado. Considerando que entre aqueles que fazem negócios não há um único inocente, grandes prejuízos econômicos podem machucar mais do que dez anos de trabalhos forçados. 

A ironia surge através do Covid-19, que colocou a voracidade capitalista em xeque. A pausa obrigatória, popular quarentena, confirmou tudo o que antes parecia ser apenas paranoia de alguns economistas pessimistas. A Bolsa de Valores despencou, as moedas perderam valor e a relação capital-trabalho voltou a ter visibilidade.


Espectador privilegiado dos acontecimentos, encontro – atualmente – na vassoura, no sabão de coco, no computador e nas pequenas comédias cotidianas uma forma de sobrevivência. Nas horas vagas leio, escrevo, assisto filmes, fujo do trabalho, converso comigo mesmo, procuro não enlouquecer. Talvez não seja muito. Mas, para mim, é o bastante.

(continuo em outro momento)

segunda-feira, 30 de março de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (VIII)




Passei o domingo internado. Calma, estou bem. Usei a palavra internado apenas como um recurso retórico, uma forma de destacar que fiquei dentro de casa. Poderia usar outro termo, outro discurso. Não vou fazer isso. Prefiro usar esse mesmo, internado, para dizer/escrever que, nestes tempos sombrios em que estamos vivendo, é necessário ter cuidado com as palavras, não se pode proferir o primeiro desatino que nos ocorre, há o risco de causar confusões, pânico, mal-estar. Alguém sempre interpreta (ou não) o texto ao pé da letra, esquecendo a existências das entrelinhas, da ironia, das sutilezas semânticas, as palavras em expansão dentro da frase, quase uma explosão solar.

Fiz quase nada durante o dia todo. Nem mesmo lavei a louça. Day off das obrigações domésticas – a montanha de pratos sujos transformou a pia em um Everest. A comédia que protagonizo é assim mesmo, vivo tropeçando aqui e ali, tentando manter algum tipo de razoabilidade, uma xícara de chá sempre ajuda – como se fosse aquela suavidade do Almir Sater, quando canta Ando devagar porque já tive pressa.


Dormi até tarde, almocei, ouvi música, assisti (mais uma vez) As Férias do Senhor Hulot (Dir. Jacques Tati, 1953), li um pouco, respondi umas mensagens no Facebook e no Instagram. A televisão, Harpia midiática, permaneceu muda e calada durante o dia e a noite – não permiti que assombrasse os meus fantasmas de estimação.




Falei com vários amigos pelo telefone, perguntei sobre as novidades, falamos bobagens politicamente incorretas, elaboramos esboços de planos para o porvir (na esperança de que o porvir exista), mandamos os fascistas para além de onde o Judas perdeu as botas. Foi bom saber que o pulso ainda pulsa, e que, apesar do solitário andar por entre a gente, muitas pessoas ainda estão interessadas em Conhecer as manhas e as manhãs / O sabor das massas e das maçãs.

Estou lendo ficção científica. Creio que combina com o Covid-19. Nas minhas estantes e nas livrarias (físicas ou “on line”), esse gênero literário está em destaque. Ninguém pode negar que o apocalipse e o messianismo possuem um poder absurdo de atração. Nos países de língua portuguesa, a tradição revela que sempre há alguém esperando pela volta de Dom Sebastião, exemplar cavalheiro medieval que há de nos salvar dos males do mundo. Enquanto ele não chega, precisamos sair do inferno. Desse lugar ninguém escapa com boas maneiras.

O mérito da ficção cientifica está em nos dizer que o flagelo abocanhou, mastigou e engoliu o presente como se fosse um pedaço de bife mal passado. Com a boca suja de sangue, abraçado com sua irmã, a distopia, ele contempla as vítimas. Está sorrindo.

Separei vários romances de autores consagrados: Úrsula Le Guin, Octavia Estelle Butler, Arthur Charles Clark, Philip Kindred Dick, John Scalzi e Robert Anson Heinlein. Não sei se vou conseguir ler todos. E a ideia não é essa. Estou passeando por um gênero literário que não costumo frequentar. Talvez no terceiro ou no quinto livro a saturação se instale. Antes que isso aconteça, quero mergulhar nessa imensidão que é o 1984, do George Orwell. Comprei uma edição bonita, capa dura, custou caro, não dá para emparedá-lo entre outros livros antes da leitura.




