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terça-feira, 27 de setembro de 2022

DEMOCRACIA

 

Ruínas da Ágora ateniense

Contam os historiadores que a democracia nasceu na Grécia antiga. Os cidadãos se reuniam na Ágora (praça principal) para decidir os destinos de Atenas. Depois de alguma discussão, aclamavam os novos líderes da Cidade-Estado, estabeleciam as bases do governo e, de certa forma, os ânimos políticos se acalmavam.

A palavra democracia deriva do grego antigo δημοκρατία (dēmokratía ou governo do povo) e, de certa forma, formalizava oposição à ἀριστοκρατία (aristokratia ou regime aristocrata). Ao convocar a participação popular, os atenienses ambicionavam construir um sistema político capaz de contemplar os diversos interesses da população. Infelizmente, a teoria não se confirma com a prática. Somente os homens livres, de pai e mãe ateniense, maiores de 18 anos e nascidos na Pólis (cidade) eram considerados cidadãos – e, portanto, tinham direito ao voto. As mulheres, escravos e estrangeiros (metecos) estavam impedidos de participar politicamente. A democracia ateniense era excludente na medida em que somente um décimo da população tinha posição ativa no do mundo político.

Nas democracias modernas, a participação direta se tornou impraticável. Contribuíram para essa transição política o crescimento exponencial da população mundial e a multiplicação de demandas sociais. O sistema representativo surgiu como uma medida necessária para dar prosseguimento ao sistema democrático. O poder político passou a ser exercido indiretamente, ou seja, por meio de representantes. Ao votar em um candidato, o eleitor transfere a defesa de seus valores (políticos, sociais, econômicos) para aqueles que serão eleitos. Embora isso represente o perigo de ocorrer um desvio de interesses (existem infinitos abismos entre o momento da eleição e o exercício parlamentar), essa ideia serve de alicerce para que a democracia continue a ser defendida como o sistema mais adequado para a prática política contemporânea.

Segundo a lenda, Winston Churchill teria dito, em 1947, na Câmara dos Comuns, que a democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as outras que têm sido experimentadas ao longo da história. É difícil contestar esse axioma.

Uma das questões mais emblemáticas da democracia está no conceito de maioria absoluta – que é uma forma de oprimir democraticamente as minorias. Pelo uso da força, questões que poderiam contribuir para o bem-estar geral são descartadas porque não despertam o interesse da maioria (ou do governo). Essa situação estabelece uma crise no sistema representativo e coloca em xeque a experiência democrática e o poder do voto. Ao mesmo tempo, aponta para a necessidade de mudanças estruturais significativas, como a efetiva atuação popular na concepção das políticas públicas.

Em alguns casos, o tempo serve para corrigir essas distorções. Mas, enquanto isso não acontece, a melhor maneira de propor um mundo melhor está no exercício eleitoral. A grande qualidade do sistema democrático reside na possibilidade de produzir alternância de poder. Isso não significa que haverá melhorias significativas a curto ou médio prazo, mas é um indício de que a mudança pode ser construída. A democracia ainda possui fôlego para atravessar as tempestades políticas sem gerar grandes feridas – desde que o eleitor compareça nos distritos eleitorais e mostre que quer contribuir para a estabilidade democrática.    

No Brasil, tanto no Império quanto na República, tivemos diversas experiências políticas em que a democracia quase foi sufocada. Governos autoritários, votos de cabresto e equívocos em momentos importantes estão espalhados pela história do país. Felizmente, esses desacertos foram superados ou atenuados. E assim, entre tropeções e explosões de liberdade, a democracia brasileira está tentando sobreviver.  

 

 

sábado, 24 de setembro de 2022

AS ILUSÕES PERDIDAS (texto modificado)

 


Era verão. Estava na sacada, tomando sorvete, quando viu a mulher descer do carro. Ficou atônito. Não, isso é muito pouco. Ficou boquiaberto. Ou melhor, entrou naquele estado de encantamento que os estadunidenses chamam de fall in love. Em toda a sua vida, nunca tinha sonhado sonho tão bonito. Era uma madonna pré-rafaelita, dessas que a gente só consegue encontrar em livros de arte, uma dádiva divina, uma explosão queimando retinas.


