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quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

CONTOS MORAIS

 


Ao perceber que a morte estava próxima, o velho se mudou para o último andar de um prédio sem elevador.

Elizabeth Costello, personagem emblemática de John Maxwell Coetzee e que aparece em cinco das sete narrativas que compõem Contos Morais, segue esse tipo de pensamento, embora escolha uma forma diferente de causar desconforto nos seus familiares. Negando ajuda, ela quer viver os seus últimos dias sem qualquer tipo de rede de proteção – o que, obviamente, vai contra o plano dos dois filhos de instalá-la em uma casa de repouso, onde terá conforto e poderá desfrutar do tempo que lhe resta sem incomodar ninguém. Principalmente os filhos.

Não diga nada, meu bem. Tenho certeza de que acha os eufemismos tão desagradáveis quanto eu. Posso quebrar o quadril, posso ficar senil; poderia durar anos numa cama; é de coisas assim que estamos falando. Diante dessas possibilidades, para mim a questão é a seguinte: por que eu imporia a minha filha o fardo de cuidar de mim? E acredito que para você a questão seja: será que consegue viver consigo mesma se não se propuser, ao menos uma vez, com toda a sinceridade, a cuidar de mim e me proteger? Estou colocando direito o nosso problema, nosso problema conjunto?  

Sem citar Sêneca ou Epicuro, Elizabeth exercita o discurso de que nascemos para morrer e que, em algum momento, independente do que se possa fazer a respeito, Átropos, a mais cruel das Moiras, cortará o fio da vida.  Até que isso aconteça cabe continuar lutando com todas as forças por uma meia dúzia de ideias (no caso, a defesa dos animais, o prazer da escrita, a inclusão social). Ou seja, danem-se os filhos, o mundo e a serenidade.

Infelizmente, no último conto O matadouro de vidro, Elizabeth entende que está próxima de entregar os pontos. Ao mandar um pacote com vários documentos para o filho, explica:

Não sou mais eu mesma, John. Está acontecendo alguma coisa comigo, com minha mente. Esqueço das coisas. Não consigo me concentrar. Fui ao médico. Ele quer que eu vá à cidade fazer exames. Marquei consulta com um neurologista. Mas, enquanto isso, estou tentando pôr minha vida em ordem, caso aconteça alguma coisa.

Esse é, talvez, o mais triste dos contos porque, de certa forma, anuncia que pode acontecer alguma coisa. O tom de despedida (que talvez também seja um adeus do escritor – que fará 82 anos em 09 de fevereiro) confirma o quanto a vida é transitória e que, mesmo quando não a desperdiçamos, só sobrará (no caso dos escritores) o que fica gravado no papel  muitas vezes, nem isso.

Mas nem tudo são dores nesse conjunto de textos breves. Em Conto (um título estranho para um conto!), a mulher tem um caso extraconjugal. Ela ama o marido, ama a filha, mas obtém um tipo de satisfação somente possível com o outro.

Ela não odeia X e não o ama, mas ama sim o jeito com que ele olha para ela, o que faz com ela como consequência do jeito com que olha para ela. Ela deitada nua na cama dele, no apartamento que é a casa dele, ele olha para ela com tamanha alegria nos olhos, tamanho prazer, tamanho desejo, que...

Fugindo do estereótipo, em nenhum momento a mulher se sente culpada pela infidelidade. Entende que estar com o outro é uma forma de liberdade – e que isso, por certo, um dia há de terminar. Enquanto não acontece, cabe desfrutar de cada minuto como se fosse o último.

“Por que você está sempre sorrindo?”, a filha pergunta a ela no carro. É um dia em que estão só as duas voltando de carro para casa, a filha da vizinha faltou na escola, doente.

“Estou sorrindo porque é muito bom estar com você.”

“Mas você está sempre sorrindo”, diz a filha, “mesmo quando a gente está em casa.”

“Estou sorrindo porque a vida é tão boa. Porque tudo é tão perfeito”.

A vida é perfeita, mesmo quando a levamos na contramão, como Elizabeth Costello, que está em luta constante contra a inexorabilidade do envelhecimento, como a mulher que imagina que o amante irá levar por toda a vida, gravada no coração, essa imagem da beleza nua.       

 

John Maxwell Coetzee. Prêmio Nobel de Literatura, 2003.