Seguindo o mesmo tom, voltei o olhar para um texto clássico de Walter Benjamim: Sobre o Conceito de História. A imagem do anjo da História, contemplando os desastres do presente, enquanto é impelido para o futuro, indica que onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa aos nossos pés. Essa tempestade é o preço que pagamos pelo progresso.

(continuo outra hora)

domingo, 29 de março de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (VII)






Ontem foi dia de dolce far niente. Quer dizer, cumpri com as tarefas domésticas rapidamente e como tinha me programado em ir até o Posto de Saúde para fazer a vacina dos velhos, digo, da gripe, antes consultei o portal da Prefeitura. Queria descobrir o melhor local para resolver a questão. Encontrei um aviso de que o sistema de saúde não dispõe de quantidade suficiente para atender a demanda. Talvez na próxima semana. Talvez.

Plano desfeito, Legião Urbana e Dire Straits romperam o silêncio que a quarentena propaga  como se não bastasse a opressão que é estar isolado do mundo. No edifício em que estou residindo reina o sossego, não vejo movimento, o elevador parece condenado ao imobilismo – possivelmente alguns moradores optaram pelo autoexílio no interior do município, em propriedades rurais.

Como herdeiro da aristocracia bovina falida (segundo definição certeira de Rogério Castro, que Deus o tenha!), não me sobrou um palmo de terra para ser invadido pelo MST. Melhor assim. O fato básico é que, no passado, o latifúndio familiar sofreu várias reformas agrárias... na cama! Cada ancestral teve entre oito e quinze filhos. Quando chegou a minha vez de desfrutar da riqueza familiar, sobrou pouco – e o que me coube “torrei” na primeira oportunidade (contarei essa história em outro momento).

Meus antepassados também dilapidaram o patrimônio familiar com outras “necessidades básicas”. Alguns episódios, raramente comentados em voz alta (mas que fazem parte do folclore doméstico e domesticado), envolvem mesas de jogo, alcoolismo e a célebre dupla vencedora: “cavalos lerdos e mulheres ligeiras”. Enquanto a esposa e os filhos ficavam trancados dentro de casa (para o bem da moral e dos bons costumes), o “provedor do lar” costumava visitar a amante; em alguns casos, as amantes. Ter e poder sempre foram notas de distinção de classe. Simultaneamente, a hipocrisia do pacto social exigia discrição e submissão. Confirmando o zeitgeist, Conceição, personagem do conto Missa do Galo (Machado de Assis), jamais se rebelou contra as ausências semanais do marido (dizia ir ao teatro), evento que o narrador chama de eufemismo em ação.




Paulo Setúbal (1893-1937), membro da Academia Brasileira de Letras e pai do Olavo Setúbal (fundador do banco Itaú), residiu no Planalto Catarinense por curto período (1918-1919).  A gripe espanhola estava fazendo estragos em São Paulo e aqui o escritor encontrou o oásis da minha vida, conforme declara em seu livro de memórias, Confiteor (1937). Nessa narrativa ele insinua, perdão, afirma que foi em Lages que aprendeu a jogar cartas, a beber e a ter contato com as moças “de vida fácil”. Pois é, se non è vero, è bem trovato.

Márcio Camargo Costa, possivelmente quem melhor interpretou o espírito inquieto dos habitantes de serra'cima, descreveu uma parte dos causos emblemáticos da região nos três livros de contos que publicou. Ficou nos devendo uma história do “maior corpo de baile do Brasil”, relatos sobre a ascensão e queda do ciclo da madeira, período em que ocorreram algumas das maiores maluquices possíveis na vida de quem ficou rico da noite para o dia e perdeu o patrimônio na mesma velocidade. Destaque para o sujeito que alugava avião para frequentar  sozinho ou na companhia de alguns amigos  os cabarés de Buenos Aires. Terminou a vida sem um tostão furado.  

