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domingo, 31 de maio de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LXX)




Se for necessário, vou vasculhar os porões da internet. Preciso descobrir uma maneira de eliminar as manchas que aparecem “do nada” no chão da cozinha. São, guardadas as devidas proporções, as ervas daninhas do meu (metafórico) jardim doméstico.

Tem tutorial para tudo no mundo virtual. Se o sujeito quiser pregar botão na camisa ou jogar bolinha de gude, basta escolher o tema e acionar o Google. É o que vou fazer. Deve existir algum que indique como resolver esse enigma. Deve ter.

Estou ficando cansado de passar pano molhado, ver o chão brilhando (desculpe, brilhando talvez seja um exagero), e algum tempo depois, para meu assombro, lá estão elas, as manchas, em lugares diferentes. Será que caminham? Estou começando a suspeitar de alguma conspiração.

Ou então estou passando por alguma síndrome decorrente do isolamento social. Há relatos de casos em que o sujeito, em caso de grande estresse, começa a ver fantasmas persecutórios a todo instante. Não creio que seja a minha situação. Inclusive porque não estou com algum tipo de cansaço mental ou me sentindo isolado do mundo. Digo isso porque não estou cumprindo o isolamento de forma integral. Pelo menos uns dois dias por semana vejo gente no supermercado, na farmácia, no banco, na padaria. Sempre de máscara, sempre untado em álcool gel.

O ponto fulcral talvez seja outro. Quando iniciei esse regime de autoexílio, quarentena para os íntimos, pensei em usar o tempo livre para escrever, talvez colocar ponto final naqueles dois ou três ensaios literários que vivo ensaiando e que nunca termino. Triste ilusão. Cuidar da limpeza do apartamento rouba muito tempo. Mas, não é só isso. Estou dormindo tarde, acordando tarde. Em dias de sol, coloco uma cadeira na sacada e fico lá, sentado, lendo, ouvindo música, olhando os carros que passam pela avenida. Quando volto à frente do computador não há mais tempo para fazer o que deveria fazer.



A preguiça é a mãe de todos os males, dizia minha avó. Sim, sofro desse mal. Deixar para depois de amanhã o que deveria fazer amanhã é um prazer indescritível. Nunca tive a mínima vontade de obedecer aos prazos. Evidentemente, isso me causou algumas dificuldades no trabalho e na vida pessoal. É outro item que preciso contabilizar nas ações, quer dizer, na falta de ações do dia a dia.

Com a caneca de chá na mão, olho para as manchas no chão da cozinha e me sinto incompetente. Provavelmente a solução é simples e fácil. Falta-me expertise. Será que posso preparar uma solução com água sanitária diluída (1/100, 1/1000)? Que tal usar um pouco de sabão em pó? Vale diluir detergente em água? Talvez cada uma dessas tentativas de solução sirva para aumentar o problema. Por que não fui ao supermercado e comprei um daqueles produtos tóxicos que resolvem todas as dificuldades possíveis?

Caso a Internet não forneça uma resposta satisfatória à questão, nada mais me restará senão implorar auxílio à famosa e fabulosa Assistente para Assuntos de Limpeza Doméstica (AALD). Ela, com certeza, vai rir em alto e bom som dos meus desacertos. Nenhuma novidade. Essa cena está se tornando repetitiva. Tenho dificuldades para ser domesticado nos rituais domésticos. De qualquer forma, recebo lições todos os dias.          

sábado, 30 de maio de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LXIX)




Nos últimos dias, uma película fina de gelo cobriu os campos e a cidade. Paisagem europeia em forma de geada. Temperaturas próximas do zero. Os meteorologistas (eternamente erráticos) anunciam que o ciclo climático é irreversível e que winter is coming.

Dentro do apartamento, enrolado em cobertor, tudo parece bom. A beleza e as cores do inverno propõem uma estética glamorosa. Diante do imaginário social, constantemente reiterado em filmes e séries televisivas, as baixas temperaturas incentivam as ideias românticas: lareiras acesas, taças de espumantes, fondue, corpos amorosos.

O mesmo não se pode dizer de quem precisa sair de casa para trabalhar ou sobre aqueles – em desacerto com o mundo (des)organizado – que não possuem casa nem trabalho. O inverno também possui essa característica: colocar em evidencia que existem outras questões além do idealismo.