 

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

O DUPLO E A LITERATURA - uma introdução

 


Em algum momento de Morte no Nilo, de Agatha Christie, Hercule Poirot cita a história bíblica do homem pobre e do homem rico. Ao oferecer banquete para alguns convidados, o homem rico – que tinha um grande rebanho de ovinos – resolve sacrificar a única ovelha do homem pobre. É o profeta Nathan que conta essa parábola para Davi, rei de Israel. Mas não se trata de discussão política e econômica sobre as relações de poder e a opressão (embora essa análise não possa ser descartada). Seu entendimento relaciona-se com a questão moral e serve de censura à atitude de mandar Urias para a guerra, deixando Betsabéia livre para que o rei pudesse desposá-la (II Samuel 12:1-15).

Sincronicamente, a situação encontra o seu reflexo especular em um episódio da mitologia grega. Zeus, o senhor do Olimpo, tinha uma libido muito forte e para desespero de Hera, sua esposa, frequentemente cometia adultério.  Em determinado momento se apaixonou por Alcmena, esposa de Anfitrião. Antes que o casamento fosse consumado, Anfitrião, na companhia de seu servo, Sósia, partiu para a guerra contra Tebas. Zeus, com a ajuda de Hermes, o mensageiro dos deuses, aproveitou a oportunidade. Os dois assumem a identidade dos ausentes. Enquanto Zeus (falso Anfitrião) se diverte no leito conjugal, Hermes (falso Sósia) fica na porta da casa, evitando que os amantes sejam perturbados. Alcmena, incapaz de distinguir quem é quem, faz as vontades daquele que imagina ser o marido. Na noite seguinte, retorna para Micenas o autêntico Anfitrião disposto a dar prosseguimento à vida conjugal. Os gêmeos que nasceram desses dois relacionamentos, Herácles (filho de Zeus) e Íficles (filho de Anfitrião), contribuíram para ampliar o conceito do herói mitológico (mas a participação de irmão “mortal” em algumas aventuras é quase insignificante). O episódio, em tom farsesco, está relatado na peça teatral Amphitruo, do escritor latino Titus Maccius Plautus (254 a.C – 184 a.C).

Com o passar do tempo, o substantivo anfitrião se tornou sinônimo de “aquele que recebe em sua casa” e sósia expressa “aquele que é parecido, que se confunde com o outro”. Foi partindo dessa visão que o mexicano Ignacio Padilha escreveu o romance Amphitryon, que está repleto de falsários, réplicas, simulacros, trapaças e situações confusas. O real fica embaçado e algumas coisas perdem o significado original.                                  

Em O Visconde de Bragelonne, a terceira parte do épico Os três mosqueteiros, Alexandre Dumas (père) utiliza-se de duas narrativas simultâneas e que espelham muitas outras. Raoul de Bragelonne, filho de Athos com a Duquesa de Chevreuse, é enviado para a guerra (onde morre) para que o rei Luis XIV possa desfrutar da amante, Louise de La Vallière (noiva de Raoul). Em paralelo corre a história de Philip, irmão gêmeo de Luis XIV e que está preso em um calabouço. A segunda história gerou várias adaptações cinematográficas, sendo a mais conhecida O homem da máscara de ferro (The man in the iron mask. Dir. Randall Wallace, 1998).

Em todas essas histórias, onde temas e nomes são replicados em diferentes circunstâncias, o duplo e a gemelaridade compõem um cenário bastante curioso – muitas vezes sem estar ligado com alguma relação sanguínea ou amorosa. Literariamente, o doppelgänger (aquele que caminha ao lado), a síndrome de Capgras (ilusão de que o cônjuge – ou algum conhecido – foi substituído por um impostor idêntico) e o Unheimliche (conceito freudiano para o que é ou causa estranhamento) fornecem elementos para delírios ficcionais bastante interessantes, como pode ser comprovado, por exemplo, em O duplo (Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski), O homem duplicado (José Saramago), O médico e o monstro (Robert Louis Stevenson), O talentoso Ripley (Patricia Highsmith) e o conto O espelho (Machado de Assis).  

 

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

LISTAS

 

 

Entre dezembro e janeiro, as redes sociais, as revistas e os jornais publicam centenas de listas. As mais concorridas são aquelas que relacionam “os melhores do ano”: filmes, livros, músicas, shows e eventos diversos. Ao ser citado em algumas dessas listas o item recebe uma espécie de selo de qualidade e, consequentemente, aumenta o seu valor de mercado (leia-se: maior procura significa ampliar o volume de vendas).