Da riqueza familiar só me sobrou o sobrenome. E algumas lembranças. O que não aconteceu, invento.    

sábado, 28 de março de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (VI)



Toda vez que alguém me apresenta dados estatísticos, gráficos e análises de probabilidades, a minha vontade é a de repetir uma frase que emoldura o romance de ficção científica Guerra do Velho, de John Scalzi: não tenho matemática suficiente para isso. E não tenho mesmo.



Na escola, quando a aritmética era obrigatória, costumava somar o tédio com os elementos descritos no enunciado das provas. Ainda hoje, tenho a impressão de que combater a Medusa é mais fácil do que resolver alguns problemas algébricos (logaritmos, derivadas, matrizes e determinantes, por exemplo). Acumulei noites de insônia por causa desses monstros.

Falta-me paciência e fé para compreender o mundo dos números. Quando vejo equações, diagramas, planilhas de Excel, planos cartesianos, vetores, fluxogramas, essa parafernália que acompanha a matemática, lembro-me de alguns versos do Augusto dos Anjos: esse ambiente me causa repugnância... / Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia.

Com a atual situação de alerta mundial por causa do Covid-19, o pessoal da matemática, (principalmente os fanáticos pela estatística) está em festa. Fazem cálculos de probabilidade para tudo – desde as porcentagens de alguém deixar de viver nas próximas 24 horas até a quantidade de unhas encravadas existentes em grupos de mil habitantes.

Os jornais (físicos, virtuais e televisivos), ávidos por novidades, multiplicam esse tipo de “enrolação”. E abusam dos infogramas (representação gráfica visual que complementa o texto).  Além de ajudar o leitor a assimilar a informação, esse recurso fornece corpo e substância para as notícias. Isso é fácil de entender. Mas,...

Os números (distribuídos em pontos, curvas, colunas, estereogramas, pictogramas, cartogramas, etc), auxiliados pela técnica da diagramação, também são uma forma de higienizar a informação, de retirar do olhar do indivíduo uma serie de dados que poderiam fornecer outra leitura. Assim como a pornografia, os infogramas se propõem a satisfazer um desejo imediato, supérfluo, sem grandes consequências.




Certa vez, Andrew Lang escreveu que usa-se a estatística como um homem bêbado usa um poste, mais para se apoiar que para iluminar. Ou seja, a estatística é uma ferramenta auxiliar. Infelizmente, não é assim que o imaginário popular entende. A publicação de qualquer conjunto de números assume o estatuto de verdade – porque a verdade contemporânea não precisa estar conectada com a realidade. Nesse sentido sem sentido, os números possuem poder e expressam, sem dúvida, o conceito de pós-verdade.

A literatura, forma artística que celebra a vida (principalmente quando a inventa através da poesia e da ficção), têm dificuldades para compreender a célebre afirmação de Josef Stalin: a morte de uma pessoa é uma tragédia; a de milhões, uma estatística. Diminuir o significado da morte, usando números, é irracional, é desumano. A morte, independente da quantidade, sempre caracteriza o absurdo.

Desde que nasci estou em luta diária contra os números. Em alguns momentos, não os entendo, assim como não entendo grego, sânscrito ou mandarim; em outros momentos, os vejo como instrumentos de opressão, induzindo desinformação – ou comportamentos sociais, políticos e econômicos.  

Quando dizem que os números não mentem, lembro de Mark Twain afirmando que há três tipos de mentiras: mentiras, mentiras disfarçadas e estatísticas.


(continuo em outra hora)

sexta-feira, 27 de março de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (V)



Um dia como outro qualquer. Claro que isso é uma mentira. Fugi da quarentena autoimposta. Fui até o centro da cidade. Uns vinte minutos de caminhada para ir, outro tanto para voltar. De bermuda e sandália, como compete a um turista em filme de ficção científica. Faltou a máquina fotográfica a tiracolo. Por isso vou ficar devendo as melhores imagens da aventura. Desculpem-me!
 
Fui pagar contas. Tenho restrições ao uso dos aplicativos bancários. Não me inspiram confiança. Essa recusa aos avanços tecnológicos não é recente. As teorias conspiratórias ficam mais sólidas no meu imaginário todas as vezes que ouço alguma história sobre clonagem de celular ou de conta bancária.


