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sexta-feira, 31 de março de 2023

A GELADEIRA, ONTEM E HOJE

 


Algumas questões são difíceis. Entre um tropeção e outro, faz-se necessário tomar uma decisão. Mas,... e sempre existe um “mas” no meio do caminho.  Esse obstáculo pode se manifestar em 5.315 alternativas – todas tangenciando o erro. Depois de exaustivos estudos, noites de insônia e dores de cabeça foi possível concluir que parte das questões essenciais do mundo está concentrada na compra de uma geladeira. E, se o/a ilustre leitor/a me honrar com o prazer de sua companhia, tentarei desvendar essa tese extravagante.


Antes, uma pequena digressão. A sociedade moderna discrimina tudo o que é diferente. Ou o que não estiver na moda. Não adianta tentar manter idiossincrasias particulares – quando menos se espera aparece um chato e pisa no nosso castelo de areia; e pouco importa se passamos a tarde toda construindo aquela bobagem para tentar impressionar alguma vítima. Um exemplo clássico, eternamente presente em minha vida, está no tipo de marginalização que sofrem aqueles que ignoram a indústria automobilística. Muitos de meus amigos jamais me perdoaram por não possuir nem mesmo um fusquinha, por ter dificuldades em distinguir uma Kombi de uma Ferrari e por detestar dirigir (certa vez, evidenciando típica falta do que fazer, frequentei uma autoescola). Em outras palavras, essas insignificâncias conseguiram me transformar em um cidadão de segunda classe. Tudo bem, se a questão se resume em discriminar, lamento informar a quem interessar possa que estou em ótima companhia: índios, sem-terras, sem-tetos, não fumantes, negros e outras “minorias” menos cotadas.


Mas, e a geladeira? Onde é que o eletrodoméstico entra nesta história? Calma, já chego lá! Depois que me separei da mãe de meu filho, lá no século passado, resolvi viver de forma ascética. Ou seja, com o mínimo indispensável. Morando sozinho, e sem muitas preocupações com as questões domésticas, considerei que ter um refrigerador era um item completamente dispensável na minha vida. Um erro terrível. O resultado imediato dessa decisão foi o isolamento social. Amarguei ouvir certas frases: Como é que vou à tua casa, se nem um cerveja gelada você tem para servir? E a palavra gelada vinha envolta no papel celofane do desprezo. Até Mítia (na época, com quatro anos), perguntava: E a geladeira, pai? Pois é, e a geladeira?


Acontece que certo dia (provavelmente o resultado de algum descuido que nunca procurei desfazer) notei que havia uma pequena folga na conta bancária. Sem saber o que fazer com tamanha fortuna, decidi adquirir o que estava faltando para completar a vida burguesa.


Armado de paciência – mas não muita – fui à luta. Primeiro, uma pesquisa de preços. Diferenças astronômicas entre uma loja e outra. O mesmo para as condições de pagamento. Paralelo a isso, aprendi uma lição: não basta ter o dinheiro para poder comprar. Algumas lojas não possuem estoques – é preciso esperar, no mínimo, uma semana pela entrega!


Ansioso para resolver a questão optei por fazer negócio com um estabelecimento em que a funcionária me prometeu posse imediata do objeto ao final daquela mesma tarde. Além disso, aceitaram pagamento em diversas parcelas (sem juros). Foi quase como acertar na loteria. Quase.


Como era dia de brincar de pai exemplar, fui buscar o filho no colégio às cinco horas da tarde. Em seguida, lépidos e faceiros, fomos para casa aguardar a chegada da novidade. Que não chegou. Nem na manhã seguinte. Tampouco recebi algum telefonema explicando a situação.


Furioso, voltei até a loja. Com a cara de pau típica dos incompetentes o gerente me informou que haviam vendido duas vezes o mesmo produto! Desfizemos o negócio imediatamente. De gorjeta, mandei todo mundo plantar batata no asfalto. Com enxada de borracha. Na verdade, os termos que utilizei foram outros e levemente mais ríspidos. Coisa pouca. Bobagens de quem estava com a cabeça quente.


