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domingo, 27 de novembro de 2022

SAMARCANDA

 


O poeta inglês Edward Fitzgerald (1809-1883) traduziu 75 poemas escritos por Omar Khayyam (1048-1131) e publicou, em 1859, esse esforço de recuperação da obra de um dos mais importantes escritores da antiguidade. O livro teve uma tiragem de apenas 250 exemplares e, infelizmente, não obteve sucesso. A qualidade do ruba’i (poesia composta por quatro versos e que procuram celebrar o amor, o êxtase, a brevidade da vida e o vinho) só foi reconhecida alguns anos depois.

Utilizando como pretexto a suposta existência do texto original do Rubaiyat (plural de ruba’i), o escritor libanês, radicado na França, Amin Maalouf reconstruiu a biografia de Omar Khayyam. Nos momentos em que não existe comprovação histórica ou documental, utilizou a ficção – brincando com a verossimilhança e com a invenção.    

Tendo como cenário as cidades míticas de Samarcanda, Tabriz, Isfahan, Teerã e Bagdá, a narrativa apresenta semelhanças com o clássico As Mil e Uma Noites. Mas, ao contrário de estar focalizada em aventuras fantásticas, onde o impossível se materializa como um passe de mágica, o leitor encontra na narrativa um relato da instabilidade política (naquela região, naquele tempo, as guerras de conquista por território eram frequentes). Também havia fanatismo religioso, disparidades sociais e econômicas, guerras fratricidas, intrigas palacianas e crueldade. Nesse turbilhão, que sinaliza para a dissolução da civilidade, o poeta exerce as suas muitas habilidades aconselhando políticos e chefes militares, fazendo previsões astrológicas, observando as estrelas (foi um astrônomo importante) e, não menos importante, encontrando o amor. Nos intervalos entre as crises, escreve poesia.

Muito tempo depois, apaixonado pelo Rubaiyat, o estadunidense Benjamin Omar Lesage, ao tomar conhecimento da existência de um improvável manuscrito, que, por caminhos bastante precários, sobreviveu ao esfarelamento do mundo, viaja até o Oriente Médio. Mais do que confirmar a existência do texto, ele quer conhecer os locais onde o poeta escreveu tantos versos maravilhosos. Essa tarefa se revela mais difícil do que o previsto. Apesar da revolução industrial e dos avanços socioeconômicos do “fin de siècle”, a Pérsia (atual Irã) continuava instável. Substituindo as tribos bárbaras, que arrasavam tudo o que estava à frente, a Rússia e a Inglaterra dominavam a geopolítica local, impondo o julgo imperialista com forças militares modernas e de forte poder destrutivo.

Imagem especular invertida de Khayyam, Benjamin encontra-se pressionado pelo romantismo inócuo e/ou pelo realismo selvagem. Independente do caminho escolhido, as perdas se transformam em dor. Seu relacionamento com a princesa Chirine, assim como o de Khayyam com Djahane, não termina em final feliz. A linha emocional que une os dois relacionamentos não consegue resistir às tensões e aos conflitos que surgem a cada instante. Possivelmente, esses relacionamentos inconclusos querem sinalizar que a felicidade é um estado transitório, que jamais adquirirá solidez.

Enfim, Samarcanda (Rio de Janeiro: Tabla, 2021) mistura romances, aventuras, história e um final pouco ortodoxo (mas que é anunciado na primeira página: No fundo do Oceano Atlântico há um livro. É sua história que vou contar).

Impresso em capa dura, com excelente projeto gráfico e tradução de Marília Scalzo, Samarcanda é indispensável leitura para quem se interessa pelo orientalismo, pela poesia, pelos livros e, sobretudo, pelo destino humano em uma região de intensos conflitos políticos.


Amin Maalouf



terça-feira, 22 de novembro de 2022

LIÇÕES DE GEOGRAFIA



Não conheço a cidade em que moro. Não conheço o município em que ela está situada (o maior de Santa Catarina: 2.644,313 km²). Não tenho constrangimento em dizer/escrever isto – embora tenha vivido em Nossa Senhora dos Prazeres mais de 90% de minha vida.