Comparei a paisagem que vi com uma cidade fantasma, lugar comum nos faroestes que assisti quando era pré-adolescente. Matinê de domingo, no Cine Tamoio. Faltou o ranger das placas das lojas, empurradas pelo vento, e os montes de feno rolando pelas ruas. No resto, tudo igual: lojas fechadas, poucas pessoas na rua, um ou outro trabalhador executando serviço braçal. Esse conjunto de imagens me impressionou tanto que não ficarei surpreso se ler nos jornais, amanhã, alguma notícia sobre duelos ao entardecer.

Na farmácia, antes de ir ao banco, comprei luvas de borracha. Mais uma bobagem para a coleção. Esqueci que a modernidade me escravizou à biometria.




Da forma mais deprimente possível, descubro que o corpo – vulnerável à doença - se confunde com as relações monetárias. A potência que emana da vida se torna insignificante diante do saldo bancário. O dinheiro e a doença estão amalgamados com o corpo. E não há como fugir dessa tragédia.

Não consegui resolver todos os problemas que me fizeram sair de casa. Tentarei outras soluções. Ou não.

Na volta, passei no supermercado. Não me parece sensato viver sem Coca-Cola, chocolate, bolacha, sorvete, queijo, iogurte, enlatados diversos. Apenas o indispensável, que os tempos são de crise e os juros do cheque especial não foram afetados pelo Covid-19.

Em casa, depois de guardar as compras e tomar banho, pedi comida pelo delivery: bife à parmegiana. Diante do prato, a memoria afetiva disparou outra vez. Lembrei de outros tempos, aqueles em que minha mãe celebrava a existência com alegria e mesa farta. Depois de superar várias dificuldades econômicas, bifes à parmegiana eram – em nossa casa – provas incontestes de que viver se confundia com um festival de prazeres.


Se a quarentena se prolongar por muito tempo, obterei diploma de honra ao mérito em lavação de louça. Não tenho mais necessidade de olhar aquele tutorial no YouTube. Estou fazendo o serviço sem encontrar dificuldades. E, até o momento, não quebrei nenhum prato, nenhum copo. No meio dessa operação de extrema complexidade mecânica e intelectual, lembrei de uma entrevista com renomado infectologista. O cara alertou sobre os perigos que estão escondidos na cozinha. Disse que as esponjas são um dos locais ideais para a cultura de bactérias. Então, num gesto de extrema coragem, joguei fora a esponja velha. Eba!

O resto da tarde foi quase monótono. Varri o escritório, coloquei o lixo para fora, li um pouco, escrevi outro tanto. E fui surpreendido com o retorno das entregas pelos correios: um pacote que estava em lugar incerto e não identificado chegou! Tomara que amanhã entreguem o outro pacote desaparecido. Se isso acontecer, posso pensar em voltar ao meu esporte predileto: comprar livros.

(continuo em outra hora)

quinta-feira, 26 de março de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (IV)


Essa história de ficar em casa, sem ter o que fazer... mente vazia, oficina do diabo, como dizia minha avó. Se o sujeito não se cuidar, no primeiro instante está puxando angústia (como aqueles rapazes do romance O Encontro Marcado, do Fernando Sabino) ou recuperando lembranças do passado. Esta semana fui vítima do segundo caso.

Estou participando de um grupo de whatsup com pessoas que estudaram comigo no segundo grau. A ideia geral é fazer uma reunião festiva – daqui a alguns meses – para reencontrar os dinossauros, digo, os sobreviventes. Estamos todos na faixa dos 60 anos e não será surpresa se alguns já estiverem usando bengala, tomando mil remédios (pressão, diabetes, próstata, doenças cardíacas) e oferecendo aos netos o carinho que recusaram aos filhos.

Não sei se quero ir a esse evento. Aliás, como quase sempre, nunca sei se algo é bom ou ruim. E isso também vale para a decisão de participar no grupo de whatsup.




Tenho lembranças nebulosas daqueles tempos. Minha família estava fragmentada e o dinheiro que a minha mãe conseguia ganhar só servia para pagar o aluguel e a comida. Além disso, para ajudar na confusão, estive várias vezes próximo de perder a microbolsa de estudos que recebia do colégio. Um dos episódios mais significativos, e que me causou muitos aborrecimentos, foi a decisão de não frequentar as aulas de educação física. O professor, adepto entusiasmado do atletismo, exigia que os alunos fizessem corridas de vários quilômetros, subindo e descendo morros íngremes, incentivava arremessos e saltos diversos, queria formar campeões. Era o horror – principalmente para quem queria ficar sozinho, ou, no máximo, na companhia dos livros. Resumindo: naquelas aulas, onde predominava o vigor solar, não havia lugar para alguém que vivia no mundo da lua.