Ele chegou a pensar em miragem, o calor causa fantasias. Aquilo não podia estar acontecendo. Fechou os olhos. Pouco adiantou. Quando a luz voltou a iluminar o espaço, a beleza ainda estava lá – atravessando a rua e entrando no prédio ao lado.


Algum tempo depois, chegou o caminhão de mudanças. Ela, vez ou outra, aparecia na janela, pedindo aos funcionários da transportadora, que tomassem cuidado com os móveis. A cômoda foi presente de minha avó, está na família há mais de cinquenta anos. Embriagado por imagens da felicidade, ele pensou em ir até lá, dar boas-vindas, oferecer seus préstimos, mostrar o bairro, sei lá, vizinho é para essas coisas, você não está precisando de uma xícara de açúcar?, qualquer bobagem que permitisse uma aproximação rápida e eficiente. Não fez nada disso.


Tímido, sim; bobalhão, jamais. No melhor estilo lobo em pele de cordeiro, esperou. Não foi difícil encontrá-la na rua, em um final de tarde. Cheio de ansiedade, com a voz trêmula, contornou os obstáculos e se apresentou. Falou que morava no prédio ao lado, que era estudante, e que não estava acostumado com temperaturas tão elevadas como a daquele dia, quem sabe ela não aceitaria tomar um chope no botequim da esquina? Contra todos os prognósticos matemáticos para este tipo de cantada, ela aceitou. Tomaram (cada um) uns cinco ou seis. Ao voltarem para casa, na entrada do edifício em que ela morava, ele perguntou se poderia vê-la outra vez. Ela sorriu, e sem dizer uma palavra, abriu a porta e entrou. Ele passou a mão nos cabelos e atravessou a rua, assoviando.


No dia seguinte chegou mais cedo em casa. Na sacada, ficou esperando – por umas cinco horas. Depois, foi dormir. Teve pesadelos. Sonhou que ela estava namorando outro. Viu os dois se beijando. Em pânico, acordou. O olhar fixo no relógio: quatro horas da manhã. A sede e a ansiedade o fizeram sair da cama. Da cozinha, foi até a sacada. Olhou para as estrelas e para o prédio ao lado. Todas as luzes apagadas. Voltou para a cama, mas não conseguiu dormir. Alguma coisa havia se rompido dentro do peito.


Pela manhã, na faculdade, sem conseguir se concentrar nas aulas, tudo lhe parecia desperdício e dor. O mundo não tinha mais sentido. Pensou em beber um caminhão de vodka – uma forma tão idiota como outra qualquer de afogar as mágoas. Desistiu. Não precisava desse tipo de fuga. Ou talvez não fosse caso para tanto. Uma garrafa de vinho bastaria.


Durante a semana fez o que lhe foi possível para evitar um novo encontro. Às vezes, no meio da noite, espiava pela janela procurando por algo que nem mesmo ele sabia o que era. Esporadicamente via uma silhueta, por trás da cortina, em um jogo de luzes e sombras que só servia para aumentar ainda mais a angústia. Pensou – muitas vezes – em ir até lá para conversar, colocar as cartas na mesa. Não conseguiu romper o bloqueio e concretizar a intenção. Tinha medo de perder o que nunca lhe pertencera.


Algum tempo depois, envolto na lucidez, mudou-se para bem longe dali, para bem longe da paixão.


terça-feira, 13 de setembro de 2022

O QUE SE FOI

 


As cidades estão em transformação. Isso não é ruim (há controvérsias). Ao contrário, mostra que o desenvolvimento (seja lá o que isso for) urbano não estacionou no tempo. Todos os dias abrem e fecham casas comerciais, edifícios substituem as casas antigas, livrarias desaparecem, cinemas se transformam em templos religiosos, as classes média e rica se escondem nos shoppings, os pontos de referência mudam, as surpresas se tornam constantes. A paisagem urbana – organismo vivo – está em constante mutação.

