Páginas

domingo, 31 de dezembro de 2023

O ANO NOVO ANTECIPA O SURGIMENTO DO DRAGÃO



 

O primeiro de janeiro deveria ser proibido, e o dois de janeiro também. O ano deveria começar em vinte e um de março. Não haveria surpresa se fosse um brasileiro o autor dessas três frases. No imaginário popular, o país só começa a funcionar depois do Carnaval. No entanto, a declaração é do Pepe Carvalho, personagem de vários romances policiais do espanhol Manuel Vásquez Montalbán. Evidentemente, ele se expressa para caracterizar uma situação particular: a enorme ressaca alcoólica decorrente da mudança de calendário no longínquo ano de 1984.

Trazendo esse pensamento para o momento atual – em que a Terra efetuou mais uma rotação em torno do Sol –, podemos dizer que, apesar de todas as tragédias (guerras, crise climática, preconceitos diversos, fanatismo religioso,...), ainda estamos vivos. Não sei se isso justifica pular sete ondas no mar, beber inúmeras taças de vinho, vestir roupa branca, fingir afeto, comer lentilhas, romãs, uvas,... Tampouco é possível encontrar motivos para suportar as previsões sobre o futuro, as listas dos melhores e dos piores, e as retrospectivas – momentos que tentam transformar o processo histórico em faits divers.

Viver não é preciso, navegar é preciso, diria o poeta português, aquele que sobreviveu a inúmeras noites festivas em completa solidão. No outro extremo da corda encontramos Guimarães Rosa, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e dai afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem...

No filme A Encruzilhada (Crossroads. Dir. Walter Hill, 1986), um estudante de guitarra procura por uma canção perdida de Robert Johnson. A metáfora musical propõe um dilema: será que o preço a pagar vale o que se recebe em troca? Só encontra a resposta quem escolhe trilhar um dos caminhos da bifurcação. Essa atitude determina os acontecimentos futuros. Por isso (e mais algumas coisas) cabe seguir na procura. Sem expectativas ou ilusões, misturando alegria e medo. E com as armas que estão à disposição, sejam elas o tacape ou o míssil nuclear.   

Comprei espumantes, cervejas, refrigerantes, isotônicos, garrafas de água mineral. Tudo no plural. O excesso é um dos sinônimos do viver. Se não for, deveria ser. Salvo engano, estou tentando consumir todas essas bebidas sem grandes preocupações hepáticas ou diabéticas. Quase escrevi diabólicas – tenho dificuldades para fugir dos trocadilhos ruins. Aliás, não é só nessa questão que encontro complicações. No tropeçar diário, a serenidade parece estar se distanciando a cada segundo. Nasci com pouca paciência.

O início do ano é uma convenção. Não tem o mínimo significado para algumas culturas. Pelo calendário lunar chinês, o ano 4722 começa em 10 de fevereiro.  Será conhecido como o ano do dragão (do tipo madeira yang, uma dessas classificações complicadas do povo asiático). Previsões astronômicas e astrológicas indicam que haverá o cuspir de fogo em pessoas e cidades que negarem as qualidades mágicas (ou ilusórias) do animal mitológico. Vou perguntar a Daenerys Targaryen, Harry Potter, Lisbeth Salander, Lui Nakazawa ou para algum monge tibetano o que preciso fazer para conseguir um desses animais de estimação. 

Enquanto isso não acontece, e não for possível acelerar o tempo da imaginação, ciente de que cada história é um acontecimento único, intransferível, e que ninguém herda a sabedoria, resta olhar para os erros cometidos no passado e receber os novos desastres de braços abertos. A vida não se resume em abraços, mas pode ser uma forma de iniciar o ano, qualquer ano – se você for otimista. Não é o meu caso.




sábado, 30 de dezembro de 2023

PROUST, TÂNIA, SALETE, LEANDRO KONDER

 


Estou me organizando para ler os sete livros que compõem À Procura do Tempo Perdido, do Marcel Proust (1871-1922). Comprei os dois primeiros volumes da nova edição brasileira (Companhia das Letras), mas eles estão intocados na estante. É que não quero mergulhar no abismo sem alguma rede de proteção. Ou seja, vou ler, antes de tudo, alguns ensaios críticos e biográficos (Roberto Machado, Samuel Beckett, Vladimir Nabokov, Alain de Botton, Joseph Czapski, Celéste Albaret, Edmund White e outros). Depois é que iniciarei a aventura.

Talvez isso seja um preciosismo. Mas, alguns leitores possuem baixo nível de compreensão de certas coisas (ou das coisas certas). Não me considero enquadrado em um desses casos em que é difícil distinguir a loucura da lucidez, até porque conheço situações piores. No entanto, como é de conhecimento amplo, geral e irrestrito, a literatura produzida por Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust (nome completo do escritor) não é exatamente chá com bolinhos (embora... chás e bolinhos façam parte do cenário).

No meio de um dos livros do Roberto Machado, Proust e as artes (Editora Todavia, 2022), encontrei menção ao Bergotte (um personagem proustiano importante). Nesse momento, alguma gaveta da memória se abriu. Junto trouxe a dúvida. Onde foi que li esse nome? Interrompi a leitura e fiquei a pensar nesse mar de papel e tinta que compõe a biblioteca (ou melhor, todas as bibliotecas do mundo). Em algum lugar, qual?, encontrei Bergotte – e não foi nos livros de Proust.

Duas da manhã. A intuição me dizia que a solução estava escondida em algum lugar das estantes que abrigam a literatura brasileira. Bastava procurar. De repente, tudo se esclareceu. Poderia chamar esse momento de insight, epifania, revelação, satori, estalo de Vieira, sei eu lá o quê. Poderia.

Foi em 2000 ou 2001. Aluno do mestrado em literatura na Universidade Federal de Santa Catarina. Aula da Tânia Regina Ramos. Trabalho de grupo. Salete Lopes fazia parte da minha equipe – desculpem-me, não me lembro das outras pessoas que estavam conosco. A proposta era ler um dos livros da coleção Literatura ou Morte (Companhia das Letras) – e escrever um texto sobre a experiência. A nós coube Medo de Sade, do Bernardo Carvalho. Creio que completamos a tarefa com eficiência.

Embora (naquele tempo) estivesse próximo da falência, aos poucos fui comprando os outros livros que foram usados na disciplina acadêmica. Foram esses volumes que procurei no meio da madrugada (porque a menção ao Bergotte não está no romance do Bernardo Carvalho). Não sei se encontrei todos. Fui conferir na Internet e pouco ou nada encontrei sobre a coleção. Vinte e poucos anos parecem uma eternidade. Rastros desaparecem na luminosidade de outros acontecimentos.