Como não existe a primavera sem o inverno, a humanidade precisa enfrentar e superar as adversidades climáticas, econômicas e emocionais. Solidariedade é uma palavra importante nesse momento. Mas, não sei exatamente como isso pode acontecer, o ser humano não cabe na caixinha das coerências.

De minha parte, gosto do frio. Moro em uma cidade situada no alto de um planalto (um pouco mais de 900 metros de altitude). Aqui o verão é uma ficção, umas duas ou três horas na metade de janeiro, se tudo correr bem. O pessoal mais tradicional costuma reclamar que isso é demais, um solzinho de vez em quando é suficiente para recarregar as energias com vitamina D.



Neve, geada, orvalho e garoa encontram o complemento em casacos, gorros, luvas, cobertas de pena. A elegância (que é uma das características almejadas pela moda) se manifesta de outra forma. Na economia das trocas simbólicas, a sensualidade e o mistério substituem a anorexia, as roupas minúsculas e o ar blasé das passarelas. O ballet que acompanha o despir das camadas de roupas sobrepostas enuncia as surpresas escondidas nos corpos. Simultaneamente, anunciam (talvez para depois da quarentena) o calor e o prazer.

Neste ano provavelmente não haverá festas de são João. Ou melhor, serão eventos particulares, dentro de casa. Difícil dizer se terá o mesmo charme. Mas, não faltará chocolate quente, pé-de-moleque, paçoquinha, maria-mole. Os mais velhos assarão um bom pedaço de carne, que será servido com vinho. Sopa também é uma possibilidade.  

Para o pessoal do interior, nada é melhor do que prosear diante do fogo de chão ou do fogão a lenha. Entre um causo e outro, pinhão na chapa, paçoca de pinhão, canecas de café, cuias de chimarrão.  

O segredo do inverno está no poder da imaginação.

sexta-feira, 29 de maio de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LXVIII)




Ir ao supermercado está se tornando uma aventura. O Covid-19 instituiu uma série de procedimentos de segurança. Não bastasse a máscara obrigatória e o lambuzar das mãos com álcool gel, agora têm a medição de temperatura. O segurança aponta um aparelho esquisito para tua testa e dispara sei lá o quê. Se você não estiver com febre, ele permite a entrada no templo do consumismo.

Foi isso que aconteceu comigo, hoje pela manhã. Fui comprar alguns produtos básicos, o fim de semana está batendo na porta e, aos sábados, esses lugares se transformam em sinônimo de multidão. Depois de conferir armários e a geladeira, fiz uma lista relativamente extensa do necessário para atravessar em segurança os próximos dias.

O supermercado é perto, uns quinhentos metros de distância do apartamento, talvez menos, não sou bom nesse negócio de calcular distâncias. Vesti a jaqueta e fui. Fui sem a lista. Ficou esquecida em cima da mesa do escritório. Só percebi o detalhe na metade do caminho. Não quis voltar. Confiei na memória, afinal tinha conferido – várias vezes – o que estava precisando comprar.

Frutas, iogurte, leite, manteiga, pão. Não. Pão ainda tem em casa. Não vai ser preciso. Mas, quem pode resistir a alguns croissants ou um pedaço de apfelstrudel? A moça da padaria já conhece os meus gostos, sou um cliente previsível. Sigamos em frente. Sorvete de pistache – esse sim um artigo de primeira necessidade! Salame, suco de laranja, sabonete líquido, esponja para lavar louça, Bombril, água mineral com gás. Será que é só isso? Tenho a impressão que está faltando alguma coisa.

Chocolate. Quero aquele com castanha do Pará. É nacional, mas isso não importa. É quase tão bom quanto o da loja de nome estrangeiro, franquia dos sujeitos que possuem uma lavanderia financeira. Eba! Está em promoção. Compre três, pague dois. Quem há de resistir? Eu, não!

No caixa, tento pagar com o vale-refeição. A atendente me avisa que não tenho saldo. Deveria ter. Alguma coisa aconteceu, preciso verificar depois. Sem escolha, uso o cartão de crédito. Débito, por favor.


Com as sacolas na mão, paro no totem do álcool gel para engraxar as mãos outra vez. Todo cuidado é pouco, sussurra o grilo falante higienizador que mora dentro de mim.