Procurei outra loja. Dois dias depois. Ótima forma de pagamento, entrega em cinco dias, diferença de preço quase insignificante. Arrisquei.


No dia marcado, fiquei aguardando alguma tragédia. Que não veio. Aliás, nem notícias da geladeira. Será que havia sido enrolado, outra vez? Receoso, fui para o trabalho. Na volta para casa, uma das vizinhas que me disse que “ela” estava me esperando no corredor do prédio.

− O moço da entrega estava com pressa. Pediu para que eu a recebesse. Será que fiz mal?


Ignorei a pergunta. A “coisa” estava lá, agasalhada por uma caixa de isopor. Tive uma crise de paranoia: e se estiver estragada? Ou arranhada? Ou... sei eu lá!


Depois, com o carinho que se oferece a uma namorada, a fiz ultrapassar a porta do apartamento. Na manhã seguinte, já estava incorporada ao meu mundo domesticado. E, por algum estranho motivo que não quero entender, passamos a viver um clima de lua de mel.


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O texto acima é antigo, retirei alguns parágrafos e adaptei outros. Algumas das observações refletem a época em que foi escrito. No entanto, mantém um pé no contemporâneo. Comprovei isso recentemente quando precisei trocar o eletrodoméstico. O sistema de entrega melhorou, mas a conversa mole dos vendedores continua igual. Enfim, como dizia um personagem literário, tudo mudar para que nada mude. Vida que segue.


terça-feira, 28 de março de 2023

A ÚLTIMA TRAVESSIA

 


Os países nórdicos (Dinamarca, Suécia, Noruega, Islândia e Finlândia) surpreenderam o mundo literário nos últimos 30 anos. Isso não quer dizer que eles não escrevessem/publicassem antes. Os leitores é que não tinham acesso à produção literária contemporânea daquela parte do mundo. Atualmente é possível encontrar, no Brasil, romances policiais, autoficção e dramas de diversos matizes. Também existem narrativas de terror (que atendem a demanda crescente pela literatura gótica). A Editora Morro Branco publicou, em 2018, A Última Travessia, de Matts Strandberg, considerado o Stephen King sueco.

Com esse livro é fácil constatar que não existem vampiros como os de antigamente. Aquele ar ligeiramente melancólico de Drácula se perdeu em noites sem luar. A transgressão sexual de Carmilla e da dupla Louis de Pointe du Lac e Lestat de Lioncourt não causa o mínimo escândalo. A aristocracia esnobe da família Cullen desapareceu sem deixar vestígios. A barbárie venceu. É o que se percebe com o texto de Strandberg.

A ação narrativa ocorre em um cruzeiro marítimo entre a Suécia e a Finlândia. Viagem curta de apenas 24 horas pelo Mar Báltico. Cenário ideal para milhares de conflitos. Inclusive porque 90% dos 1200 passageiros pagaram a viagem para se divertirem. Isto é, ficar bêbados e fazer o máximo de sexo que for possível. Os 10% restantes enfrentam outros tipos de problemas. Ou seja, são os funcionários do navio e dois passageiros diferentes de todos que o navio já viu.

O ambiente de trabalho dentro do navio está longe de refletir uma colônia de férias. Existem tensões que se escondem atrás da aparente tranquilidade. O cansaço e o estresse constituem a rotina de cada viagem (além da ameaça de desemprego que parece ser constante).

Até as proximidades do arquipélago Åland tudo transcorre como era esperado. Em determinado momento, esse cenário de alegria artificial sofre uma mudança radical. Como se fosse uma tempestade que surge inesperadamente, o horror se instala e a vida humana perde a importância.

É nesse ponto que surgem os vampiros. A diferença é que eles não se contentam em apenas beber sangue, querem dominar o mundo. Clichê típico da literatura de segunda ordem. A narrativa, que era ruim, torna-se pior. Nesse momento, o leitor com um mínimo de senso crítico pode abandonar o livro sem o menor constrangimento. O que se segue é inimaginável e patético. Aqueles que são mordidos, depois de um tempo, se transformam em zumbis. A carnificina se instala. Corpos despedaçados e cenas de violência absurda constituem as descrições (que são muitas) e que se sucedem com a mesma exatidão da linha de montagem de um frigorífico. Se o livro tivesse umas 150 páginas a menos, o leitor ficaria agradecido.