Em alguns momentos pensei que era possível me deslocar pelo corpo da cidade sem correr o risco de estar perdido. Estava enganado. Quem segue a mesma trilha todos os dias aposta na estabilidade, mas elimina a possibilidade de fornecer surpresas ao olhar.

Nesses anos todos, talvez para diminuir essa falta de percepção com o mundo que me rodeia, recebi algumas lições de geografia e que me ajudaram na tentativa de entender a cidade. Isso não aconteceu no colégio ou na universidade. Foram episódios prosaicos – sintomaticamente, mais educativos.

O primeiro professor foi o meu pai. Ele trabalhava no engarrafamento de bebidas Gerson Vargas (Rua Benjamin Constant) e percorria a cidade entregando os pedidos. Nos sábados eu o acompanhava. Contrário a distribuir mesada para os filhos, ele defendia a tese de que somente quem trabalhava pode desfrutar dos prazeres da vida. No meu caso, ir à matinê do Cine Tamoio, aos domingos. Ir ao centro da cidade – e se espantar com as vitrines das lojas, cobiçando roupas e brinquedos que estavam fora do alcance econômico da família – era sempre bom. Principalmente porque naquele tempo o meu mundo estava reduzido ao trajeto entre a nossa casa (Rua José Berlim) e o Centro Educacional Vidal Ramos Júnior (Rua Frei Rogério). Quando conheci os bairros Triângulo, Copacabana, Ferrovia, Caça e Tiro e Santa Helena, entre outros, meus limites espaciais foram ampliados exponencialmente. Percebi que não existiam obstáculos para o Chevrolet que o pai dirigia.

Minha mãe também me mostrou que o campo de ação está conectado com vida. Depois que se separou do marido, deu vazão ao instinto cigano e carregou os filhos para dezenas de lugares e bairros. Cohab (que depois passaria a se chamar Petrópolis), Morro do Posto, Centro (várias vezes), Várzea, Santa Rita, Brusque (várias vezes), Coral (duas vezes). Para ela, a beleza da vida era constituída de movimento, mistério e desassossego. Algumas vezes a mudança era fruto de desentendimento com vizinhos; em outras sequer arrumava desculpa para se deslocar. Em uma dessas ocasiões só fui conhecer o novo endereço quase quinze dias depois.

Meu terceiro professor foi João Cardoso. Vice-Prefeito, na década de 80 do século passado, ele se desentendeu com o titular do cargo e, por razões de segurança, montou gabinete no edifício Luciane (Rua Correia Pinto). Colocado à disposição, lá fiquei por alguns meses. Certo dia, em uma dessas conversas que ninguém sabe como começa, ele me perguntou se eu conhecia o perímetro urbano. Com a soberba dos jovens, respondi que sim. Ele me olhou com desdém e pediu para que o acompanhasse. Não foi um passeio turístico. Foi uma aula prática de sociologia. Em um fusquinha azul (não tenho certeza se era essa a cor), fomos até lugares que nunca imaginei existir. Sem fazer discurso ou propor uma discussão moral, João me mostrou o vórtice de horror. Ou uma fratura exposta. Moradias em áreas verdes, em regiões alagadas, construídas com materiais precários, prestes a desabar. Ruas de chão batido em que o número de buracos era superior à área pavimentada. Ausência de energia elétrica e água potável. A periferia (e seus escombros) produziu um choque emocional – do qual ainda não me recuperei.

Meu quarto professor foi Moisés Savian. Plantonista na Secretaria de Agricultura, o acompanhei pelas estradas do interior do município. Em alguns momentos (e não foram poucos) nos alimentamos de poeira. Mas também tivemos compensações. Pude rever a Coxilha Rica (Morrinhos, São Jorge), região em que meus avós tinham uma propriedade. Conheci Três Árvores, Macacos, Índios, Cadeado – locais onde foram realizadas reuniões e acordos. Essas viagens abriram – para mim – outra dimensão no município. Acostumado a viver na segurança assegurada pela região central da cidade, fiquei perplexo com a beleza da paisagem e sem entender a razão de ter me mantido afastado daquilo tudo por tanto tempo. Nos últimos anos, voltei ao paraíso diversas vezes.