Na praça de alimentação, decido levar para casa o almoço. Depois de mais uma rodada de álcool gel, precisei calçar umas luvas de plástico, um inferno em forma de prevenção sanitária. Com as mãos besuntadas, a tarefa se torna uma espécie de missão impossível. Nem preciso dizer que há uma fila e que o idiota que não sabe usar as luvas está atrapalhando o trafego. Depois de uma eternidade, o suor ameaçando surgir na testa, consegui comprar um pouco de comida. Paguei em dinheiro.  

Livre de toda aquela agitação sai à rua e comecei a caminhar na direção do lugar onde moro. Em casa, descubro que esqueci o queijo. Também não trouxe alguns produtos de limpeza. Todas essas coisas constavam da lista.

Amanhã será outro dia.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LXVII)


Heráclito de Éfeso (aproximadamente 500 a. C. –  450 a. C)


Em tempos de pandemia, há a falsa impressão de que o mundo está parado. É o contrário. As mudanças estão acontecendo a todo instante. E em um ritmo que nem sempre conseguimos captar. A redoma proposta pela quarentena age como um inibidor da percepção. Seja porque há um visível contraste entre o tempo antes da pandemia (grande velocidade) e o tempo da pandemia (baixa velocidade); seja porque o nosso olhar está voltado para o outro lado, local em que acreditamos estar o que nos interessa.

Para muitas pessoas (principalmente aqueles que não possuem salário garantido ao final do mês), a ameaça da doença se choca com a ameaça de passar fome. Como não conseguem contornar esse paradoxo, nada mais lhes resta senão enfrentar – com ou sem máscaras – o mundo que está além das barreiras protetoras do lar. Essas pessoas não estão preocupadas em discutir as mudanças que estão acontecendo a cada instante – o aqui e agora se impõe.

Para quem está em isolamento social, o entendimento está em outro nível. Concentrando-se em detalhes (que sempre pareceram de mínimo interesse), descobre-se que as modificações são inevitáveis, mas quase imperceptíveis. O que antes parecia se estender por quilômetros, agora se mede em milímetros.


Deixe-me dar alguns exemplos bobos do dia a dia.

Hoje pela manhã percebi que o sabonete líquido está no fim. Comprei embalagem de um litro, vários meses atrás. A previsão era que durasse eternamente. Ou quase isso. Usava moderadamente e nas ocasiões básicas de civilidade social. A reclusão voluntária mudou meus hábitos de higiene. Estou lavando as mãos diversas vezes durante o dia. Por qualquer motivo, lá estou diante da pia, a água e o sabonete unidos como se fossem uma tábua de salvação nesse mar de Covid-19 que nos cerca. Logo,... Sem que percebesse, o conteúdo do frasco está próximo do fim. Amanhã, quando for ao supermercado, terei que acrescentar um item novo na cesta de compras.

Passei a vida toda evitando lavar a louça. Muitas vezes (quase todas) deleguei o trabalho para as pessoas que ocuparam o posto de Assistente para Assuntos de Limpeza Doméstica (AALD). Sujava e empilhava na pia da cozinha. Ou seja, transferia a função. Por razões básicas de proteção mútua, mudei o proceder. Temporariamente, tenho que resolver sozinho os problemas domésticos. Não estou muito contente com isso, mas lavo a louça quase todos os dias.   
  
Na última visita à farmácia comprei um creme para as mãos. Nunca tinha feito isso. Nunca me imaginei fazendo isso. Outras prioridades. Olhando para minhas mãos, descobri que elas estão ressecadas. Será isso consequência do uso constante de álcool gel, sabão de coco, detergente biodegradável? Não sei. E o fator idade, será que não tem contribuído para ampliar os danos que nunca tinha percebido antes? O que posso dizer é que, durante muito tempo, ignorei esse tipo de questão e que, por algum motivo psicológico, agora ela apareceu como questão central.

Pois é, estou usando creme para as mãos. Não é algo que me agrada. No entanto, reflete que estão ocorrendo algumas alterações no meu modo de viver. Heráclito de Éfeso foi, possivelmente, o primeiro filósofo que entendeu que tudo flui e nada permanece. E isso está expresso no célebre aforismo que lhe é atribuído: ninguém se banha duas vezes no mesmo rio.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LXVI)




Todos possuem um (ou vários) ponto(s) fraco(s). Um dos meus é pão feito em casa. Outro é a inveja. Inveja de quem sabe fazer pão em casa. E se, por esse pecado, me couber condenação em um dos nove círculos do inferno, conforme previsto na Divina Comédia (Dante Alighieri), aceitarei minha punição sem reclamar, desde que possa comer pão feito em casa.