No caso da literatura, que é o campo de observação de meu interesse, as listas surgem como um indicativo ou um parâmetro para o público leitor que, por diversas razões, não acompanha o movimento literário e quer, em algum momento, comprar (para ler ou presentear) um livro “bom”.

Independente do que significa o adjetivo “bom”, entre a intenção e a prática existem muitos interesses que se escondem pelo meio do caminho. Determinadas listas estão contaminadas por elementos estranhos ao prazer de ler. Além do gosto pessoal daquele que formula a lista, há o estímulo das editoras (que compram espaços de divulgação ou distribuem exemplares para a mídia e os influenciadores). Também existem os prêmios. Ganhar o Jabuti, o Oceanos ou o São Paulo faz com que o escritor receba o status de campeão de vendas e passe a integrar quase todas as listas que possuem “credibilidade” (seja lá o que isso for). Os autores, editores, tradutores, diagramadores, ilustradores e demais trabalhadores gráficos agradecem o reconhecimento (que nem sempre surge na hora certa, mas... antes tarde do que nunca).

É possível confiar nas listas formuladas pelos “colaboradores” das editoras? Existe algum booktuber, bookstagram e booktwitter que realmente leia os livros que cita? Entre um best-seller internacional e um romance nacional desconhecido, quem receberá o elogio? Quais livros podem integrar a lista dos dez mais? Quem dará visibilidade para as editoras pequenas, que não dispõem de verbas milionárias para publicidade e que não fazem parcerias com os “divulgadores de conteúdo literário”? Quem assinou o atestado de óbito da crítica literária?

São muitas as questões que a indústria cultural não quer responder e, se possível, jamais o fará. Isso desmontaria uma engrenagem perversa que, em certa medida, beneficia alguns setores e submete os outros aos “acidentes de percurso”. Isto é, obter alguma notoriedade em situação inesperada ou não prevista. Mas, como esses episódios são raros, ninguém se importa muito com o acaso.

Embora alguns ingênuos acreditem em neutralidade ou em isenção, o que precisa ser destacado é que cada lista implica em uma série de consequências e que cada uma delas faz parte do processo de mercantilização dos livros. Assim como as latas de massa de tomate, os livros são objetos que existem em função da compra e venda – e desta forma, sem escrúpulos ou compaixão, são tratados por aqueles que abastecem o mercado de transmissão do conhecimento.

Ao homogeneizar um padrão, um gosto, elimina-se a diversidade. O campo de ação fica reduzido aos itens que compõem a lista.  E isso, entre outras implicações, significa uma derrota para os novos (e os velhos) autores, para as editoras menores e, principalmente, para o público leitor.        

Diante da Esfinge é necessário escolher: decifrar ou ser devorado!

 

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

POEMA PARA SER LIDO EM VOZ ALTA (versão modificada)



Ruas são rios – escorrendo pelo corpo da cidade. Ruas são rios – escondendo o corpo da cidade. Ruas são movimentos, barulhos, contrastes, cigarros, memórias, trabalho, medos, cachaça, fome, café, enganos, automóveis, música. Ruas são portas, janelas e cortinas. Ruas são as distâncias que afastam o olhar. Ruas são ilusões urbanas, tribos desencontradas, emoções represadas, histórias dilaceradas, pacotes sem destino. Ruas são amigos que desaparecem sem avisar, casas demolidas, edifícios que surgem a todo instante.  Ruas são a escrita e a leitura, o sextante e a bússola, o leme e o velame, a água e o naufrágio. Ruas são prédios, marquises, calçadas, lojas e olhares. Ruas são formas de esconder a cartografia da solidão e do desejo. Ruas são as pessoas que caminham pelas ruas e as pessoas que moram nas ruas. Ruas são ausências com a consistência das cicatrizes. Ruas ambicionam superar os limites e a exclusão. Ruas são ofertas e apetites vendidos em suaves prestações mensais. Ruas são formas de brincar com mistérios insolúveis. Ruas são becos sem saída e escadarias. Ruas são bilhetes de loteria que nunca serão premiados. Ruas são mil e uma aventuras (abismo e paraíso). Ruas são mulheres, dessas que prometem o céu e o inferno, dessas que cumprem o que prometem. Ruas são homens angustiados (procuram pela felicidade e vivem com medo de encontrá-la). Ruas são rapsódias de amor, encantos reproduzidos na novela das sete. Ruas são a falta e o excesso. Ruas são equações algébricas. Ruas são o som dos passos, um ir e vir sem fim. Ruas são as astronômicas previsões astrológicas e o barulho da chuva. Ruas são vitrines, beijos de namorados, cartazes de cinema, latas de lixo. Ruas conjugam o tempo presente, o fracasso das palavras e o triunfo das imagens. Ruas são ritmos, ritos, gritos, corpos, gargantas, línguas, dentes, silêncio. Ruas, minhas e tuas.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