A referência está em A morte de Rimbaud, do filósofo Leandro Konder (1936-2014). O texto está encharcado de citações proustianas e francesas. Depois que o mistério se esclareceu, lembrei que li o romance com bastante interesse porque Konder escreveu dois textos que, naquela época, me impactaram muito: A Derrota da Dialética (Editora Campus, 1988) e Walter Benjamin: o Marxismo da Melancolia (Editora Campus, 1988). Esporadicamente, releio trechos desses livros – é tão bom quando percebemos que o tempo não dissolveu os ensinamentos do Mestre.

Por algum motivo, e não sei exatamente qual, tudo o que posso dizer sobre essa história é que, sentado no sofá, com os livros da coleção nas mãos (alguns bastante surrados), fiquei com saudades das aulas da Tânia, da generosidade da Salete, da inteligência do Leandro Konder. 

A curiosidade pelas frases intermináveis do Proust aumentou.  


 

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

O REI DA ÁGUA

 


Em um mundo aquático, no futuro distante, as irmãs Andrea e Juana precisam decidir se aceitam receber uma indenização pela morte do pai. Como acontece em muitas relações fraternas, as duas mulheres sentem prazer ao saborear os frutos do antagonismo. Criadas separadas, com interesses (inclusive econômicos) divergentes, olham uma para a outra como se fossem estranhas. E são. Uma foi criada pelo pai (ativista político), a outra pela mãe (atriz). E não se encontram em nenhuma das páginas do texto.   

A narrativa abusa das frases poéticas, compondo um campo onírico e repleto de metáforas que levam a imaginação do leitor para lugares que parecem estar distantes da linha narrativa principal – que talvez não seja de fácil percepção porque O Rei da Água (Editora Peabiru, 2023) integra uma trilogia (Pichonas e El Ojo y la Flor, as duas partes que o circundam não foram traduzidas no Brasil). Em alguns trechos parece estar faltando (ou sobrando) alguma informação. O estranhamento se faz presente.

O mundo está se tornando desertificado, a água potável substituiu o combustível fóssil como a commodity mais importante. A cidade de Tigre (Província de Buenos Aires, Argentina), aproveitando a riqueza líquida que é o Aquífero Guarani, se transforma em uma das principais fornecedoras mundiais. E isso, independente de outras questões, significa que a política, a economia e as ações sociais são administradas pelo Estado (ou por seu representante). O controle do consumo se torna um item essencial para extrair o máximo de lucro de uma atividade que tem vida útil limitada. Água é poder – segundo Tempe, o rei da água.

Como se fosse o abrir das comportas de uma represa, o fluxo narrativo avança na descrição de personagens estranhos, pouco críveis, como Tullio (o advogado) ou Cresta (o palestrante). São objetos (abjetos) que não combinam com a decoração do cenário, que confundem o desenrolar dos acontecimentos, que destoam de Galo e de Dalezio (os companheiros de Andrea e Joana, respectivamente). Esses invasores parecem querer encontrar navios ancorados, destroços suspensos, mas são incapazes de entender a topografia subaquática, e então nada mais lhes resta senão aparecerem e desaparecerem do texto como se fossem barcos à deriva no torvelinho.

O livro apresenta algumas referências às ditaduras militares, às lutas ecológicas, ao feminismo. Mas, nada se expressa de forma explícita ou panfletária, a fabulação prevalece e a narrativa procura manter uma distância segura de todos esses temas, embora não faça omissão de cada um deles. Exceto no momento mais simbólico. Entre 1976 e 1983, muitos argentinos foram sequestrados pela polícia e o exercito. Depois de muitas sessões de torturas, foram jogados em mar aberto. Calcula-se que cerca de 4.000 pessoas foram vitimas desse método de execução. Os corpos se dissolveram na água e, portanto, nunca foram encontrados.

Juana, que trabalha com internet, navega em outro tipo de águas. No entanto, estar atrás do computador não amplia a sua imunidade aos predadores. A diferença está nos perigos e no medo que precisa contornar. A vida é uma espécie de tsunami – não há diferença se é real, imaginário ou virtual, porque a destruição é incontrolável. Nesse sentido, como afirma o pai das irmãs, Não leve a vida muito a sério; você não vai sair vivo dela.   

 

Foto: Alejandra Lopez

Claudia Aboef (Buenos Aires, Argentina, 1960), mora em Tigre, na Província de Buenos Aires, e publicou Medio Grado de la Libertad (2003), Pichonas (2014), El Rey del Agua (2016), El Ojo y la Flor (2019). Escreve artigos sobre a literatura argentina em diversas revistas. Também se interessa pela astrologia.


segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

A CIDADE E OS SEUS ESPAÇOS VAZIOS




A decomposição arquitetônica da cidade ocorre todos os dias. Pontos de referência somem. Árvores continuam sendo cortadas. Ruas e avenidas surgem e desaparecem com rapidez. Todos os dias, demolição. 

O novo sempre vence. A nossa herança são os escombros – que raramente são recicláveis. Através dos espaços vazios que são abertos no cenário urbano, o progresso (insaciável) avança – sem compromissos com o passado, sem interesse no inventário das perdas. 

O mercadinho de bairro, onde comprávamos “de caderneta”, agora é um prédio de vários andares. As livrarias deixaram de existir e, em seu lugar, inauguraram lojas que vendem mercadorias que ninguém quer adquirir. Os cinemas foram substituídos por templos religiosos. As farmácias se multiplicaram. As bancas de revistas oferecem milhares de produtos, exceto revistas e jornais. Os supermercados ignoram as fronteiras nacionais e anunciam produtos de todas as partes do mundo. O mundo “gourmet” invadiu a vida de todos.

Esses empreendimentos, seguindo a ordem geral das coisas, possuem vida efêmera – existem no intervalo temporal entre duas crises econômicas. Nada é permanente – exceto a memória, esse lapso melancólico de quem se apega ao passado e, teimosamente, recusa se adaptar ao presente.  

A selvageria se tornou norma, ou melhor, normal. Seguindo a cartilha dos novos bárbaros, não existe interesse nas histórias que deixaram de serem contadas, nas pessoas que são expulsas diariamente dos locais onde depositaram as raízes familiares, no patrimônio cultural que vai sendo soterrado lentamente, nos deuses domésticos que foram abandonados. Tudo é mutável, porque o escambo silencioso tomou conta da paisagem e a transformou em mercadoria.

Os espaços vazios de afeto dominam a existência urbana. Os sentimentos não possuem valor comercial, não possibilitam lucro ou acumulação. O mesmo se pode dizer das praças, desses locais onde as pessoas param para descansar ou apenas respirar o ar da cidade onde moram. As praças são lugares onde o choque e a resistência se encontram, separando a inocência e a brutalidade de um mundo em transformação.