Nas redes sociais, há centenas de postagens de roupas de grife, relógios folheados a ouro ou automóveis que custam vários milhões de dólares. Nunca reclamei disso. Posso viver sem esses brinquedos. Tenho como meta outras questões.

O que me perturba e causa uma espécie de curto-circuito emocional são os livros e os pães feitos em casa. Por ora, deixemos os livros de lado e nos concentremos nos pães.

O distanciamento social está impossibilitando um dos atos civilizatórios mais significativos que é o sentar à mesa e (re)partir – com as mãos! – o pão. E isso remete à palavra “eucaristia” (do grego antigo εὐχαριστία), que pode ser traduzida por “reconhecimento” ou por “ação de graças”. No catolicismo, está relacionada com a divisão do pão e do vinho (corpo e sangue de Deus). Em uma interpretação livre significa se preocupar com o Outro, fornecer alimento para quem não tem o que comer.

Dito isso, convém esclarecer que a quarentena explica porque – ainda! – não fui tocar a campainha da casa de algumas almas maldosas que postam fotos (em diversos ângulos!) de algumas maravilhas da panificação artesanal. Ah, se os tempos fossem outros!!  


O sabor do pão da minha mãe se mistura com dias longínquos onde o menino que fui ia até o armazém na esquina comprar fermento (Royal?, Fleischmann?, nunca soube qual era para o pão e qual era para o bolo). Depois, todos se reuniam na cozinha. Fazer o pão era motivo de alegria. Misturar os ingredientes, sovar a massa, fazer biscoitos com diversas formas (pessoas, animais), colocar na forma (tinha algumas pequenas e uma cumprida), abrir o forno do fogão à lenha, colocar tudo lá dentro. E esperar. Esperar o milagre que transforma aquela massa gosmenta em alimento. Mal o pão saia do forno, uma parte era devorada imediatamente (um fio de fumaça iluminando a fome). Pão quente é outra coisa! Depois, com o passar do tempo, o restante da fornada era consumida de maneiras variadas: com doce de leite, com geleia, em sanduíches de queijo ou puro.  

Também tenho saudade do pão da Dona Dilma (minha Presidenta!), de quem fui vizinho por muitos e muitos anos. Era (é) uma delícia. Bom para comer puro. Como a vida se movimenta e precisamos nos adaptar a isso, mudei de endereço quase três anos atrás. No dia anterior à mudança, ela me visitou, e como presente de despedida me deu um prato de biscoitos, um gesto de ternura que lembrarei para sempre.

Em determinado momento de desequilíbrio psíquico, pensei em comprar uma daquelas máquinas de fazer pão. Felizmente, desisti em tempo. Sou um preguiçoso. Provavelmente a geringonça acabaria encostada em algum canto e eu continuaria a comprar pão na padaria, como faço frequentemente.

Ciabata, bun, pita, croissant, aussie bread, integral, pão de batata, pão de centeio, pão com múltiplos grãos, etc. – são tantos os versos do poema. Em compensação, o pão de trigo, também chamado de pão d'água, é um desses momentos que o poeta sem imaginação rima amor, flor e dor. 

Meu reino por um pedaço de pão caseiro!  

terça-feira, 26 de maio de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LXV)

Nereu de Oliveira Ramos (1888-1958)


Cena familiar.
– Porque fulano tem casa, carro, dinheiro e tudo mais, e você, que passou a vida inteira trabalhando na Prefeitura, continua pobre?
– Porque “eles” nunca me deixaram chegar perto do cofre!!


Mestre Sergio Ramos, que Deus o tenha, costumava contar uma história interessante. Nereu de Oliveira Ramos, governador de Santa Catarina (1935-1945), nomeou um amigo para um importante cargo na administração estadual.
O amigo logo depois da nomeação procurou o governador e disse:
– Nereu, não posso aceitar o cargo.
– Por quê?
– Vai ter muita pressão, muitos interesses em jogo e eu não vou conseguir aguentar tanta gente me incomodando.
– Deixe disso, meu amigo, aceite o cargo. Sei que você vai conseguir desempenhar essa tarefa com competência.