No entanto, as pessoas mais velhas, perdão, aqueles que possuem mais experiência social, encontram dificuldades em aceitar a avalanche de novidades. Esforçam-se para negar a realidade e se ocupam em glorificar o tempo que passou. Não entendem a simplicidade enganosa que acompanha o passado. O discurso de que o mundo era menos perigoso ou menos complicado elabora uma sociedade ideal, constituída pelo bem-estar coletivo e pela felicidade. Algo que não pode ser comprovado, porque baseado em memórias afetivas e não em fatos. 

Tornou-se comum ouvir algumas conversas no tempo pretérito, algo similar ao no tempo da Varig e das Casas Buri tudo era diferente.  Não era, mas (na imaginação) parecia diferente. A nostalgia e a saudade fornecem luz para as recordações que estavam soterradas na escuridão. O passado ressuscita – mas sem materialidade, sem substância, sem estar presente no presente.  

Esse escudo contra o deslocamento nega o estranhamento (momento em que as certezas são abaladas) e resulta na alienação e, ao mesmo tempo, no conforto (porque não precisa estar atento aos problemas que acompanham a realidade).

Não adiante tentar explicar que não é possível comparar dois momentos históricos, pois cada um deles possui características muito particulares e que qualquer confronto equivale ao multiplicar dos equívocos. Tentar entender como ocorreram essas mudanças (e de que forma é possível se adaptar às transformações) talvez represente a procura pela lucidez. Mas, evidentemente, esse processo causa angústia – elevando o consumo de ansiolíticos.

A vida é a mesma de outrora, mas a festa possui outro andamento. É preciso se adaptar aos acontecimentos. Não dá para querer continuar dançando valsa enquanto o funk proibidão está assustando os vizinhos. Isso é só um exemplo. Com o passar do tempo muitas coisas vão adquirindo novos formatos, cores, perfumes.  

O que hoje se mostra como novidade, amanhã perderá o caráter de inovação. E será substituído por outra coisa – mas que talvez não seja muito distinta do que existe ou existiu (tudo mudar para que nada mude, ensina um romance clássico). A existência humana seguirá nesse ritmo, sempre tentando alcançar o horizonte – que se distancia na mesma velocidade.      

As cidades são outras, embora sejam as mesmas.        

 

sábado, 10 de setembro de 2022

LUTA DE CLASSES (texto modificado)

 



Futebol era o jogo, mas se alguém pensasse em guerra seria a mesma coisa.

De um lado, meninos de excelentes famílias, vestindo calções e camisetas de boa qualidade; do outro lado, um bando que parecia desconhecer água e sabão, além de estarem usando um jogo de camisas que, francamente, já havia conhecido melhores dias. A idade média dos jogadores era de 11 anos e a partida estava valendo por uma rodada do campeonato citadino infantil.

Nas arquibancadas, torcidas desorganizadas. No grupo que apoiava o time dos meninos bonitinhos, alguns pais roíam unhas, faziam gestos desesperados e, para não parecerem que estavam próximos da loucura, falavam mal da mãe do juiz. Pela outra equipe, uns cinquenta (ou mais) garotos que pareciam ameaçadores – seria injusto deixar de registrar aqui que alguns pais dos meninos de bons uniformes ficaram apreensivos com os “pivetes”; a gente nunca sabe o que essa piazada de bairro pode fazer, não é mesmo?

Dentro de quadra, empurrões e caneladas. Ao mesmo tempo, o placar mudava com uma velocidade irritante: um a zero, um a um, dois a um. Multiplicavam-se os chutes a gol, erros de passes e meninos caídos em quadra. E, para completar a festa, gol: quatro a um, cinco a um. Fácil, fácil. Nove a um foi o placar final.

Ele estava sentado na arquibancada e ficou alegre com cada um dos gols. Bem feito! Quem mandou esses riquinhos se meterem a jogar conosco?, falou para si mesmo. Ao ver o jogo dos meninos, ele se sentiu transportado para o passado: naquele instante também tinha 11 anos e estava em quadra, jogando, fazendo gols. Foi estudante de escola pública: era através do esporte que superavam as barreiras sociais, econômicas e emocionais. Vencer as equipes dos colégios particulares podia não resolver as carências, mas era o incentivo necessário para continuar resistindo.