Um incêndio resulta em naufrágio do navio. Alguns personagens conseguem baixar botes salva-vidas e fugir do pesadelo – embora precisem superar incontáveis desafios antes que isso aconteça. Nesse enredo sem a mínima originalidade, cansativo em algumas cenas, salvam-se aqueles que precisam se salvar e desaparecem quase todos os que precisam desaparecer. A ameaça permanece. O mundo não está a salvo – essa é a mensagem final.          

P.S.: A Última Travessia merecia uma revisão mais apurada. Nas primeiras páginas existem algumas palavras grafadas de maneira inadequada.


domingo, 26 de março de 2023

HISTÓRIAS CRÔNICAS E AGUDAS



– Foi uma surra exemplar. Antônio estava de caso com a vagabunda da Esmeralda.


Aqueles que conversam em voz alta ao telefone enquanto estão caminhando correm o risco de alguém escutar parte do diálogo. Foi o caso. A parte ativa estava contando para alguém uma possível confusão passional. Infelizmente, pelo caráter transitório da situação, a pessoa que estava no celular mudou de calçada e os (melhores?) detalhes do diálogo se perderam.


Então, ao ouvinte involuntário, se quiser desenvolver a história, cabe usar da imaginação e introduzir um pouco de fantasia na narrativa. Ou melhor, fornecer substância ao trivial. Um exercício literário, digamos, começa no momento em que as cenas mais diversificadas (escabrosas, românticas, violentas) passam a fazer parte do enredo. Surge (no plano imaginário) uma estrutura com começo, meio e fim (não necessariamente nessa ordem). Para seduzir o ouvinte/leitor, o narrador acrescenta ou inventa as minúcias que estavam ausentes no fragmento inicial. Adiciona ao alimento ficcional o molho que fornece sabor diferenciado. E pouco importa a verossimilhança. O mecanismo ficcional não tem compromissos com os fatos – embora os use como apoio para materializar o texto (ou a conversa) e encantar o público.


Antônio terminou o dia no hospital ou na polícia? Talvez nos dois lugares. Quem era o agressor? E a motivação? Que papel desempenha a pessoa ao telefone no desenrolar da trama? Será que o adjetivo usado contra Esmeralda possui alguma veracidade ou foi causado por alguma rixa entre vizinhas? Qual é o contexto que explica a agressão? Quais são os personagens mais importantes da narrativa? E aqueles que contribuíram para a existência dos fatos e não foram citados? Qual é a possibilidade de tudo não ter passado de um engano?


As variações tendem ao infinito – e além. Tudo depende da criatividade daquele que está contando a história. 


Histórias com pouco poder de atração podem se transformar em algo interessante – basta usar um pouco de sensibilidade e técnica literária. Esse fenômeno acontece o tempo todo. A diferença é que (dependendo das circunstâncias e de interesses difusos) muitas narrativas ficam invisíveis aos olhos apressados – aqueles que são incapazes de perceber o Outro, aquele que está ao seu lado.  Enfim, o cronista é alguém que observa a vida e consegue extrair do cotidiano alguns acontecimentos que deveriam ser considerados tão importantes quanto os que são anunciados nas manchetes. Ao dar destaque às questões que estão escondidas no dia a dia, estabelece uma forma de resistência à pasteurização do viver.


Entre a comédia e a tragédia, entre a felicidade e a tristeza, a humanidade tropeça, cai, levanta, segue em frente (nem que seja para reiniciar o ciclo). Nesse percurso protagoniza muitas aventuras. E que constituem, para o bem e para o mal, o material essencial para a narração. Conta a lenda que Ignácio de Loyola Brandão costumava percorrer São Paulo de ônibus e/ou de metrô. No melhor estilo caçador de histórias, munido de caderno e caneta, observava o que estava acontecendo ao seu redor. As anotações (diálogos, momentos engraçados) obtidas dessas experiências resultaram em crônicas e contos divertidos.


segunda-feira, 20 de março de 2023

JUCA KFOURI: POLÍTICA E FUTEBOL

 



Alguns livros costumam chegar atrasados às mãos do leitor. Quer dizer, o encontro se efetiva em tempo diferente daquele que deveria. Não sei dizer se isso é bom ou ruim. Apenas acontece. E não há nada a fazer, exceto ler o texto e confirmar se continua dizendo aquilo que queria dizer em tempo pretérito.