Os profetas do apocalipse detestam as praças e afirmam que a imobilidade está na contramão do empreendimento. Discursam no púlpito mercantil que o canto das sereias deve ser entendido como um mantra religioso – as divindades monetárias acima de todas as coisas. Por isso, multiplicam as vias expressas, os carros velozes e furiosos, e elegem a rapidez como sinônimo de trabalho. Em nenhum momento conseguem perceber que esse tipo de ação está envolto na tristeza.  

Não há o mínimo sentido em acreditar que a tristeza é o preço que devemos pagar pelo amor. A cidade precisa de alegria, de luz, de parques, de esperanças, de políticas sociais, de moradias para todos. A cidade precisa de pessoas que gostem dela e que estejam distantes dos vendilhões do templo. Ninguém pode impedir as mudanças, mas o futuro não precisa estar ligado aos que fazem da ambição uma profissão de fé.

Viver em sociedade difere de estar preocupado com o preenchimento dos espaços. É algo diferente. É se sentir acolhido pela beleza, ampliar o horizonte, impedir o isolamento. É desconfiar das certezas e acreditar no humano. É ver o mundo com os olhos da poesia.       




terça-feira, 28 de novembro de 2023

O ESCRIVÃO COIMBRA E OUTROS CONTOS

 


Passei os últimos quinze dias na companhia do Machado. Sim, o Joaquim Maria, conhecido na província por muito ter publicado nas gazetas do século XIX. Parece que tinha coceira nos dedos e nas ideias, visto que tentou de tudo um pouco: crônicas, contos, romances, poesia e, para o bem e para o mal, teatro. Não foi mau escritor, definitivamente não foi, mas faltava-lhe um bom agente literário e tradutores competentes. Sem isso nenhuma carreira literária prospera em um mundo onde a propaganda substituiu o talento.

Os 17 contos selecionados pelo Luiz Ruffato para O Escrivão Caminha e Outros Contos (São Paulo: Carambaia, 2021) não devem ser lidos como se fossem os melhores textos de Machado, são apenas aqueles que o organizador do livro considerou como seus preferidos. De minha parte, incluiria no volume Cantiga de Esposais, A Igreja do Diabo e As Academias do Sião. Mas essa objeção não tem a mínima relevância, tampouco reduz a importância da seleção e do Mestre. A responsabilidade daquele que vai ao pomar é a de tentar trazer as melhores frutas. Nunca está preocupado se algum sabor desagrada.

O famoso humour de Machado aparece em alguns dos contos. O cinismo, também. A última frase de Pai contra mãe mostra uma faceta que poucos ensaístas consideram como importante. Ao admitir que Nem todas as crianças vingam, o narrador (que exerce uma profissão pouco recomendável) referenda a eugenia (e, em paralelo, a escravidão). Alguém há de defender o sujeito alegando o zeitgest e outras patacoadas similares. A vida é seletiva, como comprova o conto.

O moralismo punitivo de O Caso da Vara assusta. A metáfora discriminatória usada em Singular Ocorrência não passaria batida atualmente (Não era costureira, nem proprietária, nem mestra de meninas; vá excluindo as profissões e lá chegará). A tragédia burguesa, que encontra na traição conjugal o seu ápice, mostra o maior de seus lugares comuns em A Cartomante. A ingenuidade infanto-juvenil contrasta com o espelho da vida adulta em Umas Férias.

Significativamente, A Teoria do Medalhão não envelheceu. Os charlatães continuam sem originalidade, recitando frases feitas, tentando impor soluções fáceis para problemas complexos e, sobretudo, procurando levar vantagem em tudo. Assim como o pai de Janjão, são muitos os professores da mediocridade.       

A frase mais mentirosa da literatura brasileira (Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta) ainda causa desconforto no leitor. Que, aos dezessete anos, o narrador não tenha percebido as entrelinhas do evento, qualquer um compreende; mas que essa ingenuidade perdure vários anos depois, quando ele coloca no papel os acontecimentos... acredite quem quiser. São vários os trechos problemáticos de Missa do galo: a conversa sussurrada, a visão dos braços de Conceição, ou Deu a volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era cumprido e cobriu-as logo. Recordo que eram pretas. Essa citação é suficiente para escrever uma tese de doutorado (na área da psicanálise). No final do conto, ao saber que Conceição, depois que ficou viúva, casou com o escrivão juramentado do marido, o narrador parece propor o patético como desfecho; todavia pode ser que isso seja apenas a negação por não ter conseguido alcançar o que perdeu.    

Dito isto e o que deixou de ser dito, ficou belíssima a edição do livro: capa dura, projeto gráfico de primeira linha, papel de qualidade. Fantástica homenagem ao gênio do Joaquim Maria.


Joaquim Maria Machado de Assis (1839 - 1908)


terça-feira, 21 de novembro de 2023

DEIXAR PARA AMANHÃ O QUE NÃO QUERO FAZER HOJE

 


Na última mudança de domicílio, quatro anos atrás, encaixotei uma série de livros, cópias xerox, artigos de jornal, cartas, documentos e outras bugigangas. A ideia era, na primeira oportunidade, fazer uma faxina e jogar fora tudo o que tinha deixado de ter utilidade. O tempo escorreu pelo vão dos dedos e a promessa perdeu o sentido e a direção. Quer dizer, esqueci. Ou melhor, fingi que esqueci. Adoro postergar. E a verdade (que nunca é agradável) precisa ser dita: não nasci para ser formiga ou abelha. Gosto de viver sem as amarras funcionais. Adoro o improviso. Em outras palavras, detesto as rotinas – exceto, óbvio, aquelas que construo para meu usufruto. 

Recentemente, comprei várias pastas arquivo. A ideia é tentar organizar alguns textos que publiquei em jornais e revistas, além dos recibos dos boletos que – contra a vontade – precisei pagar. Dizem que a gente deve guardar esse tipo de documentos por, no mínimo, cinco anos. Por mais cuidadoso que for o sujeito, sempre aparece (como um passe de mágica!) alguma fatura que foi esquecida. No mês passado quase fui atropelado pelo condomínio. Consegui resolver o problema nos últimos dez minutos da prorrogação do segundo tempo. Então foi aquele corre-corre para fazer um gol salvador, digo, um pix. Se essa medida emergencial não funcionasse, talvez tivesse que tentar sobreviver à disputa de pênaltis (ou a uma multa por falta de pagamento).

Enquanto o mundo ao redor se estrutura com as coisas certas nos lugares certos, sou assombrado pelo espírito de Macunaíma. Meu mantra favorito, Ai! que preguiça!, costuma me empurrar na direção do sofá, onde posso ler um pouco, ouvir jazz, sonhar com projetos que jamais se concretizarão, dormir. Deve ser algum tipo budismo (inexistente) orientando para o sossego, para construir a serenidade no meio do vendaval.