Colégio técnico: as aulas regulares ocorriam pela manhã e o ensino profissionalizante era ministrado no período da tarde. Poucas escolhas estavam ao alcance dos alunos: mecânica de automóveis, eletricidade e tornearia mecânica. Para ser sincero, uma pior do que a outra. Detesto automóveis e morro de medo de eletricidade (até trocar lâmpada me deixa em pânico). Não restou alternativa.




Aborrecimento era o mínimo que aquelas aulas me causavam. Uma das tarefas (que deve ter sido elaborada por algum aprendiz de Torquemada) consistia em limar um bloco de metal. O aluno precisava deixá-lo absolutamente retilíneo, não podia passar uma mísera fresta de luz. Esporadicamente, o professor, munido de um instrumento de tortura medieval chamado paquímetro, fazia a aferição. Meu bloco nunca estava de acordo com o esperado. E lá ia a vítima para mais algumas horas de esforço físico, mais um calo na mão e nota baixa.

Outro episódio surreal daquela época: eu fui professor de História da minha própria turma! Em diversos momentos, por problemas particulares, o titular da cadeira precisou se ausentar. Como ele já tinha sido meu professor em outra escola e sabia que eu tinha algum conhecimento sobre o conteúdo, me pediu para substituí-lo. Empolgado, sem pensar nas consequências, aceitei a tarefa. Foi divertido. De qualquer maneira, nunca procurei saber se a direção do colégio tomou conhecimento dessa infração.




Entre os professores, várias figurinhas carimbadas. Em especial, a professora de biologia. Maria Helena, vulgo Samambaia, tratava os alunos como se fossem escravos de galés. Mal aparecia na esquina do corredor e já estava ditando matéria. Era Mefistófeles personificado em alguém que recusava ser simpática. Lembro-me de um raro momento em que perdeu a linha. Como é de lei, a sala tinha um candidato a humorista. O cara não perdia uma oportunidade para fazer alguma gracinha. No meio de alguma explicação, disse o que não devia – ou devia, sei lá! Maria Helena ficou furiosa e falou algo sobre não tolerar criancices e que, se o sujeito não se comportasse, ela compraria uma chupeta para ele. Contrariando as regras da relação professor-aluno, o sujeito fez pouco caso do sermão, e provocou: se ela pagasse, ele mesmo iria comprar a chupeta.  Fez-se o silêncio. Parecia rodada decisiva de pôquer, a dúvida instalada: será que um dos jogadores iria desistir ou mergulhariam de cabeça no turbilhão do all-in? Maria Helena conferiu as suas fichas e resolveu pagar para ver. Pegou o dinheiro na bolsa e entregou para o aluno. Para surpresa geral e desmoralização total da professora, uns dez minutos depois, ele voltou para a sala e passou o resto da aula chupando chupeta.



Anderson, professor de física, era gremista fanático. Aulas nas manhãs de segunda-feira eram sinônimos do fracasso. Alguém sempre fazia alguma pergunta sobre o jogo de domingo. Ele tentava fugir do assunto. Outro aluno iniciava nova provocação. Alguma coisa transbordava dentro daquele homem educadíssimo, a paixão tomava conta e... o pandemônio se estabelecia. Adeus aula! Muitos anos depois, foi meu vizinho. Certa vez, enquanto esperávamos pelo elevador, relembramos essas pequenas trapaças da sorte.

As melhores aulas (para mim) eram de português e inglês, história e geografia, matérias que eu gostava e que serviram para me mostrar que existem outros caminhos além da mediocridade. Às vezes encontro Dona Vânia Albuquerque no supermercado, mas nunca consigo dizer o quanto estou em dívida com a professora que, constantemente, me incentivou na direção da leitura, com a professora que respondia ao meu destempero com doçura e paciência.     