No caso de Confesso que perdi, as memórias do jornalista esportivo Juca Kfouri, publicado em 2017, tudo continua limpidamente coerente, poucas coisas poderiam ser atualizadas, embora muito futebol tenha sido jogado nesses quatro últimos anos – o mesmo se pode dizer sobre os acontecimentos políticos.

Como cabe ao memorialismo, tudo o que foi publicado é produto de uma seleção. Incluiu-se o que interessava incluir, omitiu-se o que interessava omitir. Nesse segundo departamento, por exemplo, existe uma lacuna abissal sobre a vida familiar. Habilmente, os quatro filhos (de três relacionamentos) foram protegidos da curiosidade do público leitor. Eles são citados somente em momentos inevitáveis. Faz parte do show.

Unindo o ativismo político com o jornalismo esportivo, Kfouri estabeleceu uma trajetória singular. Mas, evidentemente, essa postura está longe do equilíbrio (como ele mesmo reconhece, relatando vários momentos de destempero). A sua paixão pelo Corinthians, por exemplo, se aproxima do fanatismo. Felizmente, o pessimismo que herdou da militância esquerdista, o faz refletir sobre esse perigo. Ou seja, comemora as vitórias com contenção e procura entender as derrotas com a lente crítica. O melhor exemplo dessa postura se expressa no título do livro, que emula o famoso Confesso que vivi, de Pablo Neruda.

Mas não é somente no futebol que as perdas se somam. Desde as lembranças dos anos 60 (e sua participação nos movimentos de resistência) até a atualidade, o caminho político se mostrou tortuoso, repleto de armadilhas. Pequenas alegrias, incontáveis tristezas. Amigos e familiares mortos pela ditadura militar. A iniquidade sendo reconhecida como valor no impeachment de Dilma Rousseff. A percepção de que a democracia está em risco diariamente.

Kfouri foi diretor da revista Placar durante uma eternidade. E trabalhou em outros veículos jornalísticos – inclusive na revista Playboy. Isso significa que escreveu textos sobre diversos assuntos e fez algumas entrevistas com personagens singulares da história brasileira (Castor de Andrade, por exemplo). Também participou da cobertura de diversas Copas do Mundo e Olimpíadas. Os casos e causos que relata sobre essas situações constituem o necessário refresco às tragédias.

Observador atento do cotidiano, Kfouri lembra que Futebol e política, política e futebol se misturam como água e sabão, e seria melhor se um e outro fossem mais limpos do que são. Infelizmente, a sujeira está presente nas relações sociais. E falta um sistema capaz de eliminar essa poluição ambiental. Tanto no futebol como na política, os urubus se alimentam dos detritos, da carniça.

Ao reprovar essa selvageria, Kfouri concentra esforços para denunciar algumas cafajestadas (máfia da loteria, perversidades produzidas pela CBF, intrigas palacianas). São atitudes quixotescas, próprias de quem acredita estar do lado oposto aos “homens de bem”, aqueles que defendem “os valores morais” da família. Algumas vezes obtém sucesso – estímulo necessário para continuar o combate.

Um dos capítulos mais íntimos do livro faz uma elegia a uma das mais importantes figuras dramáticas da história brasileira: Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira Oliveira (1954-2011). A amizade que o unia ao “Magro” transcende a explicações. E isso, entre outras coisas, o impediu de escrever uma biografia do jogador corintiano (também santista). Coisas daquilo que os puristas chamam de necessário distanciamento do objeto de análise.   