Algumas pessoas perguntam sobre o que me motiva continuar morando em Lages. Não tenho resposta convincente para isso. Não posso usar como desculpa o filho, o emprego, o sossego, o masoquismo ou a lenda popular que diz que quem bebe da água do rio das Caveiras nunca mais se liberta. Citar qualquer um desses itens seria falsificar a verdade.

O que interessa é que eu me sinto bem morando na terra em que as minhas histórias adquiriram consistência e que comemora o seu 256º aniversário de fundação no dia 22 de novembro. Isso parece ser o suficiente.

sábado, 19 de novembro de 2022

DAS DIFICULDADES DE TORCER CONTRA

 



A Copa do Mundo de Futebol está próxima e eu vou torcer contra a equipe que dizem representar o Brasil. O quê?, exclamarão os exaltados patriotas, sem sequer tentar entender quais motivos me movem na direção contrária à unanimidade esportiva nacional.

 

Primeiro. Gosto de futebol. Moderadamente. Nas tardes de domingo ou nas noites de quarta-feira, uma partidinha na televisão nunca foi mau programa. Sofá, cerveja, pipoca. Se o jogo for bom, motiva-se o destampar de algumas muitas ampolas de pão líquido. Em caso contrário, aproveita-se o sofá para colocar o sono em dia. Exigir mais do que isso sempre me pareceu inadequado. Desafortunadamente, há quem discorde. Algumas pessoas acreditam que vinte e dois marmanjos correndo atrás de uma bola têm o mesmo valor de um ritual religioso. Nesse cenário, o grito de gol equivale ao clímax, ao orgasmo. Bobagem. De minha parte, um grito de gol é apenas barulho irritante. Quando o gol é contra o Santos, muito mais irritante.

Segundo. O fanatismo, que é um fenômeno trivial no mundo esportivo, costuma gerar episódios excessivos. Um conhecido, depois de assistir – pela televisão – a derrota do time de sua devoção, chamou a família para uma solenidade no quintal de casa. Enquanto um dos empregados, clarim em punho, executava (literalmente) o toque de silêncio, ele, lágrimas escorrendo pelo rosto, hasteou a meio mastro a bandeira da agremiação esportiva.

Terceiro. O único momento em que considero o futebol como algo sério é nos jogos da seleção brasileira. Independente dos jogadores convocados, do técnico ou da importância do jogo, minha função nesse tipo de situação é simples: torcer contra. Não é uma posição cômoda. Certa vez, na casa de amigos, quase fui atingido por uma panela de pipocas. Foi em uma partida contra um país africano, não lembro qual. Fiz algum comentário sobre a miséria intelectual dos jogadores nacionais. A namorada de um dos convidados tomou as dores dos ofendidos. E... Transformou o utensílio doméstico em tacape. Se não a contivessem a tempo, provavelmente me presentearia com uns quinze pontos na cabeça.

Quarto. Em ocasiões similares, o tribalismo esportivo se faz acompanhar de agressões verbais. Como a seleção é considerada símbolo nacional, torcer contra é visto como heresia, crime, traição. Esse nacionalismo, herança de um pensamento autoritário, habitualmente é seguido por simpáticos elogios a respeito de minha masculinidade. A honra da senhora minha mãe também costuma ser mencionada com carinho. Fofo, muito fofo.