No terceiro ano do colegial resolvi abandonar tudo. Não terminei o ano. Estava no lugar errado. Só fui completar o segundo grau uns cinco anos depois e em outra escola. Minha mãe ficou furiosa, mas teve sensibilidade para compreender que aumentar a infelicidade costuma causar estragos irrecuperáveis.
 
Nunca mais voltei ao colégio, nem sequer para ver os belíssimos mosaicos do Martinho de Haro. Salvo quatro ou  cinco ex-colegas (com quem tenho algum tipo de proximidade ou que encontro em lojas e restaurantes), não tenho contato com os outros - vários se mudaram, alguns faleceram.  

Como aconteceu no passado, estou em outra sintonia – pouco ou nada tenho em comum com eles. Vejo as postagens no grupo de whatsup e não os reconheço. Não me reconheço como um deles. Para o bem ou para o mal, ainda não decidi se vou à festa.    


(P. S: as fotos não são minhas. Quando os autores se manifestarem, acrescentarei o crédito).

(continuo em outra hora)

quarta-feira, 25 de março de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (III)




A ficção sempre fez parte da vida dos moradores do Planalto Catarinense. É um mundo onde não há limites para a imaginação. O que não pode ser vivido (vívido), deve ser inventado  diz o manual do narrador criativo. Reunir uma serie de histórias e compor um fabulário não parece tarefa difícil, principalmente se o contador das histórias souber misturar o fantástico e o onírico com algum ingrediente humano, uma morte violenta, um amor interrompido, uma briga entre vizinhos, por exemplo. 

Nesses dias de quarentena, onde a imaginação corre solta, cabe lembrar alguns dos causos que fazem parte da mitologia da região.


Nos Morrinhos, coração da Coxilha Rica, há um olho d’água – que fica em uma área distante da casa grande. As crianças eram proibidas de brincar nas proximidades. Diziam que uma alma penada (que não conseguia entrar no céu) vivia naquele local e costumava aparecer para quem se aproximasse do poço. Ninguém duvidava disso.

João Maria de Agostinho, conhecido como São João Maria, um líder messiânico da Guerra do Contestado (1912-1916), ergueu uma cruz de madeira no topo da colina que fica perto da cacimba. O imaginário coletivo logo concluiu que a cruz tinha poderes milagrosos. Fez-se ali lugar de peregrinação, promessas e rezas intermináveis. Algum tempo depois, construíram uma igreja.

Idêntica circunstância envolve a gruta de São Bom Jesus (Sambão Jesus, como dizia Edézio Nery Caon). Eu fui uma das pessoas que foi atingida por esse tipo de devoção. Quando era criança, meu pai (seguindo as ordens de minha mãe) me levou até Iguape, no litoral paulista, para pagar uma promessa ao santo.  




No Parque Jonas Ramos (Tanque), local onde as esposas dos primeiros habitantes da cidade lavavam as roupas, dizem que Antônio Correa Pinto de Macedo (o fundador da cidade, em 1776) afogou a filha (que estava grávida de um bugre  índio Xokleng). Não importa que os livros de história desmintam esse fato e reafirmem que o sujeito nunca teve filhos, o que vale é a lenda e a lenda diz que a moça (ou a criança que estava para nascer) se transformou em uma serpente gigantesca – que, furiosa, queria destruir tudo o que estivesse ao seu alcance. Nossa Senhora dos Prazeres, a padroeira da vila, resolveu impedir a hecatombe que se anunciava e prendeu a cabeça da cobra embaixo de um de seus pés. Conta o povo que, no dia que a estátua da santa (que está na catedral, próxima do altar) for removida, a cobra estará livre e a cidade será arrasada.



Essa história apocalíptica leva ao famoso vaticínio de São João Maria: quando as ruas de Lages se cobrirem de negro e a Catedral apresentar rachaduras no meio, estará próximo o fim da cidade, pois anoitecerá e não amanhecerá. Tudo será tragado e submergido nas entranhas da terra. Poucas pessoas colocam em dúvida essa profecia. Basta perceber que a cidade está quase toda asfaltada e que está localizada acima do aquífero Guarani, talvez a maior reserva de água potável do mundo. Será que, em algum momento, a reprisar alguma metáfora bíblica,  a terra vai se abrir e engolir a cidade?