Ele estava sentado na arquibancada e torcendo pelo lado errado! Só entendeu que estava contradição total quando viu o filho quase sem fôlego, tomando dribles, se esforçado para que o vexame fosse menor: o menino estava jogando no time que perdeu!

Depois do jogo, abraçado ao filho, pensou em pedir desculpas por, de certa forma, tê-lo abandonado. Não conseguiu – um anjo torto, desses que vivem na sombra parecia lhe dizer que os gols do time adversário simbolizavam uma espécie canhestra de justiça social.

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

O PENSAMENTO DE FRAN LEBOWITZ EM QUARENTA FRASES

 


– Não fique aborrecido se seu vizinho ainda está ouvindo discos a todo volume às duas da manhã. Telefone-lhe as cinco para lhe dizer o quanto gostou da música.

– Por que ser desagradável quando, com um pequeno esforço, você pode ser intolerável?

– Um dos mais solenes deveres de todo senhorio em relação a seu inquilino é, ao que parece, supri-lo com uma razoável quantidade de baratas no apartamento. Segundo estatísticas, a quantidade de baratas por habitante de qualquer grande cidade é de quatro mil. No caso de o seu apartamento estar sendo visitado por menos baratas do que as que você tem direito, a única solução é mudar-se imediatamente.

– O contrário de falar não é ouvir. É esperar.

– Não pergunte as opiniões políticas de seu filho. Ele sabe tão pouco quanto você.

– Um adulto civilizado não bebe suco de maçã no jantar.

– Seja realista. Se as pessoas não estão interessadas no que você tem a dizer, porque estariam interessadas no que a sua camiseta está dizendo?  

– Se você disser umas verdades a uma pessoa pela frente, ele só as ouvirá de você. Mas, se você as disser pelas costas, ela as ouvirá de outras quinze ou vinte pessoas.

– Se as suas posições políticas forem radicalmente diferentes das de seus pais, tenha em mente que, apesar de ser de fato seu direito constitucional expressar suas opiniões de forma verbal, não é apropriado fazê-lo de boca cheia – em especial se ela estiver cheia de costelinha que foi assada pelo opressor.

– Adoro dormir porque é, ao mesmo tempo, prazeroso e seguro. Prazeroso porque você está na melhor companhia possível, e seguro porque dormir é a maior proteção que existe contra a selvageria que é a consequência inevitável de estar acordado. O que você não sabe não pode te ferir. Dormir é morrer sem a parte da responsabilidade.

– Uma conversa educada raramente é uma dessas duas coisas. 

– O principal problema da democracia é a lamentável tendência a fazer com que as pessoas acreditem que todos os homens são iguais, quando basta uma olhada ao redor da sala para ver que não é bem o caso.

– Quando são três da tarde em Nova York, é pontualmente 1938 em Londres.

– Ter sido impopular no ensino médio não é um bom motivo para publicar um livro.

– Um mundo sem comida teria o efeito desastroso de acabar com a iniciativa pessoal do indivíduo. Não existe lugar para a ambição numa sociedade que recusa aos seus membros a oportunidade de se tornar a última bolacha do pacote.

– Habitantes de países subdesenvolvidos e vítimas de desastres naturais são as únicas pessoas no mundo que ficam felizes ao se depararem com grãos de soja.  

– É ótimo jogar cartas com crianças, porque é fácil ganhar delas e é mais fácil enganá-las.

– Só pergunte ao seu filho o que ele gostaria de jantar se ele for pagar a conta.

– Nem todos os filhos de Deus são bonitos. A maioria é, quando muito, apresentável.

– O seu direito de usar um casaco de poliéster verde-chicletes termina quando começam os direitos do meu olho.

– Garotas que transam de primeira são piranhas. As que não fazem isso são direitas. Que maneira antiga de ver as coisas. Se cruzar com uma garota que não vá logo para a cama com você, isso não quer dizer que ela seja careta. É bem provável que seja lésbica.