Comecei a limpeza das caixas lentamente. Muito lentamente. Trabalho uma tarde e folgo quatro ou cinco. Não estou com pressa. Com um mínimo de boa vontade, poderia terminar antes do ano novo. Poderia. No entanto, para não atropelar os desígnios do universo, estabeleci como meta o meu aniversário (em fevereiro). Provavelmente esse prazo será estendido por mais uns dois meses (chuvas, calor, viagens, indisposição, alguma outra desculpa não catalogada e que surgirá em caso de emergência).

Tenho o cansaço antecipado do que não acharei, escreveu Álvaro de Campos, lembrando que o esforço pela produção exaustiva se opõe à simplicidade. Nesse tipo de comportamento obsessivo não existe encantamento, graça ou charme. A tranquilidade desaparece, o medo prevalece. Gosto de pensar que estou em lado oposto e que desfruto da ligação amorosa que existe entre o lazer e o prazer (essa que encontramos em uma boa refeição, cerveja gelada ou ao perceber que as nuvens formam desenhos divertidos).

Só a poesia salva. Ou ameniza o espetáculo contínuo da desumanização. A vida precisa ambicionar algo mais do que ganhar dinheiro ou se realizar profissionalmente (essa ilusão induzida pelos donos dos meios de produção). As pequenas glórias passam rapidamente – o que permanece está em outra esfera. O bom mesmo é sentar na praça – sem um pingo de culpa – e ficar vendo a banda passar.   




sexta-feira, 17 de novembro de 2023

A CÓLERA DE AQUILES

 


Hybris é um conceito grego que significa, entre outras coisas, tudo aquilo que passa do limite. Literariamente, está associado com as ações de Aquiles durante o cerco de Ílion (Tróia) pelo exército grego. Quem conta essa história é Homero no poema Ilíada.

No décimo ano da guerra de Tróia, o destempero de Aquiles se aproxima do absurdo. Primeiro, ele se desentende com Agamêmnon e, num aceso de fúria, resolve entrar em greve. Ou seja, recusa continuar participando da luta. Somente vai mudar de postura com a morte de Pátroclo. Heitor, o herdeiro do trono troiano, arremessa uma lança contra o corpo do adversário, que tinha sido ferido por Euforbo. Sem procurar entender que o primo violou as regras de segurança ao roubar a sua armadura e substituí-lo no campo de batalha, Aquiles exige vingança a todo custo. Apesar de ser avisado por Tétis (sua mãe) de que se insistisse na fúria, morreria algum tempo depois, Aquiles enfrenta Heitor em um combate épico.

Depois de matar o troiano, e mostrando falta de compaixão, Aquiles recusa devolver o corpo do adversário e o arrasta pelo chão durante nove dias. Esse é um dos momentos fulcrais da narrativa. Ao não permitir as homenagens mortuárias para Heitor, e a trégua que isso acarretaria, Aquiles rompe com as normas sociais e, tomado pelo ódio, vilipendia a honra grega – que nunca mais poderá ser reparada. Essa brutalidade produz, nos homens e nos deuses, desprezo ao soldado quase invencível.

Foi necessário que Príamo, rei de Tróia, arriscando a própria vida, vá até o acampamento grego implorar pelos restos mortais do filho. A morte está associada com alguns rituais culturais e ele deseja que o corpo de Heitor tenha o funeral digno de um guerreiro. Também quer obter algum tipo de conforto para aqueles que precisarão continuar vivendo – o que não será possível enquanto o cadáver não for devidamente velado e pranteado pelos pais, irmãos, esposa, filhos, todos os troianos.

Matar Heitor não trouxe Pátroclo de volta e sequer permitiu alívio para as dores da perda de Aquiles. Ao contrário, aumentou os tormentos do grego. Aquiles sempre se sentiu desconfortável em um mundo onde era obrigado a ser agressivo a todo instante. Foi essa percepção que o imunizou de sentimentos que poderiam torná-lo humano – e, consequentemente, um fraco. Foi esse entendimento que motivou a barbárie insana.

Conforme estava previsto, logo depois que os gregos conseguem entrar em Tróia (usando um ardil elaborado por Odisseu), Aquiles foi morto por Páris (um dos irmãos de Heitor). A flecha certeira que atinge o calcanhar do grego é guiada por Apolo (deus do Sol) – um dos muitos inimigos de Aquiles.

Nas guerras, a loucura se impõe. Alimentada pela amargura, a civilidade é profanada a todo instante e perde o formato de regra comportamental. Deixam de existir as fronteiras entre o bem e o mal. Tudo passa a ser permitido. É como se a selvageria fosse o impulso necessário para humilhar o inimigo – e negar que o vencedor e o vencido são complementares (a morte de um é a morte do outro).

Na modernidade, a cólera de Aquiles costuma ser reencenada diariamente. 





segunda-feira, 13 de novembro de 2023

QUANDO OS LIVROS CAUSAM INCÔMODOS

 


Costuma-se dizer que as más ações ocorrem porque alguém está procurando por boas ações. Não é a regra geral, mas a incidência desses desastres ocupa posições elevadas nas estatísticas. No entanto, o mais comum é que algumas catástrofes ocorram por maldade – pura e simples. Possivelmente foi isso o que aconteceu quando um segmento da Secretaria de Educação do governo de Santa Catarina, no dia 07 de novembro, decidiu que alguns livros devem ser recolhidos das bibliotecas escolares estaduais. Ou seja, ficarão fora do alcance de parte dos alunos catarinenses.

Não cabe discutir se os livros censurados (e este é um caso explícito de censura) são apropriados (ou não) para os alunos. Esse é o aspecto secundário da contradição principal – a liberdade de escolha. Ao leitor cabe a responsabilidade pelo que ele escolhe ler. Não é tarefa estatal interferir nesse tipo de atividade. Além disso, contraria uma das tarefas mais importantes da área educacional: garantir que a leitura seja possível – e em todos os níveis.  

Criar um novo Index Librorum Prohibitorum nada mais é do que uma forma de gerar novos leitores. Provavelmente esses livros estavam fora do radar de centenas de alunos e adultos. A curiosidade move montanhas, excita e estimula na descoberta de desejos e prazeres. Diante do buraco da fechadura, todos querem espiar (mesmo que seja para encontrar a decepção).

Sintomaticamente, os livros que estão sendo retirados das bibliotecas escolares tratam de temas que oscilam entre a religião, a política, bullying escolar, os relacionamentos afetivos e a violência juvenil. Quem se sente ameaçado por esses assuntos? Quem quer impedir a discussão das questões abordadas nesses textos? Como ensina o clássico Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, os livros são perigosos e os governos autoritários procuram combatê-los. Violentamente. Seja retirando-os do alcance do leitor, seja destruindo-os. Exemplos históricos não faltam.