Confesso que perdi não se perde nas confissões de Juca Kfouri. Ao contrário, apesar dos inúmeros espaços vazios que o narrador faz questão de abrir no que está revelando, há esclarecimento e sabedoria. Talvez seja a primeira parte de uma narrativa maior – e que ainda está por ser escrita (seja por Kfouri, seja por outro).


sexta-feira, 17 de março de 2023

BREVE DISCURSO SOBRE O CINEMA

 

Cena de Cinema Paradiso (Dir. Giuseppe Tornatore, 1988)

Por acaso, um filme ruim é impedimento para ir ao cinema? Quando Mítia fez essa pergunta, fiquei algum tempo sem encontrar um argumento razoável. Discutir estética sempre resulta em problemas insolúveis ou equívocos paquidérmicos. E a questão tinha um objetivo mais prosaico. Bastava dizer sim ou não e alinhar uma meia dúzia de palavras para justificar a resposta. No entanto,...

O cinema (ao lado da literatura) salvou a minha adolescência. E isso não é exagero. Aquelas duas horas em que me isolava do mundo em um dos quatro cinemas que existiam na cidade tiveram um efeito terapêutico equivalente a vinte sessões com o psicólogo. Como escreveu, certa vez, Félix Guattari, o cinema é o divã do pobre. Talvez não seja mais. De qualquer forma, fornece um sossego que serve para encontrar a leveza necessária para enfrentar os problemas da vida. 

Com o passar do tempo, os Cines Tamoio e Marajoara (onde assisti centenas de faroestes) foram substituídos pelo Marrocos (onde passavam filmes mais sérios). O gosto foi sendo refinado (mais ou menos) e introduzindo novos conceitos. Lembro-me de estar quase sozinho quando passou Sonata do Outono (Dir. Ingmar Bergman, 1978), a cena das duas mulheres discutindo aos gritos ficou gravada na mente. A censura da ditadura militar liberou Laranja Mecânica (dir. Stanley Kubrick, 1971), mas, para preservar a moral e os bons costumes, colocou tarjas nos fotogramas em que eram mostrados nus frontais dos personagens. Então, o público foi presenteado com a dança das bolinhas pretas que ficavam pulando pela tela e que revelavam mais do que o que queriam esconder. Em Apocalipse Now (Dir. Francis Ford Coppola, 1979), a guerra se transformou em um espetáculo assustador – e que contrastava com o humor cínico (e mordaz) de Mash (Dir. Robert Altman, 1970). No intervalo dos dramas pesados, (filmes-cabeça, como se dizia na época), o público aplaudiu o entretenimento de Aeroporto (Dir. George Seaton, 1970), Top Gun – Ases Indomáveis (Dir. Tony Scott, 1986), O Poderoso Chefão (Dir. Francis Ford Coppola, 1972), a franquia James Bond e outras películas que enalteciam os heróis improváveis.

Era um tempo em que ir ao cinema instituía um ritual. Nessa cerimônia social era possível estabelecer contato com alguém interessante (mesmo que fosse apenas um olhar errante). Muitos namoros começaram (ou terminaram) dentro de uma sala de cinema. Quem não estava assistindo o filme em cartaz, ficava na rua, esperando pela “saída” da sessão de domingo à noite. Mais do que um exercício de voyeurismo, era um momento de antecipação para encontrar amigos para tomar cerveja no Texas Burguer ou comer um pastelão em A Petisqueira. Se possível, se houvesse oportunidade, comentávamos o filme.  

A vida me levou para outras cidades, outros cinemas, outras percepções do mundo. Nas cidades onde morei ou visitei foi possível anexar dezenas de filmes ao catálogo cinematográfico. Foi na capital paulista, nos anos 80, que assisti Salò ou os 120 Dias de Sodoma (Dir. Pier Paolo Pasolini, 1976) – um filme inquietante e que me causou mal-estar. Só consegui entender a força daquela metáfora angustiante alguns anos depois. 