– Uma das tendências mais notáveis de nosso tempo é a ocupação de edifícios e a hospedagem de reféns. As pessoas que perpetram esses atos são geralmente motivadas por dissabores políticos, injustiças sociais e uma profunda curiosidade para ver se fotografam bem na televisão.

– Quando resolvi que não iria terminar o ginásio, resolvi também que não valia a pena terminar a faculdade.

– No fundo, os franceses são apenas alemães que aprenderam a cozinhar.

– Noticiários de rádio até que são suportáveis. Principalmente porque, enquanto as notícias estão sendo transmitidas, os DJs ficam fora do ar.

– Se as suas fantasias sexuais fossem interessantes para outras pessoas, não seriam mais fantasias.

– A vida pode ser um cabaré – mas não no meu bairro.

– Humildade não é substituto para uma boa personalidade.

– A vida é algo que se faz quando não se consegue dormir.

– O principal defeito das crianças, além de não fumarem muito, é que, quase sempre, estão acompanhadas de adultos. 

– Loteria: acho que, jogando ou não, você tem a mesma chance de ganhar.

– Para mim, o que chamam de “ar livre” é aquilo por onde se tem que passar quando se sai do apartamento para se tomar um táxi.

– Plantas são vegetais que nos roubam o ar que precisamos para respirar.

– Sabe-se que a lua-de-mel acabou quando uma rapidinha antes do jantar passou a significar uma dose de uísque.

– Um cão que acredita ser o melhor amigo de um homem é também obviamente um cão que nunca conheceu um advogado tributarista.

– Minha única restrição aos cigarros é a de que eles já não vêm acesos. 

– Meu animal favorito: bife.

– As crianças não têm muito gosto para se vestir. Os adultos também não, mas nelas isto é mais reparado.

– Uma ideia original é como o pecado original. Ambos aconteceram muito antes de você nascer.

– O sucesso não me estragou: sempre fui insuportável.

 


Frances “Fran” Ann Lebowitz (Morristown, New Jersey, 27 de outubro de 1950), jornalista, escritora e atriz. Foi amiga de Andy Warhol e Robert Mappethorpe, entre outras personalidades da vida cultural estadunidense. Martin Scorsese dirigiu dois projetos baseados na sua literatura e na sua vida: Public Speaking (HBO, 2010) e Faz de conta que NY é uma cidade (Netflix, 2021).   


domingo, 4 de setembro de 2022

MAIS UMA HISTÓRIA BANAL

 


Ele tinha 25 anos e estava apaixonado. Mas não era apenas o amor. Era muito mais. Uma paixão violenta, um turbilhão, uma tempestade. Algo que ultrapassava todas as definições, todos os adjetivos e substantivos. Era o seu ritual de passagem — a vida dividida entre o antes e o depois.

É claro que a família não pensava assim. Quase todos torciam o nariz para aquela relação, no mínimo, escandalosa. Onde é que já se viu uma coisa dessas?, perguntava a irmã mais nova. A outra irmã se equilibrava no meio da confusão – algumas vezes concordando com o pessoal; outras, apoiando o romance do mano. Não liga pra essa gente besta, cara! Vai fundo!, aconselhava baixinho. E, no momento em que aparecia alguém, mudava rapidamente de assunto.

A destruidora de corações tinha quase quarenta anos. Era alta, elegante, educada e com algum dinheiro. Pouco, é verdade. Mas, perto daquela família, parecia rica. Aliás, muito rica. E isso, de certa forma, justificava toda a resistência.

A mãe não deixava por menos e se referia à namorada do filho como “aquela piranha”. E previa: Isso vai ser o fim do meu menino. Escrevam o que estou dizendo: essa ‘zinha’ vai acabar com o meu filho! Em seguida, caía em prantos. Chorava umas duas Cataratas do Iguaçu. Catatônica, parecia exigir providências enérgicas contra o descalabro.

Enquanto isso, a relação não apresentava grandes dificuldades. Estavam quase morando juntos. A fase dos beijinhos tinha ficado no passado. Era hora de definir o futuro. Diante do perigo, providências enérgicas foram tomadas. E coube ao pai resgatar o filho desgarrado.