Passou algum tempo. Em conversa com Nereu, o amigo voltou a afirmar:
– Está difícil, Nereu. “Eles” não me deixam em paz! Estão oferecendo muitos benefícios!
– Ora, você está controlando tudo. Continue trabalhando.

Seis meses depois, Nereu recebeu um bilhete:
– Agora você precisa me despedir, “eles” estão chegando no meu preço!


Se alguém der um Google, provavelmente encontrará essa história com outros personagens. O folclore político costuma se repetir. Não importa. Se o Sérgio disse que ocorreu com Nereu, eu acredito que foi assim. Sérgio, que inventou um dos conceitos basilares do machismo lageano (mulheres de prateleira), não mentia. Quer dizer, nunca mentiu para mim. E isso basta.

Essas duas histórias são para ilustrar um rápido comentário sobre os mecanismos de controle interno do serviço público.

Não é nenhum segredo que poucas pessoas conseguem driblar as tentações. O espírito do capitalismo, aliado com a Lei de Gerson (levar vantagem em tudo), produz distorções morais. Além disso, o sistema político não possui interesse em estabelecer limites.
  
Nos últimos anos, algumas ações do Ministério Público resultaram em mudanças de comportamento. Mas, isso ainda não é suficiente para prevenir os desvios. Esporadicamente surgem notícias, aqui e ali, de assaltos ao erário, fraudes em licitações e pagamento de propinas.

Essas atividades ilícitas, na maioria dos casos, contam com dois tipos de ajuda: a “contabilidade criativa” e a cegueira seletiva. Nos dois casos, os personagens aceitam a aposta e pagam para ver.

Fausto sempre faz acordo com Mefistófeles.  

segunda-feira, 25 de maio de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LXIV)


Encontrei uma aranha passeando pelo chão da cozinha. Tamanho médio – se considerarmos tarântulas como parâmetro para o que se pode avaliar como grande. Esse tipo de visita não é frequente, mas também não é novidade. A diferença é que as outras eram menores. Como nada entendo de entomologia ou de etologia, fiquei, momentaneamente, sem saber o que fazer.

Muitas pessoas não hesitariam em resolver o impasse com uma chinelada. Depois, com ligeiro nojo, limpariam o calçado, amaldiçoando os animais que não respeitam os avanços imobiliários da civilização. 

Meu budismo de quinta categoria sussurrou que somente encontraremos a harmonia do universo se aceitarmos a filosofia do viver e deixar viver. A aranha foi salva pelo gongo, digo, pelo satori. Com toda a calma que esse tipo de operação exige, depois de várias tentativas, consegui colocar o aracnídeo em uma folha de papel. Cuidando para que não caísse no meio do caminho, o levei até a sacada e o joguei no terreno baldio que há ao lado do prédio.

Que a natureza decida o teu destino, ó ilustre parente distante do Peter Parker!



Esse episódio banal fez com que recordasse uma história familiar que estava escondida em alguma gaveta da memória. Aconteceu na infância. Meu irmão (quatro anos mais novo do que eu), não sei como, descobriu que nosso pai tinha um calcanhar de Aquiles: aracnofobia, ou seja, medo de aranhas. Por um desses mistérios da existência humana, o homem que nos assustava apenas com o som de sua voz se transformava em gelatina diante do octópode.

Meu irmão fez alguma bobagem substancial, não lembro o que foi, e minha mãe, como era usual, delegou ao marido a tarefa de “premiar” o infrator. Naquele dia, provavelmente, as coisas não tinham sido boas no trabalho do pai. Ele chegou em casa furioso. Mal soube do problema, foi tirando a cinta da calça. O rapazinho iria levar uma surra memorável.

Nem sempre as coisas transcorrem de acordo com a lógica cartesiana. Fingindo não estar com medo, o menino abriu a caixa de fósforos que estava em sua mão e lançou a teia (provavelmente tecida com a paciência de quem quer ganhar o jogo). Como se fosse uma mosca desatenta, o pai não foi capaz de perceber o presente de grego. Pegou a caixa e viu, horrorizado, a aranha. O cinto caiu no chão.  



Alguns dias depois ocorreu o ajuste de contas. No pagamento, houve cobrança de juros e correção monetária. O motivo inicial para o castigo estava esquecido, aliás, não importava mais. Os gritos de dor foram uma espécie de tributo exigido como compensação pelo medo que o menino havia causado no adulto.