Quinto. Na pátria de chuteiras, segundo a histriônica definição de Nelson Rodrigues, muitos torcedores andam descalços. E com fome. E com frio. E com sede. Sede de justiça (aquela que todos conhecemos por tardar e falhar, sem constrangimentos, sem pedidos de desculpas). No país onde o drible, a firula, o passe de letra, o deixar o zagueiro da vez sem fôlego são qualidades indiscutíveis, a política esportiva se afasta da solução dos problemas reais. Muitos jogadores, além dos jornalistas esportivos, preferem adotar o comportamento alienado de que em boca fechada não entra mosca e que o importante é apenas jogar futebol. Em outras palavras, deixam as relações com o mundo objetivo sob o controle dos dirigentes – outorgando-lhes o uso como melhor lhes for convenientes. E, claro, eles os usam politicamente, inclusive para apoiar projetos pessoais.

Sexto. Na nação futebolística, a Copa do Mundo é a Disneylândia dos pobres. Nesse parquinho de diversões dirigido por um setor comercial que fatura milhões (Adidas, Nike, Puma, Kappa, New Balance, Le Coq Sportif, etc.), além das redes de televisão e seus anunciantes, a paixão esportiva é apenas um detalhe – e que eles exploram sem a mínima piedade. Do óleo de soja até os trajes esportivos, tudo é usado comercialmente como metáfora do sucesso esportivo.

Sétimo.  Futebol é política, é ação política. Como tudo na vida. Mas, para que se possa enfrentar um adversário prepotente, acostumado a vencer, precisamos acordar para a vida ou continuar sonhando sonhos que não são os nossos. Necessitamos entender que uma das finalidades políticas dos jogos de futebol é anestesiar dores, é desviar a atenção de problemas mais relevantes. E isso raramente pode ser considerado positivo.

Oitavo. Quem possui um mínimo senso crítico jamais esquecerá a importância política de jogadores brasileiros como Sócrates, Afonsinho, Juninho Pernambucano, Paulo André, Raí, Casagrande – todos contra o moralismo hipócrita do futebol, todos se afastando da alienação, do preconceito, do sexismo, da misoginia, da homofobia e do racismo. São pessoas essenciais. Precisamos deles. Mas, falta-nos um Éric Cantona, para dar uma voadora na iniquidade e na falta de empatia pela vulnerabilidade do Outro.

Nono. O futebol é um esporte que não consegue superar as próprias limitações – e é sempre um desastre do ponto de vista político.


Décimo. Vou torcer contra. 



quinta-feira, 17 de novembro de 2022

PAI E FILHO NO CINEMA (texto modificado)

 


Fomos assistir um desses desenhos da Disney. Despesas por minha conta, apesar do saldo bancário assinalar níveis próximos da falência. 


Como é de conhecimento geral, sair com filho pequeno implica em carregar mochila com o básico: muda de roupa, sandália, salgadinhos diversos e, talvez o item mais importante, um urso de pelúcia (no caso, o Godofredo, mundialmente conhecido como Godô). 

Em ritmo caracol (carregando a casa nas costas), estávamos quase chegando à bilheteria, quando... Um pequeno obstáculo: comida. Depois do “nutritivo” lanchinho, o cinema. Ingressos na mão, parada obrigatória na bomboniere (balde de pipocas, chocolate e refrigerante). 

Quando, finalmente, sentamos nas poltronas e joguei a mochila no chão, sobraram alguns segundos para olhar a plateia. Claro, dezenas de crianças. E... oba!, algumas mães. Uma pequena compensação para essa vida de pa(i)trocinador!

Nesse momento, o menino começou a me contar uma história comprida sobre alguma coisa que aconteceu na escola. Confesso que não prestei muita atenção. Meu pensamento estava distante, em um tempo já perdido, quando morávamos juntos e a dor era apenas um trecho tolo de um romance de segunda classe. 

A salvação veio com o apagar das luzes e o início da sessão. Ao mesmo tempo em que a tela era invadida pelas cores da projeção, fingindo limpar os óculos com lenço de papel, sequei os olhos úmidos. E - que remédio? - mergulhei nas pipocas, aquilo tudo estava me deixando com fome!

Uns quinze minutos de projeção e o primeiro problema: pai, quero fazer xixi!. Fomos procurar o banheiro. Na volta, ao tentar localizar o nosso lugar, não vi o pé de uma senhora. Constrangido, pedi desculpas. 