Com a conversa mole de sempre, e constrangido pelo inusitado da situação, o “velho” tentou explicar para o rapaz que a diferença de idade é sempre um problema — ou melhor... Mas, não completou a frase. Depois de um silêncio incômodo, disse, pausadamente: Quer saber de uma coisa? Todos os relacionamentos amorosos são problemáticos. Deveriam vir com manual de instrução. Só assim talvez errássemos um pouco menos. Olhando fixamente para o filho, terminou a conversa: Você sabe, só estou aqui porque tua mãe pediu. Se não falo com você, ela me mata!

O filho abraçou o pai. Disse uma bobagem qualquer e o convidou para tomar uma cerveja no bar da esquina.

No dia seguinte, arrumou as malas e foi embora. Deixou um bilhete dizendo que as melhores coisas da vida simplesmente acontecem. Não podemos evitar. O que talvez possamos escolher são as coisas ruins. No post-scriptum, lembrou à mãe que, se a namorada estava na idade da loba, ele estava pronto para ser devorado.


quinta-feira, 1 de setembro de 2022

UMA NOVA GERAÇÃO DE ARTISTAS PLÁSTICOS

 

Depois de longa estiagem, está surgindo uma nova geração de artistas plásticos na Região Serrana. A efervescência dos anos 80 do século passado (quando Elionir Camargo Martins, através da Galeria Toulouse, se projetava como aglutinadora da produção artística) ficou no passado. Pintores como Clênio Souza, Adilson Guanabara, Rudimar Cifuentes e André Fischer, entre outros, foram substituídos por alguns paisagistas que, entre uma tela e outra, trocam de lugar os pinheiros, os riachos e as casinhas bonitinhas e imaginam que estão sendo criativos. Um olhar mais atento revela, nesses trabalhos, erros grosseiros de perspectiva, proporcionalidade, profundidade e cores. Mas isso parece não possuir a mínima importância, visto que a ideia básica é transformar a pintura em decoração – de preferência na parede no escritório de um amigo ou na casa de algum simpático burguês.  

   


A exposição coletiva Só pelo pinhãozinho, que pode ser visitada no Centro Cultural Vidal Ramos – SESC (Rua Vidal Ramos Júnior, 101-107), propõe um olhar diverso da estagnação, comprovando que é preciso deixar o medo de lado quando se decide transitar por um terreno cheio de armadilhas. Tendo como proposta de trabalho o pinhão e a araucária, temas desenvolvidos nos anos 80/90 por Kátia Lisboa (1953-2018), os artistas que integram o grupo A Catequese adotaram vários suportes de transmissão artística (óleo sobre tela, tinta acrílica, colagem, vídeo, instalação). Essa mistura produz um curto circuito no olhar do espectador e que se manifesta através da vertigem que oscila entre a consciência ecológica e a paródia artística. Simultaneamente, há o acenar para uma linguagem que quer se distanciar do convencional e do esteticamente comportado.

Uma síntese desse pensamento está no óleo sobre tela apresentado por Thomas Fernando (A vida é dura), composto por figuras recortadas de outros contextos e que, ao serem reunidas, produzem um estranhamento difícil de ser explicado. Sem se importar com a proporção, o artista povoou a tela com aves, serpente, verme, ovo que parece prestes a eclodir no ninho. Tudo está iluminado por uma lua cheia. Ao adotar o surrealismo que abusa do colorido (a ponto de ofuscar a visão), talvez, talvez acene para questões que não estão explícitas (e que não são de fácil percepção).

 

Thomas Fernando, A vida é dura, óleo sobre tela

Em No Calçadão vem que tem, de Lucas Speranza, a colagem e a projeção caricata das figuras revela uma visão pouco simpática da ocupação espacial no centro da cidade. Talvez seja a proposta com maior impacto político, porque mostra o embate entre o cenário plúmbeo (que oferece tudo a preços imbatíveis e coloridos) e as figuras humanas de lado – que parecem ter medo de encarar o futuro. A presença repressiva é outro elemento que causa angústia e dor. Como pano de fundo, emoldurando a tela, muitos volantes de loteria, quiçá acenando para o trocadilho volátil (esperança/Speranza).  