Para o bem ou para o mal, a lição foi dupla. Um aprendeu que há limites para o que se pode fazer para tentar fugir das punições; o outro, que a violência se manifesta de inúmeras formas e, muitas vezes, pode machucar bem mais do que a agressão física.

Qual foi o ensinamento maior? O pai nunca mais aceitou qualquer coisa vinda do meu irmão.     

sábado, 23 de maio de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LXIII)




Gominho estava desconfiado de que o seu casamento estava próximo do fim. Motivos para que essa suspeita se confirmasse não faltavam. As repetidas dificuldades com seus deveres nos assuntos domésticos de cama, mesa e banho não estavam ajudando.

Embora nunca tivesse tido o mais ínfimo motivo para duvidar da fidelidade da ilustre consorte – e que tivera o azar de casar com ele –, sentiu que o vento poderia mudar a qualquer instante e...

O alerta vermelho disparou no momento em que viu (ou imaginou) o olhar de cobiça da esposa: um pós-adolescente (calção de futebol e sem camisa) limpava um terreno baldio próximo.

As diferenças eram evidentes. Gominho estava na meia idade, barrigudo, alcoólatra e chevalier servant do burgomestre de plantão. O rapaz era bonito, bem alimentado e sem ocupação definida. Provavelmente frequentava alguma academia.

Aos inseguros, qualquer gota d’água se transforma em tsunami.

A partir desse instante, começou a dormir mal. Nos pesadelos recorrentes, a esposa protagonizava cenas inacreditáveis de contorcionismo sexual com diversos parceiros. O sujeito acordava encharcado em suor.

Diz a sabedoria popular que o ciúme trabalha com lentidão, macerando o veneno, injetando-o na corrente sanguínea dos infelizes. Quem há de duvidar?

No boteco do Frajola, tentou – incontáveis vezes – afogar a crise emocional com cerveja e cachaça. Tudo o que conseguiu foi uma série interminável de ressacas.  

Um dia, próximo do desespero, desabafou com o Zé Currumaça. Contou que estava ficando encurvado. O medo de estar carregando um par de chifres pesava uma tonelada.

O amigo ouviu atento. Depois, quando o silêncio substituiu aquela saraivada de desespero, decretou:

– Vancê precisa marcá uma consurta com Madami Ismerarda. Ela lê o futuro no Tarô. Cê sabe, as carta não mente!

Com a fé inabalável daqueles que não sabem resolver os problemas do cotidiano pelas vias da razão, Gominho se deixou arrastar até o covil, digo, o templo da famosa pitonisa.  

Enquanto aguardava pela leitura dos desígnios do destino, envolto em uma mistura de incenso com flores mortas, Gominho se sentiu mal e quase vomitou.

– Sou um fraco, reconheceu para o amigo (que parecia imune àquele festival de aromas desagradáveis).

O cenário pouco arejado, digamos assim, acionou o gatilho da imaginação. Era como se ele, Gominho, estivesse participando de algum velório, provavelmente o próprio féretro.

Zé Currumaça, segurando-o pelo braço, impediu uma ação mais intempestiva, fruto da confusão mental.  Gominho queria ir até a casa do suposto comborço e dar uns socos bem dados no rosto do canalha, lavando, dessa forma gentil e urbana, a honra manchada com esperma e gemidos orgásmicos.

– Cuidado c’as visage – avisou Zé Currumaça.

– Quero ir embora, disse Gominho.

– O quê? Num vai esperá pelas carta?

– Não quero saber mais disso. Quero ir para casa.

– Num seje assim, omi du céu! Quequiéisso? Vancê tá perdendo as estribeira?

– ?!?!?!

– Nóis veio cá prá vê as carta e nóis vai vê essa porquera. Seje omi e sussegue o facho!

Sem alternativa, o infeliz sentou no primeiro banco mocho que encontrou. Levou as mãos ao rosto e chorou. Um choro lento, amargurado, e que foi aumentando a cada segundo até desaguar em histeria.

Entre um soluço e outro, Madame Esmeralda apareceu subitamente ao lado de Gominho e pousou o braço no ombro do sujeito.

O susto foi monumental. O descontrole urinário, também.