O segundo problema foi quase imediato: com o menino entupido de pipocas, a sede era uma questão de tempo. Fui buscar refrigerante. O que se seguiu pode parecer brincadeira. Não foi. Pisei, outra vez, no pé daquela adorável criatura. O palavrão que ela pronunciou foi ouvido no outro lado da cidade. Pedi perdão, novamente. Na volta, tomei o maior cuidado para não repetir a cena. Mas levei o troco, ou melhor, uma rasteira. Só não beijei o chão por pouco, muito pouco. Coisas da vida, pensei, enquanto tentava enxugar as mãos molhadas de refrigerante.

Depois disso, seguiu-se um período de assustadora tranquilidade. As aventuras da tela foram superiores às desventuras da vida. Com frio, ele pediu para sentar no colo e assim, deitado no meu peito, continuou se divertindo com as trapalhadas que estavam acontecendo na tela grande. Foi fantástico sentir os meus braços em torno do seu corpo, as mãos acariciando-lhe o rosto e os cabelos. 

Terminado o filme, fomos comer pastel, tomar sorvete, ver as lojas (na livraria demorei uma eternidade, reclamou o menino).

Quando voltamos para casa, estava escurecendo. No ônibus, abraçado ao Godô, o menino dormia. Desejei poder repetir aquele dia outras vezes.


sábado, 12 de novembro de 2022

CLUBE DE POESIA (texto modificado)

 


− Alô?


Anita? É o Joaquim. Estou ligando pra avisar que vou chegar mais tarde. Vamos, finalmente, fundar o nosso clube de poesia. Não é fantástico?


Anita não teve tempo de responder, o marido desligou antes. Com o celular na mão, a mulher teve um pressentimento: alguma coisa estranha estava acontecendo. Clube de poesia? E o que é que o Joaquim sabia de poesia? Tá certo que havia acumulado pela vida afora certa instrução cultural e, às vezes, recitava no meio da conversa um ou outro verso (normalmente bem colocado no contexto da discussão), mas... Daí a se transformar em poeta, ou pior, em intelectual, era preciso correr muita água por baixo da ponte. Clube de poesia? Hum... Que piada sem graça. Até porque ela conhecia, com intimidade, a "figura" com quem estava casada a mais de quinze anos. Provavelmente era apenas mais uma desculpa esfarrapada para aquele bando de bêbados, que ele chamava de amigos, "tomar todas". É, devia ser isso mesmo.


Satisfeita com essa conclusão, Anita parou de pensar no assunto.


No entanto, o impossível estava acontecendo. Joaquim, toda terça-feira à noite, com meia dúzia de livros debaixo do braço, saía para a tal reunião.


Às vezes voltava para casa, completamente bêbado, falando sobre hemistíquios, alexandrinos e epopeias líricas. Uma vez declamou, aos berros, um poema em francês. Acordou a casa toda e uns dois ou três vizinhos. Foi preciso o filho mais velho levantar da cama e chamar a atenção do entusiasmado poeta. Com os olhos brilhando e balbuciando uma algaravia particular pediu perdão e foi dormir.


A rotina doméstica foi alterada. Joaquim se encastelou no escritório e proibiu a empregada de se aproximar enquanto ele estivesse "trabalhando".


E o trabalho era um poema épico sobre a conquista da América, os mitos indígenas e o horror criado pela civilização europeia. Esporadicamente, Anita o ouvia, ao telefone, pedindo informações sobre a civilização maia ou então discutindo a veracidade de algumas inscrições rupestres encontradas no interior da Bolívia. Em alguns momentos, o debate telefônico ficava tão acalorado que, da conversa mansa inicial, evoluía para gritos primitivos, recheados de palavrões e outras delicadezas.


Anita estava à beira do estresse quando Joaquim lhe comunicou que o Clube de Poesia estava organizando uma excursão para Minas Gerais. Seriam apenas alguns dias – duas semanas, para ser mais exato. Infelizmente as esposas não poderiam ir junto. Será que ela se importava? É claro que nãodisse aliviada. Férias conjugais (e poéticas) eram tudo o que Anita queria da vida – naquele instante.