 

Lucas Speranza, No calçadão vem que tem, diversas técnicas

Rodrigo da Luz (A cobiça) preferiu adotar o embate entre as cores quentes e frias. Ao reunir a luz excessiva com a disputa pelos frutos da terra traduziu a luta que conceitua a crueldade que envolve a natureza. A disposição das figuras, de certa forma, indica o desequilíbrio do combate. A busca por uma representação que forneça legitimidade à ideia expande o aspecto alegórico.

 

Rodrigo Luz, A cobiça, óleo sobre tela

Em abordagem pictórica oposta, Hércules Scapo (Solstício de inverno) aposta no sombrio. A distância imaginária (porque só existe no espaço ficcional) entre os pinheirais e os automóveis acena para um mundo em transformação – e essa mudança nem sempre se concretiza como qualidade de vida. Semelhante ao cenário de alguma HQ distópica, a tela acena para a solidão, para um mundo fadado à desolação. 

 

Hércules Scapo, Solstício de inverno, óleo sobre tela

As pinceladas propositalmente borradas e as personagens sem identidade (porque distantes, porque vagam sem destino) de Marina Rodrigues (Cotidiano) instituem um cenário que se aproxima (mesmo que superficialmente) da perda da percepção social. Tudo, inclusive o céu, parece irreal, um conjunto de figuras que perdeu o sentido, porque dispostas ad hoc. Mas, talvez seja essa ambientação pouco realista que produz a inquietação, o se perguntar por que tudo está ali e de uma forma antipoética.

 

Marina Rodrigues, Cotidiano, acrílica sobre tela

Marcelo Rengueira (Entre o começo e o fim) também se afasta do realismo, mas com outro propósito. A utilização de animais que não fazem parte dos campos de araucária provoca uma reflexão mais apurada e que se “reflete” na sombra – que parece acenar para o passado, para um mundo onde a vida humana (simbolizada pelo sol) começa a ser substituída por imagens transitórias. 

 

Marcelo Rengueira, Entre o começo e o fim, acrílica sobre tela


O painel (de autoria coletiva) As gralhas consiste em variação sobre o mesmo tema. Mesmo como uma retomada dos ideais ecológicos, do contato com Gaia (a mãe terra), parece estar fora do contexto. Diante dos outros trabalhos, mostra um deslocamento que soa confuso.

 

Criação coletiva, As gralhas, óleo sobre tela

 

A grimpa (autoria coletiva) evoca o escândalo proposto pelo artista conceitual Maurizio Cattelan, que, em 2019, colou com fita adesiva uma banana na parede de uma galeria italiana e vendeu a “escultura” por US$ 120.000. Trata-se de uma discussão (muito confusa) sobre a perenidade da obra artística, visto que a vida útil desse tipo de objeto não será longa. Por outro lado, em tempos de reprodutividade técnica, onde tudo pode ser replicado a cada instante, acena para uma pergunta inquietante: ainda é viável conservar um objeto artístico por séculos?  

 

Criação coletiva, A grimpa, obra conceitual

 

Diante do conjunto proposto pela exposição Só pelo pinhãozinho, que mostra inúmeras formas de “conversar” com o tema, cabe a pergunta: faltou alguma coisa? A resposta é simples: sim. Quase todas as propostas estão voltadas ao ambiente urbano, esquecendo questões como o desmatamento predatório das araucárias, as serrarias, a população que se deslocou do ambiente rural para a periferia da cidade. Alguém há de responder a este questionamento dizendo que a arte não pode/deve ter compromissos ou posicionamentos políticos. É uma forma de perceber a situação. Embora seja muito simplista. Em outras palavras, ferramentas como o surrealismo, a alegoria e a paródia não são (nunca serão) capazes de explicar de forma eficiente os diversos fatores sociais e históricos que estão medindo forças.

Enfim, somando todos os elementos, deve-se destacar o esforço do grupo A Catequese em propor olhares menos apegados ao conservadorismo estético, projetando possibilidades bastante significativas para as artes plásticas da Região Serrana. Que venham novas exposições, novas provocações, novos espantos!