Ao perceber que havia molhado a roupa, Gominho ficou catatônico. Foi preciso chamar o SAMU. Esteve internado no hospital três dias.

Antes de voltar para casa, chamou um corretor de imóveis, queria vender a casa. E assim foi feito. Foi morar, com a esposa, no subúrbio.

Encostado na porta do bar Grenal, mascando um pedaço de gengibre, Betão da Penha acompanhou a chegada da mudança. A vida está repleta de surpresas, disse para si mesmo. E ficou alegre – como talvez possa ficar alegre o leão baio quando decide qual é a ovelha que vai devorar.



DIÁRIO DA QUARENTENA (LXII)




Dorme-se melhor quando não se sabe como se fazem linguiças e política. A frase atribuída ao Chanceler Otto Von Bismarck (1815-1898) contém mais verdades do que podem imaginar os experts que pavoneiam nas redes sociais conhecimentos que não dominam.

Assistir o vídeo integral da reunião ministerial de 22 de abril é castigo que somente deve ser impingido aos que possuem estômago forte. Uma seleção dos “melhores momentos” mostra-se suficiente para assustar quem acredita que a boa educação deve prevalecer nas discussões governamentais. A liturgia do cargo, reivindicada pelos moralistas, não existe. Os bárbaros atravessaram os portões da cidadela.



Emulando Salò, ou os 120 dias de Sodoma (Dir. Pier Paolo Pasolini, 1976), a reunião abrange grau extremo de perversão (sexual, inclusive, como pode atestar algum calouro de psicologia). A quantidade de crimes que foram cometidos na reunião ultrapassa a imaginação mais criativa. Considerando a possibilidade de estarmos vivendo em um regime democrático, as ameaças aos Ministros do Supremo Tribunal Federal, Governadores e Prefeitos configuram flagrante desrespeito aos poderes constituintes do Estado brasileiro e devem originar medidas judiciais proporcionais às agressões verbais (de acordo com diversas tipificações no Código de Processo Penal). Nesse momento, vários escritórios de advocacia devem estar trabalhando nessas ações. A proposta de burlar o ordenamento legislativo em relação ao meio ambiente constitui crime de responsabilidade e a Câmara de Deputados e o Senado devem se manifestar, em momento oportuno, exigindo explicações.

E a alusão ao armar parte da população para uma possível guerra civil? E a milícia particular (paralela à Polícia Federal e à ABIN), que informa o poder sobre o que está acontecendo no país? Não seriam estes também crimes de responsabilidade?

Além de tamanhas atrocidades, que retratam com perfeição o conceito de banalidade do mal, percebe-se que os participantes da reunião ostentam extenso vocabulário sem conteúdo. Misturando palavras de baixo calão e bajulação explicita, parecem estar no botequim da esquina tomando cachaça e falando bobagens sobre futebol (que é a esfera onde, aparentemente, tudo é permitido).

Como disse, certa vez, Tom Jobim (1927-1994), O Brasil não é para principiantes. Sabia o ilustre músico que o olhar de esperança sofre de miopia. Em outras palavras, não enxerga um palmo diante do nariz. A realidade, embaçada pelo idealismo, exige mais do que um par de óculos de grau.



Obra inacabada, sempre na espera de um salvador da pátria (e que se revela uma fraude similar à fraude anterior), o Brasil não possui linhagem. Orgulha-se de vestir a casaca de vira-latas. Para combinar com o traje, desconhece o passado, desperdiça o presente e não imagina alguma possibilidade no futuro. Enfim, gosta de encenar – sempre que possível – alguma ópera-bufa. Os músicos da orquestra sem o mínimo entrosamento com os cantores. O tal samba do crioulo doido, mas sem ritmo, sem alegria, sem samba, sem crioulo, repleto de loucura. Esse proceder confirma a frase certeira do economista Roberto de Oliveira Campos (1917-2001), Bob Fields para os íntimos, o Brasil não corre o menor risco de dar certo.
    
O que se viu no vídeo da reunião ministerial não é mera demonstração de inabilidade política e administrativa. É o contrário. Todas aquelas pessoas estão empenhadas em destruir o país – e da maneira mais competente possível. A ausência de referências à crise sanitária, causada pelo Covid-19, indica que, nesse naufrágio iminente, nada mais resta senão se dirigir aos botes salva-vidas (claro, não há lugar para todos, alguém tem que morrer, antes ele do que eu, etc. e tal).