A ideologia bélica dos habitantes do Planalto Catarinense costuma glorificar um grupo de cavalaria que combateu na Guerra dos Farrapos (1835-1845), ao lado das tropas de Bento Gonçalves e Davi Canabarro. Nessa epopeia não faltam passagens heroicas, batalhas épicas e o famoso encontro amoroso e sexual entre Ana Maria de Jesus Ribeiro da Silva (também conhecida como Aninha do Bentão) e Giuseppe Garibaldi. O mistério que intriga os historiadores (e os escritores) está no descobrir se Anita Garibaldi nasceu no interior do município ou em Laguna, onde residia com o marido (que era sapateiro).


Márcio Camargo Costa, provavelmente o escritor que melhor compreendeu as tradições ficcionais da região, recuperou a história da Caudilha de Lages (Aninha Athanasio), senhora e dona do Raposo e do Cajuru. Com o chicote em uma das mãos e o “nagant garrão-de porco” na outra, ela fez os homens se curvarem ao seu poder. Era uma feminista avant la lettre. 

Uma das história mais horríveis da região também foi contada por Márcio Camargo Costa. Foi no tempo da escravidão. A esposa de um fazendeiro recebeu alguns amigos. Uma das escravas (que era muito bonita) sorriu para um dos visitantes e foi correspondida. A fazendeira, cheia de rancor, considerou a cena um desrespeito. Então, mandou quebrar todos os dentes da escrava. Em seguida, mandou pendurá-la pelas orelhas no pelourinho – e ela lá ficou, os pregos se misturando com o sangue, a dor sendo traduzida em gritos e desejo de morrer.




No folclore regional, há outras narrativas, mais leves, menos amargas, e que envolvem maridos traídos, aventuras na “zona”, corridas de cavalos, golpistas, episódios de tolice política, bêbados, muitos bêbados. Há diversão para todos os gostos. Para quem gosta de “histórias baseadas na vida real”, os inúmeros episódios protagonizados por figuras pitorescas como Beto Louco, Nereu Goss, Luiz Alfredo Ribeiro e outros tantos não devem ser esquecidos. São peripécias que ainda estão para ser contadas em detalhes. Cada um desses personagens vale um livro!

Olhando para o passado, pensando no poder do imaginário e em quem gosta de ouvir uma boa história, cabe-me dizer que as narrativas que recordo com mais nitidez, com brilho nos olhos, foram contados em volta do fogão de lenha, em noites de inverno. As sombras projetadas pelas labaredas e pelo lampião de querosene sempre me pareceram mais eficazes do que cenários teatrais. E esses relatos, que cobrem um vasto leque de emoções, transitam entre assombrações, golpes do destino e desilusões amorosas. Juro que acredito em todos, inclusive naqueles em que fantasmas e/ou peixes de trezentos quilos são os personagens principais.

(continuo em outra hora)

terça-feira, 24 de março de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (II)






Hoje é day off em Yekaterinburg, Rússia. Ou seja, vou precisar preencher minha manhã com outra(s) atividade(s).

Yekaterinburg, a quarta maior cidade da Rússia (depois de Moscou, São Petersburgo e Novosibirsk), tem  população de 1,4 milhões de habitantes e está situada nos Montes Urais, a 1667 quilômetros a leste de Moscou.

Yekaterinburg está – neste momento – sediando o Torneio dos Candidatos, competição entre oito jogadores para decidir quem será o desafiante do norueguês Magnus Carlsen, atual campeão mundial de xadrez.

Estou assistindo as partidas pela Internet. Enquanto os jogadores pensam e fazem as jogadas, eu vou executando as tarefas diárias que competem a um enclausurado. De quinze em quinze minutos (ou menos) dou uma olhada, arrisco alguns palpites, imagino a agonia que deve estar escorrendo pelo rosto daqueles que estão envolvidos no evento, a ameaça do torneio ser interrompido a qualquer instante. Estão sendo feitos testes duas vezes ao dia para detectar o Covid-19. Mas, além dos jogadores, há os árbitros, os técnicos de televisão e informática, o pessoal do hotel e da cozinha, etc. Uma multidão.