Um fato importante na situação está na visível desatualização do ato de censura. A leitura do livro físico possibilita melhor compreensão do enredo narrativo, mas (quando tentam impedir essa possibilidade) sempre se pode optar por alguma alternativa. Além do acesso aos e-books, existem as versões cinematográficas e televisivas. Sem entrar na discussão estética sobre as formas artísticas, cabe lembrar os três exemplos mais relevantes na lista censurada: Laranja Mecânica (Dir. Stanley Kubrick) foi filmado em 1971, Coração Satânico (Dir. Alan Parker) em 1987 e It – a coisa (Dir. Andy Muschetti) em 2017. Complementando, a Netfix está exibindo uma série baseada em Os Treze Porquês. Qualquer um que consiga acesso aos canais de streaming pode ver essas adaptações. E isso significa, de maneira simplificada, o quanto é inócuo o esforço de quem quer impedir o fluxo de informações. A modernidade tecnológica rompeu (para o bem e para o mal) com todas as barreiras moralistas.

Mário Quintana escreveu que Livros não mudam o mundo. Quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas. De certa forma isso ecoa a frase de Oscar Wilde: Os livros não se dividem entre morais e imorais: são bem escritos ou mal escritos, e isso é tudo. Então, para que possamos contribuir para um mundo melhor (sem abdicar do senso crítico) precisamos de mais leitores e de muitos livros. Quanto mais, melhor!


quarta-feira, 8 de novembro de 2023

O CARRINHO, um conto de Mariana Enriquez

 


Existe alguma forma de punir o mal? Mais do que um postulado filosófico, momento ideal para questionar conceitos e interpretações, essa pergunta encontra na literatura algumas respostas incômodas. Um exemplo é o conto O Carrinho, de Mariana Enriquez, que descreve um incidente estranho em uma área urbana – possivelmente na Argentina.

Um morador de rua, completamente bêbado, não consegue se controlar e defeca na calçada de um bairro pobre. Um dos moradores da região, igualmente alcoolizado, considera que houve desrespeito e vai tomar satisfação. Algumas pessoas ficam observando, rindo ou até incentivando a violência. Diante de um possível linchamento, a mãe da narradora intervém e consegue impedir um dano maior. O homem vai embora, mas é impedido de levar o carrinho de supermercado, onde armazenava papelão, latas, garrafas e outros itens recicláveis.

Mas antes de sair correndo em zigue-zague, fugindo de Juancho que o perseguia aos berros, olhou para mamãe com toda a lucidez e assentiu. Duas vezes. Disse mais alguma coisa, virando os olhos, abrangendo todo o quarteirão e além. Depois desapareceu na esquina.

O carrinho ficou esquecido em frente de uma casa abandonada. A chuva e o tempo fizeram com que o papelão desmanchasse, a comida que estava lá apodrecesse. Um cheiro ruim se instalou na região.

Em algum momento, uns quinze dias depois que o morador de rua foi espancado, começaram a ocorrer uma série de desgraças no bairro: assaltos, pessoas perderam os empregos ou morreram, carros foram roubados, as geladeiras do açougue queimaram, o mundo reconhecido como estável começa a desmoronar, Em dois meses, ninguém tinha telefone no bairro por falta de pagamento. Em três meses, tiveram que puxar energia direto do poste porque não podiam pagar a luz.

Poucos associaram uma coisa com outra. Exceto Juancho que, seja por paranoia ou porque precisava encontrar um culpado, colocou fogo no carrinho, alegando que o morador de rua era o responsável por tudo o que estava acontecendo.

O fato mais paradoxal dessa situação foi a imunidade da família da narradora. Na casa deles não faltava luz, telefone, internet, comida. Era como se estivessem vivendo em algum lugar distante da tragédia.

Mais do que uma metáfora sombria (próxima do terror) do que pode acontecer com aqueles que não reconhecem o outro como um irmão (aquele que não pode ou não conseguiu escolher um caminho melhor), o conto procura mostrar que existem forças no universo que não estão ao alcance da razão. Como consequência auxiliar, a narrativa adverte que, durante a catástrofe, os inocentes nunca estão a salvo. Não importa qual tenha sido a escolha no momento crítico, todos são arrastados pela avalanche. 

Naquela mesma noite, papai nos reuniu na sala de jantar para conversar. Disse que tínhamos que ir embora. Que iam perceber que estávamos imunes. Que Mari, a vizinha do lado, estava um pouco desconfiada, porque era difícil esconder o cheiro de comida, apesar de termos o cuidado de vedar a porta para que a fumaça ou o aroma não passasse por debaixo. Que a nossa sorte ia acabar, que tudo estava indo por água abaixo. Mamãe concordava.

        


ENRIQUEZ, Mariana. O carrinho, in Os perigos de fumar na cama. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2023. p. 31-39. Tradução de Elisa Menezes.


quarta-feira, 25 de outubro de 2023

CELSO AURÉLIO

 


A notícia do falecimento de Celso Aurélio Arruda Branco, no dia 24 de novembro, encerra parte da história do jornalismo esportivo do Planalto Catarinense. Ele era presença obrigatória em quase todos os eventos do esporte amador regional e nunca perdeu a oportunidade de incentivar as mais diversas modalidades esportivas (e os atletas que se destacavam) nos veículos de comunicação em que trabalhou. Ciente de que esse trabalho de “formiguinha” nem sempre oferece resultados satisfatórios, e que a caminhada está repleta de obstáculos, nunca desistiu. Cada dificuldade era um incentivo para continuar.

Como o viver está composto por fragmentos (que vivenciamos ou que imaginamos ter acontecido), Celso Aurélio está presente em dois episódios que lembrei ao tomar ciência de que ele desencarnou (os espiritas não aceitam o fenômeno físico-químico de dissolução pura e simples da matéria orgânica – acreditam que existe outro mundo e que a morte é apenas uma passagem entre um estágio e o outro).

Esse dois momentos (que estão interligados) não ajudam a compor um perfil bibliográfico, mas fornecem substância a um desses personagens que compõem o cotidiano urbano (e que raramente são percebidos como significativos para o pulsar da aldeia).

Na segunda metade dos anos 80 e início dos 90 costumávamos frequentar o Bar Marrocos, gerenciado pelo Heitor. A turma usualmente costumava ocupar a mesa quatro, que permitia uma boa visão do calçadão. Esporadicamente, Celso Aurélio se unia a aquele bando de professores, advogados, escritores e artistas plásticos. Com calma, fazia o pedido:

– Seu Heitor, por favor, um guaraná do tipo champanhe.