Houve um tempo em que o SESC promovia sessões alternativas com filmes que não estavam disponíveis nas salas comerciais. Em algum momento, vi toda a obra de Glauber Rocha e Humberto Mauro, além de inúmeros clássicos. Recentemente, a exibição de Bacurau (Dir. Keber Mendonça Filho e Juliano Dorneles, 2019) conseguiu agregar milhares de espectadores que, por diversos motivos (inclusive os econômicos), foram impedidos de ver o filme em salas comerciais.  

Muitos críticos de cinema se mostram céticos sobre o futuro do cinema. Afirmam que, na modernidade, os canais de streaming estão matando as salas de exibição de filmes. Seguem fazendo o trabalho sujo que foi iniciado com o vídeo cassete, continuou com o DVD e instituiu a ilusão burguesa de que o Home Theater e as televisões gigantes podem substituir a magia que somente uma sessão de cinema pode oferecer. Aqueles que conseguem evitar o autoengano continuam pagando pelo ingresso (apesar do preço da pipoca e do refrigerante) e mergulhando na fraude mais bonita do mundo (nas palavras de Jean-Luc Godard).   

Voltando à pergunta inicial, continuo frequentando as salas de cinemas toda vez que posso (apenas em sessões legendadas). Mesmo nos filmes de super-heróis que migraram das histórias em quadrinhos para as telas. Os enredos são ridículos, mas os efeitos especiais são sensacionais. Um filme ruim nunca é impedimento para ir ao cinema!


sábado, 11 de março de 2023

A DEMOCRACIA EM TRINTA E CINCO FRASES PESSIMISTAS



– Democracia são dois lobos e uma ovelha decidindo o que comer no jantar (Benjamin Franklin)

– A democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras que têm sido tentadas de tempos em tempos. (Winston Churchill)

– A democracia é o pior dos bons governos, mas o melhor entre os ruins. (Platão)

– Democracia é a forma de governo em que o povo imagina estar no poder (Carlos Drummond de Andrade)

– A democracia é apenas a substituição de alguns corruptos por muitos incompetentes. (George Bernard Shaw)

– A democracia é um erro estatístico, porque na democracia decide a maioria e a maioria é formada por imbecis (Jorge Luis Borges)

– A maior desgraça da democracia é que ela traz à tona a força numérica dos idiotas, que são a maioria da humanidade. (Nelson Rodrigues)

– A democracia é a arte e ciência de administrar o circo a partir da jaula dos macacos. (H. L. Mencken)

– A democracia? Vocês sabem o que é? O poder dos piolhos comerem os leões. (Georges Clemenceau)

– A democracia é o governo nas mãos de homens de baixa extração, sem posses e com empregos vulgares. (Aristóteles)

– Democracia é aquela forma de governo em que todos têm o que a maioria merece. (James Dale Davidson)

– A democracia é o caos previsto de urnas eleitorais (Thomas Carlyle)

– O verdadeiro milagre brasileiro: uma democracia completamente isenta de democratas. (Millôr Fernandes)

– A democracia é quando as pessoas são livres para escolher alguém que depois irá frustrá-las. (Laurence J. Peter)

– Democracia é eu mandar em você. Ditadura é você mandar em mim. (Millôr Fernandes)

– O grande problema do nosso sistema democrático é que permite fazer coisas nada democráticas democraticamente. (José Saramago)

– Democracia é o nome que costumamos dar ao povo sempre que precisamos dele. (Robert de Flers)

– Democracia é um processo pelo qual as pessoas são livres para escolher quem levará a culpa. (Laurence J. Peter)

– Numa democracia, o direito de ser ouvido não inclui automaticamente o direito de ser levado a sério. (Hubert Humphrey)

– Não existe democracia sem capitalismo. (Paulo Francis)

– Na hora de fraudar a votação é que se sente a força da democracia. (Millôr Fernandes)

– Democracia é oportunizar a todos o mesmo ponto de partida. Quanto ao ponto de chegada, depende de cada um. (Fernando Sabino)

– A democracia começa na hora de votar. E termina na hora de contar. (Millôr Fernandes)

– Houve uma época em que se depositou muita esperança em uma democracia. Mas a democracia significa simplesmente o esmagamento do povo pelo povo e para o povo. Foi o que descobri, e devo dizer que já não era sem tempo, pois toda autoridade é degradante. (Oscar Wilde)