E assim foi. Joaquim, feliz como um adolescente, embarcou uns vinte dias depois. Prometeu fotografar o cemitério onde estavam enterrados alguns dos poetas inconfidentes, jurou que declamaria Marília de Dirceu nas ruas de São João Del Rey... Visitaria Ouro Preto, Sabará, Mariana... Compraria souvenires, cartões postais... Enfim, tinha certeza que aquela viagem seria inesquecível. O filho do meio sorriu amarelo, imaginando sabe-se lá o quê, talvez o internamento do pai. E abanou a mão para o ônibus que estava saindo.


Durante o tempo que ficou fora, Joaquim telefonou todos os dias. Fazia questão de contar – com detalhes – as novidades. Encontrou a Nélida Piñon. Conversaram durante "horas". Ganhou, naturalmente, autógrafo para toda a família. O filho caçula aproveitou a doçura enjoativa do momento e avisou à plebe doméstica que estava de mudança para a casa do primo: Ninguém vai conseguir aguentar o papai quando essa bad trip terminar!


Palavras proféticasdiria Anita, quando reencontrou Joaquim. Depois de um longo e ardoroso beijo, ouviu o marido dizer: J’ai la fureur d’aimer. Diante da cara de espanto da mulher, o marido foi esclarecendo:


− Eu tenho a fúria de amar". É um verso fantástico do Verlaine. Você não conhecia?


Não, a esposa não conhecia. Nem queria conhecer. E já começava a ter raiva de quem tinha compartilhado aquela glória.


A coleção de fotos e vídeos se transformou em sinônimo de suplício. Eram tumbas, praças tediosas e estátuas caindo aos pedaços. Invariavelmente, a vítima de plantão, depois do décimo fotograma, olhava para o relógio e se lembrava de um compromisso inadiável. Antes de ir embora, prometia voltar em outra hora, com mais tempo, para ver aquelas maravilhas. Joaquim sorria, extasiado.


E nesse ritmo a vida foi sendo conduzida por alguns meses. Uma tarde, Anita encontrou, em cima do sofá, o telefone de Joaquim. Mesmo sabendo que estava errada, resolveu conferir as postagens do marido.


Imediatamente ficou confusa: o "ilustre companheiro de toda uma vida" tinha enviado, para uma mulher desconhecida, um poema erótico. Um daqueles bem picantes, cheio de insinuações e promessas.


Anita ficou boquiaberta: Meu Deus, o que será que está acontecendo? Com uma tranquilidade desproporcional para aquele momento, sentou no sofá.


Algumas horas mais tarde, depois de muito pensar, Anita reuniu os três filhos e colocou as cartas na mesa. Disse o que precisava ser dito. Depois, chamou o marido e, diante da prole, fez o relato. Joaquim negou. Negou tudo. E, ofendido, exigiu desculpas. Como não conseguiu convencer ninguém, enquanto arrumava a mala, ensaiou meia dúzia de lágrimas. Foi para um hotel.


Em menos de uma semana, estava morando com a amante.


Às vezes, por pura farra, mostra para os amigos as fotos da viagem a Minas. Na maior felicidade, explica:


− O responsável por essas imagens foi o Silva, meu amigão! Em cada cidade mineira, ele fazia questão de fotografar os monumentos, as igrejas, as velharias. Enquanto isso, nós... Bem, nós ficávamos namorando no hotel! Foi uma viagem maravilhosa! Aliás, maravilhosa foi essa minha ideia de fundar um Clube de Poesia – o álibi (quase) perfeito!!!!!!!!

 


segunda-feira, 7 de novembro de 2022

ALGUMA COISA ACONTECEU, TUDO ESTÁ DIFERENTE

 


No campo de futebol da escola, as duas equipes pareciam estar lutando pela vida. O placar do jogo estava igualado até o momento em que um dos zagueiros cometeu um erro grosseiro. O gol se revelou mero detalhe na tragédia esportiva. Além da pressão emocional, o relógio anunciava que o fim da partida estava próximo.