Falta ao Brasil entender que, nas palavras do escritor português José Maria Eça de Queiroz (1845-1900), políticos e fraldas devem ser trocados de tempos em tempos pelo mesmo motivo.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LXI)



A literatura entra todos os dias no apartamento em que moro. Quer dizer, ela sempre esteve aqui, na forma de centenas de livros. Mas, em consonância com a modernidade, está adquirindo um novo formato. Está dentro da tela do computador, travestida de entrevistas literárias ao vivo. Todo dia tem uma ou duas. Às vezes, mais.      

Perdão, mas preciso abrir parênteses na conversa. Resolvi eliminar no meu vocabulário a expressão live. É que não tenho roupa para acompanhar o colonialismo linguístico. Parece-me mais elegante seguir as tendências da moda tropical indígena, que dispensa os tecidos sintéticos do homem branco e só se veste com o mínimo necessário. Fecho o parênteses.

Pois é, estou viciado. Logo depois de cumprir com as obrigações matinais, vou conferir na agenda a programação do dia. Nem sempre dou conta. Algumas coincidem e eu nunca fui bom nesses joguinhos escolha de Sofia. O bom é que algumas são gravadas e dá para assistir depois. O ruim, como apontaria Walter Benjamin, é que a aura está perdida, se é que ela existiu algum dia. Em outras palavras, Mefistófeles ganhou a alma de Fausto – mais uma vez.   

Tudo que é bom dura pouco, dizia minha avó. Por isso, não posso me furtar em três observações que me parecem relevantes.

A primeira, e talvez a mais importante, é que muito interessante ouvir as pessoas que escrevem. Sempre frequentei feiras de livro com o propósito de ver, em carne e osso, as pessoas que se escondem atrás de personagens, cenários, histórias. Não podendo estar com elas, contento-me em vê-las pelo mundo virtual. E, desta forma quase impessoal, decido se devo ler fulano ou beltrano. Outro dia fiquei maravilhado com Miriam Alves. Que força, meu são Bom Jesus de Iguape! Ela vai colocando uma coisa aqui e ali, e, de repente, como se fosse um turbilhão, inflama a fala e, sem muita cerimônia, atropela o que está na frente. Invariavelmente, algum tempo depois, faz pausa, talvez para respirar, e, cheia de arrependimento, diz: “ah, desculpe, fiz discurso outra vez”. Sim, fez, e foi bonito. Não a conhecia. Vou ter que comprar o livro que ela escreveu (Maréia, Editora Malê).

Gosto de ver as entrevistas da Julie Dorrico (https://www.facebook.com/julie.dorrico) com vários escritores indígenas. O contraste urbano com a mitologia dos povos originários, a forma com que todos se chamam de “parentes”, a resistência contra o desmatamento, os grileiros e todos os males que acompanham a civilização. É um mundo que fascina e que, ao mesmo tempo está tão distante. Também fiquei interessado em ler Eu sou Macuxi (Editora Caos e Letras).



Também tenho prestigiado as estrelas, as constelações, os satélites e os cometas. Marcelino Freire, Djamila Ribeiro, Ricardo Lísias, Julian Fuks, Tiago Ferro, John Scalzi, Aline Bei, Milton Hatoum, Bruno Ribeiro, Jorge Ialanji Filholini, Cristina Judar, João Anzanello Carrascoza, Maria Valéria Rezende, Lilia Moritz Schwarcz, uma infinidade de gente, não lembro de todos. Dá para formar uma biblioteca com a produção desse povo!

A segunda observação importante que se pode fazer em relação a essas entrevistas é que todas estão conectadas com o comércio. Nenhuma objeção a esse propósito. O que move a literatura é a transmissão da informação e ela se dá através da produção textual. O que não podemos fingir é que inexiste uma relação capitalista atrás da literatura. O livro é um produto e escritores, editores e livrarias estão interessados em vender.

A terceira observação importante é a ação teatral. Todos os entrevistados e entrevistadores se apresentam com comportamento exemplar. Ninguém, com exceção da Miriam Alves e do Ricardo Lísias, ergueu a voz ou se indignou. Todos são cordiais, educados e civilizados. Fico em dúvida se são assim no dia a dia.

Dito isso, volto o olhar para outras entrevistas ao vivo, a vida segue.