– Nessas democracias industriais e materialistas, furiosamente empenhadas na luta pelo pão egoísta, as almas cada dia se tornam mais secas e menos capazes de piedade. (Eça de Queiroz)

– A democracia é quando as pessoas são livres para escolher alguém que depois irá frustrá-las. (Laurence J. Peter)

– A democracia é um sistema que faz com que nunca tenhamos um governo melhor do que merecemos. (George Bernard Shaw)

– A democracia não é branca nem negra: é cinza. (Norberto Bobbio)

– O fato de um camponês poder tornar-se rei não torna esse reino democrático. (Woodrow Wilson)

– A democracia é o governo dos deseducados. E a aristocracia é o governo dos mal-educados. (G. K. Chesterton)

– A diferença entre uma democracia e uma ditadura consiste em que, numa democracia, se pode votar antes de obedecer as ordens. (Charles Bukowski)

– Democracia é o regime em que você diz o que quer e faz o que lhe mandam. (Gerald Barry)

– Democracia é a crença de que uma multidão de idiotas juntos pode resolver problemas melhor do que um cretino sozinho. (Millôr Fernandes)

– Se começássemos a dizer claramente que a democracia é uma piada, um engano, uma fachada, uma falácia e uma mentira, talvez pudéssemos nos entender melhor. (José Saramago).

– O melhor argumento contra a democracia é uma conversa de cinco minutos com um eleitor mediano. (Winston Churchill) 

quinta-feira, 9 de março de 2023

LEMBRANÇAS ESCOLARES


 


Durante alguns meses, em 2020, participei de um grupo de WhatsApp com pessoas que estudaram comigo no segundo grau. A ideia geral era fazer uma reunião festiva – alguns meses depois – para reencontrar os dinossauros, digo, os sobreviventes. Estamos todos na faixa dos 60 anos e não seria surpresa se alguns já estiverem usando bengala, tomando mil remédios (pressão, diabetes, próstata, doenças cardíacas) e oferecendo aos netos o carinho que recusaram aos filhos.

O encontro não se realizou em função da pandemia. Ou, se aconteceu, dele estive ausente. Estava (estou) em outra sintonia. Para o bem ou para o mal, depois de algum tempo, decidi me afastar do grupo. Diversos motivos, inclusive os políticos. Não os reconheço como interlocutores. Não me reconheço como um deles.

Tenho lembranças nebulosas do tempo escolar em que frequentei o Colégio Industrial de Lages. Minha família estava fragmentada e o dinheiro que a minha mãe conseguia ganhar com trabalhos aviltantes só servia para pagar o aluguel e a comida. Além disso, para ajudar na confusão, várias vezes estive próximo de perder a microbolsa de estudos que recebia da escola. Um dos episódios mais significativos, e que me causou muitos aborrecimentos, ocorreu quando decidi que não iria frequentar as aulas de educação física. O professor, adepto entusiasmado do atletismo, exigia que os alunos fizessem corridas de vários quilômetros, subindo e descendo morros íngremes, incentivava arremessos e saltos diversos, queria formar campeões. Era o horror – principalmente para quem queria ficar sozinho, ou, no máximo, na companhia dos livros. Resumindo: naquelas aulas, onde predominava o espírito solar, não havia lugar para alguém que vivia no mundo da lua.

As aulas regulares ocorriam pela manhã e o ensino profissionalizante era ministrado no período da tarde. Poucas escolhas estavam ao alcance dos alunos: mecânica de automóveis, eletricidade e tornearia mecânica. Para ser sincero, uma pior do que a outra. Detesto automóveis e morro de medo de eletricidade (até trocar lâmpada me deixa em pânico). Não restou alternativa.

Aborrecimento era o mínimo que as aulas de tornearia me causavam. Uma das tarefas (que deve ter sido elaborada por algum aprendiz de Torquemada) consistia em limar um bloco de metal. O aluno precisava deixá-lo absolutamente retilíneo, não podia passar uma mísera fresta de luz. Esporadicamente, o professor, munido de um instrumento de tortura medieval chamado paquímetro, fazia a aferição. Meu bloco nunca estava de acordo com o esperado. E lá ia a vítima para mais algumas horas de esforço físico, mais um calo na mão e nota baixa.