Um dos jogadores, aluno esforçado, desses que passam horas diante dos livros, não se conformou com o destino. Com a bola embaixo do braço, providenciou a nova saída do jogo e pediu que lhe passassem a bola. Com uma habilidade que (até então) era desconhecida, foi driblando os adversários. Um por um. Abriu uma avenida no campo do adversário. Quando se aproximou da grande área, tendo somente o goleiro na sua frente, chutou forte no ângulo direito.

Com a mão erguida, o goleiro projetou o corpo na direção da bola. Esforço inútil. A bola passou por entre os seus dedos e somente diminuiu a velocidade quando se chocou contra a rede. 

Empate. Foi desta maneira que tudo terminou. O autor do gol salvador foi considerado um herói pelo resto do ano.

O passado é como vestir um casaco velho – roupa puída que projeta alguma luz na vida que imaginamos ter existido antes. Imerso na névoa onírica, aquele que conta uma história vai preenchendo as lacunas que surgem na narrativa. Assim, a história que é contada nem sempre corresponde ao que aconteceu, embora esse tangenciar seja uma forma de se aproximar dos fatos. 

Quase cinquenta anos depois daquele jogo de futebol, o menino que não se conformou com a derrota está muito diferente. Ficou conservador. Não consegue conviver com as diferenças ou com as mudanças socioeconômicas. Alguma coisa aconteceu com ele. Preferiu construir uma verdade particular – desprezando o que lhe desagrada.

O tempora, o mores, alertava o filósofo Marcus Tullius Cicero (106 – 43 a. C), ciente de que os modos e as modas são frutos da vivência dos indivíduos. Ou seja, os acertos e as distorções estão relacionados com o processo histórico que cada pessoa precisa enfrentar durante a vida.

Mais tarde, bem mais tarde, Sigismund Schlomo Freud (1856 – 1939) acrescentou outro elemento à equação: a construção emocional dos indivíduos está relacionada com a fragilidade (ou não) do ego. O narcisismo costuma ser mais forte que a racionalidade e muitas ações são consequência de uma necessidade compensatória para algum desgosto ou desacerto.   

Na modernidade, não há surpresa quando a ilusão surge no horizonte. Esse proceder sebastianista de salvação, que se espelha na figura do herói (aquele que sacrifica a própria vida pela humanidade), almeja ignorar que as ações de transformação do espaço social precisam ser planejadas como um ato coletivo, como uma forma de integrar os diversos agentes em uma proposta que visa o bem comum.  

O menino que acreditou que poderia mudar – sozinho – o rumo de uma partida de futebol (ou, por extensão, do mundo) ficou preso no passado. E, se tudo correr bem, lá deve ficar por toda a eternidade. 

 


 


quarta-feira, 2 de novembro de 2022

NA INFÂNCIA, O DOMINGO TINHA SABOR DE PIRULITO ZORRO (texto ampliado)

 


Na infância, o domingo tinha sabor de pirulito Zorro. Aquele Z, que tantas vezes se repetiu na tela do cinema, era doce e ainda hoje, depois de tanto tempo, inspira boas lembranças.

 

Antes, no almoço, lasanha. Uma travessa de vidro enorme, fumegante, colocada no meio da mesa, o queijo derretendo diante dos olhos. Pai, mãe, irmãos – todos comportados, fingindo amor. A sobremesa variava: arroz doce, sagu ou doce de gila. Depois, no início da tarde, quando podíamos nos livrar das amarras familiares, cinema. Cine Tamoio, onde o pai de alguns amigos era funcionário. Às vezes, Cine Marajoara. Raramente no Cine Avenida − era longe, precisava pegar ônibus.

Domingo era dia de faroeste. Dólar furado, Por um punhado de dólares, Django. Lee van Cliff era o pistoleiro que levava tiro no peito na cena final do filme. Giuliano Gemma duelando contra o bandido no final da tarde. As portas do saloon rangendo, enquanto o vento empurrava rolos de feno pelo meio da rua.