Enquanto nós, muitas vezes com um tom de voz pouco civilizado, queríamos salvar o mundo das inúmeras ameaças (reais, simbólicas ou imaginárias), Celso Aurélio bebericava o refrigerante da Antarctica com o dedo mindinho erguido, talvez imaginando participar de algum grande evento social.

O tempo escorreu pelo vão dos dedos. O Marrocos deixou de existir. Muitas daquelas pessoas que presenciaram a cena sumiram nas dobras do tempo. Celso Aurélio continuou trabalhando com o esporte, seja escrevendo para o Correio Lageano (depois em O Momento) ou participando de programas de rádio. Em algum momento, alguém comentou que ele estava doente. Ao encontrá-lo, perguntei sobre isso. Ele respondeu que tudo estava sobre controle e que não queria se preocupar com algo sem importância. Mudei rapidamente de assunto.

Cerca de um ano atrás, em um desses momentos de jogar conversa fora, ele me disse algo que não estava no script:

– Não sei como não virei comunista!

Sem saber ao que ele estava se referindo, pedi uma explicação. A resposta veio rápida, como se estivesse sido elaborada de antemão:

– Lembra aquele tempo em que frequentávamos o Marroquinho? Então, vocês ficavam discutindo aquelas coisas estranhas (luta de classe, mais-valia, colonialismo) e eu, silenciosamente, me perguntava se aquilo estava certo. O tempo fez com que a gente tomasse caminhos diferentes e foi isso que me salvou do comunismo.

Rir foi inevitável. A ingenuidade sempre causa espanto. Principalmente depois de o Brasil ter superado uma grande crise institucional. Expliquei que, embora alguns sobreviventes daquele grupo mostrem simpatia por posições políticas de esquerda, todos são capitalistas (uns mais, outros menos). Não sei se ele acreditou nisso, inclusive porque a conversa tomou outro rumo. 

É isso. Celso Aurélio fará falta. Muita.  


terça-feira, 10 de outubro de 2023

SOBRE O PRÊMIO NOBEL DE 2023

 


Os professores da Universidade da Pensilvânia, que trabalham com o RNA mensageiro (mRNA), Katalin Karikó e Drew Weissman ganharam o Prêmio Nobel de Medicina em 2023. A pesquisa coordenada pelos dois cientistas contribuiu para que as empresas farmacêuticas Pfizer e Moderna desenvolvessem uma vacina contra o Covid-19.

No romance especulativo O Fim dos Homens (Verus Editora, 2022), escrito por Christina Sweeney-Baird, acontece algo particularmente interessante e que, de certa forma, antecipa os acontecimentos que envolvem Karikó e Weissman.

No texto, o mundo precisa enfrentar uma epidemia que somente afeta a população masculina. Por se tratar de uma doença em que as mulheres estão imunizadas, cabe-lhes o protagonismo na tentativa de descobrir quem foi o paciente zero (aquele que iniciou a transmissão do vírus) e, consequentemente, como a doença se espalhou. Em paralelo, há o esforço farmacológico para criar um antídoto.

Os fatos narrativos ocorrem em 2025 e são descritos em ritmo de thriller. Além do suspense, o livro apresenta inúmera características: capítulos curtos, narradores múltiplos, notícias jornalísticas, plot twist e personagens de caráter duvidoso. São ingredientes que garante a fluidez da leitura e asseguram o interesse do leitor. Além disso, temas como o feminismo e o cuidado com as questões ecológicas são estrategicamente discutidos em cada uma das páginas do livro.

O paralelo com a realidade se apresenta em uma das cenas finais do romance, quando três dos personagens (Elizabeth “Lisa” Michael, Amaya Sharvani e George Kitchen), que estavam trabalhando para encontrar uma solução para o problema, dividem o Prêmio Nobel de Medicina. Algum leitor ingênuo provavelmente dirá que esta é uma daquelas situações em que a arte antecipa a vida ou que a arte imita a vida. E (quase) ninguém o vai censurar, porque impressiona saber que o mundo está à mercê de doenças e de catástrofes que ninguém possui imaginação para prever – principalmente quando se considera que a modernidade nos garante que “tudo” está sobre controle. Essa arrogância implica em negar a necessidade de medidas preventivas. Ao somente se preocuparem com os avanços tecnológicos, os cientistas (e os capitalistas) esquecem que a natureza também está em transformação – e que nem sempre resulta em benefício humano.

Depois que a epopeia literária termina e o vírus foi debelado, a possibilidade de extinção da humanidade deixou de existir. Mas, todos sabem que – mais cedo ou mais tarde – outra ameaça surgirá. E, quando isso acontecer, todos os seres vivos do planeta estarão em perigo.

Entre os livros que abordam doenças epidêmicas (como A Peste, de Albert Camus, O Enigma de Andrômeda, de Michael Crichton, e Estação Onze, de Emily St. John Mandel), ressalte-se que O Fim dos Homens não obteve significativo destaque no mundo literário. Talvez porque não acrescente muita coisa aos elementos que aborda, exceto a diversão (o que não é pouco).

     


P.S.: Sobre o norueguês Jon Olav Fosse, que ganhou o Nobel de Literatura, nada sei. Nunca li nada do que ele escreveu. Aliás, da literatura da Noruega só conheço (salvo engano) um pouco do teatro escrito pelo Henrik Ibsen, dois romances do Knut Hamsun (Fome e Um Vagabundo Toca em Surdina) e o primeiro volume da hexalogia do Karl Ove Knausgård (A Morte do Pai).


terça-feira, 3 de outubro de 2023

SEMPRE SUSAN


Sei como é quando você admira alguém e então o vê sob uma luz nada lisonjeira. Sei que pode ser muito doloroso. Foi isso o que Susan Sontag (1933-2004) disse para Sigrid Nunez, logo depois que Edward Said (1935-2003) foi embora (ele estava visitando Sontag e tinha sido professor de Sigrid na Universidade de Columbia). A citação, como se fosse um bumerangue que retorna ao local de lançamento, também serve para identificar a autora do comentário.  

Sempre Susan (Editora Instante, 2023), o livro testemunho de Sigrid Nunez, mostra uma imagem pouco lisonjeira da mulher que é considerada uma das mais importantes intelectuais estadunidenses. Sigrid, que trabalhou como assistente de Sontag e depois foi namorada de David Rieff (filho de Sontag), não poupa a escritora (principalmente na parte final do livro). Ignorando a possibilidade de escrever uma hagiografia, Sigrid revela defeitos, mágoas, ressentimentos e o complicado complexo de Édipo/Jocasta que uniu Susan e David – provavelmente, embora não o diga explicitamente, o motivo pelo qual Sigrid e David romperam.