O QUE A GENTE NÃO FAZ PARA VENDER UM LIVRO?

 


Anúncio nas redes sociais. Título estranho, editora desconhecida (Sempiterno), autor idem. Pesquisa básica nos sites de busca pouco revelou sobre. Alguns livros, independente da qualidade, parecem destinados à escuridão total. Seja por culpa do marketing maciço das grandes editoras, seja porque a velocidade da modernidade impede que se tenha um mínimo de reflexão sobre o que merece atenção ou não.

Foi nas redes sociais, em um desses posts que parecem destinados ao rolar rápido da tela (a novidades é mais importante que o conteúdo), que o encontrei. Depois de contato básico com o escritor, compra realizada. Demorou, mas chegou. 

Li em doses homeopáticas. Um texto aqui; outro, vários dias depois. Não é literatura que demande urgências, melhor ir devagar, alguns contos/crônicas precisam ser acompanhados pelo tempo de maturação. Muitas vezes o humor está escondido nas entrelinhas.  

O livro parece ter sido escrito em celular: ausência de capitulares, frases curtas, diálogos – essa proposta oferece um dinamismo textual significativo. O projeto gráfico de Iris Gonçalves aproveitou essa característica na diagramação das páginas – valorizada pelas ilustrações de Fernanda Bienhachewski. Ficou bonito.

Salvo engano, o autor parece ter bebido na fonte surrealista, escrita automática, jorro de palavras e emoções, a técnica literária de não ter técnica literária, o texto sem compromisso de ser certinho, sem deixar pontas soltas, importante é tentar capturar o momento com palavras, mesmo sabendo o quanto isso é infrutífero, a árvore da vida oferece sabores fugidios. A Geração Beat também tem a sua parcela de culpa na elaboração textual, as braçadas fortes de quem quer nadar na contracorrente, fôlego dobrado para não se deixar levar pela força das águas.    

Não há um único personagem “certinho”, nos moldes construídos pela civilização burguesa acidental. Entre santos e pecadores, Vitor Miranda optou por histórias em que prostitutas, traficantes e marginais variados se irmanam na violência. É nas franjas dos centros urbanos (São Paulo, no caso), misturando humor ácido e amor fraturado, que o bisturi literário rasga a cidade e mostra as suas fraturas. Seria divertido se não fosse trágico – ou o contrário.

A literatura está repleta de exemplos em que a tragédia se conserta nas últimas páginas e a visão romântica dos finais felizes se estabelece. São textos equivocados, mas que agradam o público leitor.  O cotidiano se mostra diferente daquele que é retratado nos comerciais de margarina. Significativamente, é com esse estranhamento (a vida como unidade frágil, pulsante, contraditória) que Vitor Miranda quer mostrar que algumas peças do quebra-cabeça não se encaixam no jogo.

Na narrativa homônima ao título do livro, a descrição selvagem do que significa lutar para que o livro encontre os seus leitores. O tráfico emocional está tão embrenhado no cotidiano que somente o humor ácido, sarcástico, é capaz de proporcionar algum alívio à opressão. Em uma sociedade em que o dinheiro estabelece as diretrizes básicas de sobrevivência, o livro se confunde com o escritor, tudo é mercadoria, basta fixar preço. O corpo (do indivíduo, do livro) não se reconhece como valor de uso e se transforma em valor de troca.

Assim, entre tropeços e (des)graças, as narrativas de Vitor Miranda injetam um pouco de realidade na vida do leitor. Ao mesmo tempo, antídoto contra a loucura, há que se rir um pouco de tudo.