Sobre o nível de sanidade mental dos jogadores de xadrez ninguém discute: é quase zero. O mesmo valor pode ser usado para estabelecer o grau de comprometimento com o mundo exterior. Ricardo Reis, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, desenhou o cenário:

                                                             Ardiam casas, saqueadas eram
                                                           As arcas e as paredes,
  Violadas, as mulheres eram postas
  Contra os muros caídos,
  Transpassadas de lanças, as crianças
  Eram sangue nas ruas...
  Mas onde estavam, perto da cidade,
  E longe do seu ruído,
  Os jogadores de xadrez jogavam
  O jogo de xadrez.



O torneio em Yekaterinburg está sendo liderado pelo russo Ian Nepomniachtchi, “Nepo” para os íntimos, quase impossível pronunciar esse amontoado de consoantes sem tropeçar na língua, sem proferir um sonoro palavrão. Até o momento foram jogadas seis partidas – de um total de quatorze. Nepo ganhou três e empatou outras três. Para os analistas, é um azarão. Os favoritos são outros, mas... O chinês Liren Ding já perdeu três partidas e as suas chances daqui para frente parecem ser mínimas. O estadunidense Fabiano Caruana ainda não “engrenou”.

O xadrez faz parte da minha vida desde que eu tinha uns quinze anos. Na escola, incompetente em qualquer esporte, inclusive futebol, voltei o olhar para um jogo em que não precisava fazer esforço físico. Quer dizer, bastava raciocinar e mover umas peças de madeira em um tabuleiro de 64 casas. Fácil! Como sempre, estava enganado. Quem quer ganhar precisa “suar a camiseta”. Isso para não mencionar as horas de estudo, os exercícios cada vez mais complicados, a alimentação balanceada e uma rotina espartana.

Em outras palavras, foi essa a forma que escolhi para sobreviver em um mundo em que a mentalidade esportiva mascara os instintos mais básicos do ser humano. Freud explica – ou complica.

Joguei competitivamente durante muito tempo. Mas nunca fui considerado uma ameaça. Faltava-me regularidade e concentração. Esporadicamente “acertava” algum dos candidatos ao título, mas perdia para os jogadores mais fracos. Enfim, roteiro para um filme ruim.


Falando em filmes, quem se interessa pelo jogo encontra diversão em Lances Inocentes (Searching for Bobby Fischer. Dir. Steven Zaillian, 1993), Fresh – Inocência Perdida (Fresh. Dir. Boaz Yakin, 1994), O Último Lance (The Luzin Defence. Dir. Marleen Gorris, 2000. Baseado em uma novela de Vladimir Nabokov), Xeque-Mate (Joueuse. Dir. Caroline Bottaro, 2009. Baseado no romance de Bertina Henrichs), Jogada de Rei (Life of a King. Dir. Jake Goldberger, 2014), O Dono do Jogo (Pawn Sacrifice. Dir. Edward Zwick, 2015), A Rainha de Katwe (Queen of Katwe. Dir. Mira Noir, 2016) e A Chance de Fahim (Fahim. Dir. Pierre-François Martin-Laval, 2019).

Há outros, claro, inclusive O Sétimo Selo (Det sjunde inseglet. Dir. Ingmar Bergman, 1959), onde o personagem interpretado por Max Von Sydow joga uma partida contra a morte. Em Casablanca (Casablanca. Dir. Michael Curtis, 1942), o tabuleiro aparece para induzir uma atmosfera intelectual no personagem de Humphrey Bogart.

E os livros de ficção... são muitos. Como estou desconfiado que o xadrez ainda vai render muito assunto nesse diário, vou deixar essa lista para depois.   

Resumindo, o xadrez é um jogo que (dizem) simula a guerra, com a vantagem de deixar os jogadores vivos. Não tenho certeza disso. Basta lembrar os pontapés que Tigran Petrosian e Victor Korchnoi (dois cavalheiros de fina estampa) trocaram por baixo da mesa, em um dos Torneios dos Candidatos, lá pelos anos 80 do século passado. Foi necessário colocar uma tábua divisória para evitar alguma fratura. 

Volto ao poema de Ricardo Reis (Fernando Pessoa):

Quando o rei de marfim está em perigo
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca
O saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo filhos.



(continuo em outra hora)