No entanto, há um atenuante. Como se trata de um texto situado cronologicamente em um tempo limitado (um ano e pouco, além de alguns encontros esporádicos), e que foi escrito depois da morte de Sontag, pode estar carregado por rancores que não são exatamente os desejáveis em alguém que esteve tão próxima. De qualquer forma, o relacionamento entre os três personagens (Susan, David, Sigrid) parece estar fechado em uma redoma. Salvo Joseph Brodsky e Maria Inês Fornés (que são citados de forma rápida), as outras pessoas que aparecem na narrativa são “figuras decorativas” – qualquer nome poderia ser substituído por outro sem prejuízo do que esta sendo contado, embora exista um cuidado para que a escrita esteja conectada com a verossimilhança.

Por algum motivo, Sigrid menciona o câncer no seio de Sontag de forma superficial. Mas não esconde que esse episódio foi o impulso para que um dos grandes textos de Sontag, A doença como metáfora (São Paulo: Graal, 1984), fosse escrito. Algum tempo depois, Sigrid precisou ler o manuscrito de Aids e suas metáforas (São Paulo: Companhia das Letras, 1989), porque Susan queria saber a sua opinião naquele instante – e não depois do jantar. Sontag tinha certas necessidades – que não podiam esperar.

Sobre a literatura de Sontag, Sigrid destaca O amante do vulcão (São Paulo: Companhia das Letras, 1993) e o conto Assim vivemos agora (São Paulo: Companhia das Letras, 1995). Mas, no geral considera os ensaios como brilhantes e os romances, difíceis. A isso acrescentou o fracasso das leituras públicas. O público esperava pela leitura de algum ensaio e Susan preferia um conto (que eram longos e pouco atraentes em um evento público), ratificando o pensamento que costumava repetir em particular e em público: ela era uma escritora de ficção que por acaso escrevia ensaios, e não o contrário. No entanto, o seu sucesso está mais relacionado com a produção ensaística do que com a literatura de ficção.

Depois que se separou de David Rieff, Sigrid Nunes se encontrou com Sontag poucas vezes, embora tenha acompanhado sua trajetória à distância. Quão difícil é se afastar das pessoas que amamos: Sentamos juntas por um tempo, fumando e conversando. Quantas horas passávamos assim, fumando e conversando! Para mim era insondável: a pessoa mais ocupada e produtiva que eu conhecia, a qual, de alguma forma, sempre tinha tempo para uma longa conversa.


sexta-feira, 22 de setembro de 2023

A NOITE DAS BRUXAS

 


Em que momento foi possível reunir William Shakespeare e Agatha Christie? Embora isso pareça improvável, a triste resposta está em alguns dos filmes do inglês Kenneth Branagh. Mas não se trata de um episódio isolado. O crime já foi cometido três vezes. E, se o sujeito (que, atualmente, salvo engano, está com 62 anos) tiver vida longa, e ninguém o impedir, provavelmente filmará, no mínimo, outras três versões pavorosas dos livros de uma das principais escritoras para leitores adolescentes.

Assassinato no Expresso do Oriente (Murder on the Orient Express, 2017), Morte no Nilo (Death on the Nile, 2022) e A Noite das Bruxas (Haunting in Venice, 2023) estão inscritos na ficha corrida do Kenneth Branagh. Assisti os três no cinema (porque a conexão com alguns filmes só se estabelece na tela grande). Infelizmente, a decepção se fez presente em todos os momentos. A tentativa grandiloquente de transformar Hercule Poirot em algo que foge da imagem que projetamos do personagem literário lembra o maneirismo teatral – e que, obviamente, é incompatível com a estética cinematográfica. Talvez Kenneth Branagh ainda esteja contaminado pelas versões de clássicos shakespearianos que interpretou e/ou dirigiu: Henry V, Much Ado About Nothing, Looking for Richard, Othello, entre outros. Talvez seja a hora dele se livrar desses fantasmas, abrir as janelas do castelo e deixar o sol entrar.  

A Noite das Bruxas beira o patético porque é, antes de tudo, uma narrativa de mistério. Mistério gótico, mas ainda assim mistério. Infelizmente, Branagh se desviou desse caminho e, usando de alguns truques teatrais, empurrou a narrativa na perigosa direção do terror clássico. Para que isso se concretizasse não economizou no uso de alguns elementos de carpintaria cênica. Por exemplo, os efeitos sonoros (gritos do pássaro, xícaras que caem, telefone que toca em momento complicado). Soma-se a isso o cenário: um pallazzo em Veneza, halloween, uma noite de tempestade, muito vento, o barulho das ondas, a angústia crescente. Assustar o espectador parece ser o propósito – e o filme apenas um pretexto.

A alta voltagem narrativa desvia a atenção da trama de tal forma que, quando é anunciada a solução dos crimes (que ocorre da forma mais rápida possível), ninguém tem tempo para reagir. O brilhantismo do detetive que tudo observa e, por dedução aritmética, vai encaixando o quebra-cabeça desaparece em uma nuvem de tensões que somente estão em cena para confundir o espectador (supondo que ninguém tenha lido o texto original). O único momento razoável surge em uma das últimas cenas, quando Poirot confronta o menino e esclarece o detalhe que serviu de gatilho para as três mortes.

É pouco, muito pouco. Inclusive porque a interpretação de Kenneth Branagh aterroriza. Hercule Poirot parece ser um boneco de pano fazendo pose e dizendo as suas falas de forma compulsiva, como se tudo fosse fruto de uma obrigação. Em sentido oposto, o detetive se transforma em uma marionete – que é manipulada pela escritora Ariadne Oliver (interpretada por Tina Fey).

Em A Noite das Bruxas, além de beirar o artificialismo, tudo parece estar fora do lugar. E o filme deve ter o destino reservado às outras duas adaptações dos livros de Agatha Christie feitas por Branagh: o esquecimento. Shakespeare agradecerá. Quem gosta de cinema e de literatura policial, também. 


terça-feira, 12 de setembro de 2023

VÁ PARA.... AQUELE LUGAR!

 


Nos últimos anos, seja em conversas amenas, seja em discussões ásperas, muitas pessoas me recomendaram ir para aquele lugar. A ideia era me mandar para outro destino. Muito pior. Todo mundo sabe qual. No entanto, a educação inglesa das classes econômicas superiores aconselha o uso de moderação e de eufemismos. Então, adotando uma forma quase suave de estabelecer quem estava de lado de quem, citavam (como se estivessem mastigando o ódio) o nome do país que imaginavam ser uma espécie de inferno terrestre. Um conhecido, no auge da histeria, sugeriu várias vezes pagar a passagem. Somente a ida. Aceitei. Ele não honrou a promessa. Nenhuma novidade.  