Alegria grande, dessas de quem ganha na loteria, eram aqueles filmes em que os amigos Winnetou e Mão de Ferro se esforçavam para levar a paz entre mineiros e índios, entre posseiros e camponeses. A Biblioteca Pública tinha todas essas aventuras. Cansei de levar emprestados os livros escritos por Karl May.


Quantas vezes rimos da incompetência do Sargento Garcia, que jamais conseguiu alcançar Don Diego de La Vega? Esporadicamente assistíamos Kung Fu ou Flash Gordon. Mais frequentes eram os filmes heroicos: Maciste, Hércules, Sansão e Dalila. Victor Mature fazendo pose de galã. Umas histórias enroladas, muitas cenas de lutas com espadas, gladiadores vencendo leões no Coliseu, mulheres com togas curtas, o contorno dos corpos se insinuando através do tecido fino. Ninguém perdia essas sessões. Assunto garantido no recreio da escola, na manhã seguinte.


Naquele tempo, a bomboniere do cinema era sortida em doces (balas azedinhas, Mentex, Diamante Negro, Sonho de Valsa) e não vendia pipoca. Em uma cidade próxima, um juiz não gostou de ouvir alguém estourar a embalagem. Proibiu a venda em todos os cinemas. Anos 70. A repressão política era constante e nós íamos ao cinema se divertir.


Refrigerantes também não vendiam. Não lembro o motivo. Se estivesse com sede e algum dinheiro, era preciso entrar em algum bar e pedir no balcão. Não havia nada melhor do que Crush gelado, aquele gostinho artificial de laranja descendo pela garganta como se fosse festa. Sabor muito diferente daquelas limonadas aguadas que acompanhavam as refeições lá em casa. Em dias especiais tínhamos permissão para beber capilé (um xarope gosmento de groselha).


Não importava se tínhamos assistido filmaço ou bomba. Ir ao cinema era (ainda é) um prazer.


Depois de olhar as vitrines das lojas (sonhando com brinquedos e objetos que nunca iríamos ter), era hora de comprar revista em quadrinhos. Essa era uma parte indispensável do programa. Em uma banca ao lado do Colégio Estadual de Lages (CEL) tinha de tudo: Pato Donald, Zé Carioca, Batman, Super−Homem. Muitas vezes não era possível comprar todas as novidades. Acordos financeiros com os irmãos raramente funcionavam. O usual eram as brigas, os gritos e acusações, as promessas de contar "tudo" para a mãe.


No inicio da noite de domingo visitávamos um dos irmãos de meu pai. Lá tinha televisão. Na nossa casa, não. Solenes, fazíamos silêncio diante das imagens transmitidas pela TV Gaúcha, único canal possível naqueles tempos. Nossa diversão era, no primeiro instante, o Show do Gordo − um mix de entretenimento, com direito a calouros musicais. Uma hora depois, a grande atração da noite: Ringue 12 Marinha Magazine. Todo mundo torcendo por Ted Boy Marino, que julgávamos o maior lutador de todos os tempos.


Mais tarde, não lembro quando, o mundo das imagens (e, consequentemente, dos filmes) se expandiu através da TV Coligadas, de Blumenau (programação da Rede Tupi e da Rede Globo). Parecia que o mundo tinha se transformado em um domingo eterno. A vida familiar foi invadida por desenhos animados (Manda-Chuva, Tom e Jerry, Pica Pau, Flintstones, Corrida Maluca, Zé Colmeia e Catatau, Pernalonga, Os Jetsons, entre outros) e atrações adultas como Almoço com as estrelas, com Airton e Lolita Rodrigues, O Céu é o limite, com J. Silvestre, Programa Flávio Cavalcanti e Amaral Neto, o repórter. Nunca mais fomos os mesmos depois que as novelas se transferiram do rádio para a televisão.


Na infância, em alguns momentos, a felicidade esteve por perto – depois, como sempre acontece, foi embora.