Outro episódio surreal daquela época: eu fui professor de História da minha própria turma! Em diversos momentos, por problemas particulares, o titular da cadeira precisou se ausentar. Como ele já tinha sido meu professor em outra escola e sabia que eu tinha algum conhecimento sobre o conteúdo, me pediu para substituí-lo. Empolgado, sem pensar nas consequências, aceitei a tarefa. Foi divertido. De qualquer maneira, nunca procurei saber se a direção do colégio tomou conhecimento dessa infração.

Entre os professores, várias figurinhas carimbadas. Em especial, a professora de biologia. Maria Helena, vulgo Samambaia, tratava os alunos como se fossem escravos de galés. Mal aparecia na esquina do corredor e já estava ditando matéria. Era Mefistófeles personificado em alguém que recusava ser simpática. Lembro-me de um raro momento em que perdeu a linha. Como é de lei, a sala tinha um candidato a humorista. O cara não perdia uma oportunidade para fazer alguma gracinha. No meio de alguma explicação, disse o que não devia – ou devia, sei lá! Maria Helena ficou furiosa e falou algo sobre não tolerar criancices e que, se o sujeito não se comportasse, ela compraria uma chupeta para ele. Contrariando as regras da relação professor-aluno, o sujeito fez pouco caso do sermão, e provocou: se ela pagasse, ele mesmo iria comprar a chupeta.  Fez-se o silêncio. Parecia rodada decisiva de pôquer, a dúvida instalada: será que um dos jogadores iria desistir ou mergulhariam de cabeça no turbilhão do “all in”? Maria Helena conferiu as suas fichas e resolveu pagar para ver. Pegou o dinheiro na bolsa e entregou para o aluno. Para surpresa geral e desmoralização total da professora, uns dez minutos depois, ele voltou para a sala e passou o resto da aula com a chupeta na boca.

O pouco que sei sobre matemática devo ao Márcio, um sujeito um pouco mais velho que os alunos e que um dia foi dar aulas em Goiás ou Tocantins, um desses lugares misteriosos do sertão brasileiro. Mesmo assim, quando me lembro das noites que passei estudando o livro do Osvaldo Sangiogi, sinto um desânimo insuperável.

Anderson, professor de física, era gremista fanático. Aulas nas manhãs de segunda-feira eram sinônimos do fracasso. Alguém sempre fazia alguma pergunta sobre o jogo de domingo. Ele tentava fugir do assunto. Outro aluno iniciava nova provocação. Alguma coisa transbordava dentro daquele homem educadíssimo, a paixão tomava conta e... o pandemônio se estabelecia. Adeus aula! Muitos anos depois, foi meu vizinho. Certa vez, enquanto esperávamos pelo elevador, relembramos essas pequenas trapaças da sorte.

As melhores aulas (para mim) eram de português e inglês, história e geografia, disciplinas que serviram para me mostrar que existem outros caminhos além da mediocridade. Várias vezes encontrei Dona Vânia Albuquerque no supermercado, mas nunca consegui dizer o quanto estou em dívida com a professora que, constantemente, me incentivou na direção da leitura, com a professora que respondia ao meu destempero com doçura e paciência.

No terceiro ano do colegial resolvi abandonar tudo. Não terminei o ano. Estava no lugar errado. Só fui completar o segundo grau uns cinco anos depois e em outra escola. A mãe ficou furiosa, mas teve sensibilidade para compreender que aumentar a infelicidade costuma causar estragos irrecuperáveis.

Nunca mais voltei ao Industrial, nem sequer para ver os belíssimos mosaicos do Martinho de Haro. Salvo quatro ou  cinco ex-colegas, com quem tenho algum tipo de proximidade ou que encontro em lojas e restaurantes, perdi o contato com a turma – alguns moram em outras cidades, outros faleceram. Não sinto a menor falta.

 

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