No início do mês de agosto, por um desses acasos que a vida nos presenteia, fui para Cuba. E, para desagrado geral, voltei. Cansado. E ciente de que fiz uma excelente viagem, conheci gente interessante, comi como um frade franciscano (de onde tirei isso?), bebi hectolitros de mojito, daiquiri, cerveja e limonada. Trouxe, na bagagem, alguns livros, uma sandália nova e várias histórias. Ah, antes que me esqueça, também comprei uma caixa de charutos. Como não fumo, distribui o tabaco entre amigos e inimigos. Foi uma forma de dizer para todos que, apesar dos pesares, a vida continua sendo um prazer inenarrável (como diria outro conhecido).

O calor de Cuba enlouquece os turistas – em vários sentidos. As pessoas que conhecemos eram todas calorosas, amistosas (mesmo aquelas que queriam vender alguma coisa – e todos pareciam ter vocação para fazer algum tipo de negócio). Para desespero dos que estão “do outro lado”, nos cinco dias que passei pela ilha, ninguém tentou me envelopar em questões políticas. Fiquei com a impressão que passei impune, se é que a ilha está envolta por algum tipo de tentação política indecorosa.  Provavelmente fui imunizado pela vacina contra a febre amarela.

Leitor da alguns escritores cubanos – Nicolás Cristóbal Guillén Batista (1902-1989), Alejo Carpentier y Valmont (1904-1980), José Lezama Lima (1910-1976), Virgílio Piñera Llera (1912-1979), Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), Pedro Juan Gutiérrez (n. 1950), Leonardo Padura Fuentes (n.1955), entre outros – foi nas ruas de Habana Vieja que entendi a alegria que move os habitantes da ilha. Em qualquer bar, ou nas ruas, os ritmos caribenhos se misturam com o jazz e a música brasileira (adoram Djavan!!). Algumas vezes, a necessidade de contornar as altas temperaturas nos atraia para dentro de locais onde grupos musicais, ventiladores e cerveja (quase todas espanholas) constituíam o necessário refresco para quem queria continuar o passeio. E sempre era bom e trazia contentamento e conforto e felicidade.



Antes de viajar, um dos objetivos traçados era visitar La Bodeguita del Medio (Calle Empedrado), o bar/restaurante preferido de Ernest Miller Hemingway (1899-1961), que viveu na ilha por muitos anos. Um de seus livros mais famosos, O velho e o mar, foi escrito na Finca Vigia, propriedade localizada a 15 km de La Habana, e inspirado na história de Santiago, um pescador cubano. La Bodeguita é um lugar peculiar e qualquer tentativa de descrever o ambiente parecerá insuficiente. Lá comi excelente pescado, bebi mojitos (conta a lenda que Hemingway inventou a bebida naquele lugar), olhei as centenas de fotografias de personalidades que estão penduradas nas paredes, devorei “helados”.



Outro lugar de que guardei boas recordações foi o bar/restaurante Dos Hermanos, perto do Mercado San Francisco (Avenida del Puerto). O garçom me contou a história do estabelecimento (que remonta ao fim do século XIX e se chamava originalmente Two Brothers). Também relatou como Hemingway se tornou amigo de Santiago. Lá bebi os melhores mojitos de Cuba – um alívio para o calor, um contentamento para o corpo. 

Depois de La Habana, fomos para Varadero – mas isso é outra história e o que lá aconteceu tentarei contar em outro dia.


terça-feira, 5 de setembro de 2023

AQUILO QUE NOS FAZ PERCEBER QUE AINDA SOMOS HUMANOS

 


Um conhecido declarou que ninguém, nos dias atuais, consegue ler um romance com mais de 400 páginas.

Famoso escritor brasileiro propôs, através de uma crônica, a extinção da crônica (seguindo um comportamento niilista que, em outro momento, havia decretado o fim do romance).

São dois exemplos recentes de que existe um pensamento próximo na negação da leitura. Mas, provavelmente, fazer esse tipo de comentário implica em um erro. Ou em vários. O que predomina não são os baixos níveis de escolaridade (e, consequentemente, de leitura) entre os brasileiros. É a falta de paciência para estruturar a reflexão crítica (que demanda tempo e silêncio – artigos escassos em um mundo que se move mais rápido do que o necessário).   

De qualquer forma, algumas perguntas precisam ser formuladas. Livros como A procura do tempo perdido (Marcel Proust), A montanha mágica (Thomas Mann) e Os irmãos Karamazov (Fiódor Dostoiévski), para citar três clássicos, estão destinados a se transformar em peças de museu? Ou melhor, ficarão emparedados eternamente nas estantes das bibliotecas públicas e somente serão lidos por malucos ou por estudiosos da pré-história literária? Quem os substituirá? Memes e vídeos das redes sociais? Independente da resposta (ou da rota de fuga que implica em dizer que as imagens também são formas de leitura), a proposição catastrófica de Fahrenheit 451 (Ray Bradbury), que antecipava a extinção da literatura, parece estar adquirindo substância. Os sistemas políticos autocráticos detestam qualquer atitude que se afaste da submissão ou que proclame a liberdade de pensamento.   

Entre o alfa e o ômega, a realidade contemporânea foi recheada pela distopia. Pelas mãos dos fariseus surgem os tais biscoitos finos – indicados por dez entre dez filósofos e profetas em podcasts antenadíssimos com o que há de mais atual na tecno(bio)logia. Brave new world.

Não adiante dizer: salve-se quem puder. O espaço subitamente vazio será ocupado com algo que está longe de ser a estampa elegante que Gutenberg imprimiu no século XV.

A possibilidade das bibliotecas serem devoradas pelo fogo deixou de ser uma ameaça. As cenas retratada nos romances O nome da rosa (Umberto Eco) e Auto-de-fé (Elias Canetti) não estão restritas ao imaginário. Em agosto de 1992, os soldados sérvios bombardearam a Biblioteca Nacional e Universitária da Bósnia, causando um prejuízo cultural similar ao incêndio da Biblioteca de Alexandria, em 48 a. C.

É o horror, o horror – diria Kurtz ao ver o alcance da maldade humana, ao perceber que o Aleph mimetiza o labirinto que conduz diretamente ao Minotauro. Nem todo leitor consegue se disfarçar de Teseu – ou receber um barbante de Ariadne.

Se a leitura implica em conhecer outros mundos, em viajar através da imaginação, provavelmente será nos livros que se encontram as respostas para as perguntas que ninguém quer formular. Isso trará a felicidade?, manifesta-se o incrédulo. Não. Os livros não são panaceias ou passes de mágica ou soluções para os problemas do mundo. O que se procura (e talvez possa ser encontrado) na leitura é outra coisa (que possivelmente não tem nome), mas que nos faz perceber que ainda somos humanos.