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segunda-feira, 25 de abril de 2022

PEDRO QUASE PERDEU O JOGO

 


Pedro era fanático por futebol. Adriana perdeu a conta das vezes em que foi trocada por uma pelada. Bastava os amigos acenarem com a possibilidade de uma partidinha que Pedro logo ia tirando a roupa, digo, vestia calção, meião, chuteira e camiseta. Uniformizado, se dirigia para o campinho, ali ao lado do bar e mercearia Grenal.

Para a maioria do pessoal, o futebol era mero pretexto para, depois do bate-bola, beber cerveja, enganar a fome com algum tira-gosto e atualizar a velha e batida conversa sobre conquistas amorosas. Todos tinham histórias sobre aventuras e desvarios com a mulher mais bonita do planeta. Pedro, sempre discreto nessas horas, baixava a cabeça e, entre um gole e outro de água mineral (sem gás!), esperava os ânimos serenarem. Só um assunto o interessava: futebol. Aliás, sabia tudo sobre o valoroso esporte bretão. Era conhecido como o rei das estatísticas (escalações, placares, incidentes,...). Uma enciclopédia, o rapaz!

Foi graças ao futebol que Pedro conheceu Adriana, a escolhida para ser a sua chefe de torcida. Durante o intervalo de um dos jogos do campeonato amador, embora torcessem por times diferentes, perceberam que, talvez, fosse interessante trocar flâmulas. Dito e feito. Mas, como só o é possível na vida real ou em guerra de torcidas, não foram exatamente felizes para sempre. Pedro vivia nos estádios – ora assistindo aos embates esportivos, ora estufando as redes dos times adversários. Pedro era um homem-gol. Quer dizer... Mais ou menos, porque Adriana cansou de chamar o namorado para realizar alguns amistosos. Nessas partidas o craque preferia o drible e não comparecia em campo!

O desespero da moça foi tão grande que, por sugestão de um pai de santo, sacrificou duas galinhas em uma encruzilhada. Cartomante, simpatias de são João, amarrar santo Antônio de cabeça para baixo, acompanhar novena – tudo em vão! E o namorado, lá no bar, encostado no balcão, tomando água mineral (sem gás!), o “minguinho” esticado, conversando sobre futebol. É um desperdício essa falta de treino, reclamava a moça, ansiosa por alguma goleada. Em um momento de fúria, disse para si mesma: Esse zero a zero não pode continuar.

Adriana vestiu minissaia de couro (segundo Pedro, tão bonita que parece a camisa da seleção) e, rebolando o suficiente para desequilibrar o planeta, aceitou o convite de Adalberto, o Betão da Penha, para ir ao cinema, talvez um barzinho depois, a noite é uma criança, uma tabelinha daqui, um passe milimétrico dali e, quem sabe?, poderia até acontecer uma volta olímpica pelo estádio, a torcida delirante aplaudindo o artilheiro.

Antes do crime, Adriana mostrou que era adepta de formações agressivas. Pediu para uma amiga que marcasse um gol contra: avisar Pedro que a namorada estava promovendo outro campeonato − e que, na qualidade de técnica, ela havia escalado um novo centroavante. No recado, ficou bem claro que se Pedro não melhorasse o condicionamento físico seria excluído do time. Nem no banco ficaria!

Apanhado no contrapé, o craque sentiu que o clima estava esquentando, aquela sensação horrível de levar o gol decisivo aos 48 minutos do segundo tempo. Precisava fazer alguma coisa. Quem sabe, reforçar a defesa?

Não, a tática deveria ser outra! Pelo menos foi esse o conselho que lhe deu Chico Jacaré, o seu melhor amigo, logo depois que tomou conhecimento que Pedro estava na marca do pênalti. Chico Jacaré, um ex-zagueiro do tipo “armário”, conhecido garanhão nas horas vagas, nem pensou duas vezes: mandou o perna de pau enfrentar a parada e dividir a bola; quer dizer, disputar o amor de Adriana. E, com a velha experiência dos cafajestes, recomendou um novo esquema de marcação: uma dúzia de rosas, caixa de bombons e um cartão apaixonado. Essas frescuras custam um pouco caro, mas o placar final compensa o valor do ingresso, arrematou diante do olhar do atleta, perplexo com tamanha sabedoria.

Infelizmente, a bola bateu na trave. A garota, cheia de mágoas, não quis conversa e mandou a encomenda de volta. E, para mostrar quem estava na zona de rebaixamento do campeonato, saiu, no final da tarde, de mãos dadas com o novo namorado. Na pracinha do bairro, mostrou para quem quisesse ver o espetáculo o quanto era carinhosa. O treino esquentou de tal maneira que o Betão da Penha perdeu o fôlego com tamanho potencial de jogo. E olhe que era somente a fase preliminar!

Pedro assistiu o adversário carimbar as faixas roendo as unhas. Inveja, despeito, ódio – todos os sentimentos parecidos com a derrota passaram por sua mente. Pela primeira vez na vida pediu uma dose de cachaça, lá no boteco do Antenor. O líquido desceu queimando a garganta, um estrago sem fim. Depois de três doses, ficou bêbado. Mas, ao contrário do que acontece em filme americano, não conseguiu coragem para ir até lá fora e dar uns socos na cara do canalha que lhe havia roubado a bola, ou melhor, a mulher de sua vida. Na maior cena, idêntico a torcida de time que está em último lugar na tabela da competição, não se preocupou em secar as lágrimas que afloravam pelo rosto – uma cachoeira sem fim.

Mostrando que tudo não havia passado da mais pura catimba, Adriana, ao saber do vexame, abandonou o outro e foi socorrer Pedro. Levou o paspalho para casa, providenciou banho frio, fez massagens, café forte e velou pelo seu sono. Um mês depois estavam vivendo juntos – e marcando incontáveis gols. 

segunda-feira, 18 de abril de 2022

MOSAICO NOSTALGIA

 


– Sinto falta das garrafas vazias que – para desespero de meu pai – troquei por picolé e sorvete.

– A caneca esmaltada, onde costumava beber água e/ou leite não está mais no armário da cozinha.

– Não encontro no guarda-roupa as calças de brim curinga e a japona que usava nos dias de frio. O All Star preto, a conga e o kichute sumiram no tempo e no espaço.

– Nunca mais vou rever aquela professora do primário, o primeiro anjo a povoar os meus sonhos inquietos.

– O mundo estava dividido em dois grupos: de um lado, colorados; do outro, Guarani até debaixo d’água. Passe de Pelé para Carlos Alberto, na exibição de gala no Estádio Azteca (4 x 1), em 21 de junho de 1970. Gols de Sócrates e Eder Aleixo, em diversos momentos, a televisão preto e branco (Bombril na antena interna?), os gritos de alegria.  

– As noites sem fim no Portuga’s e no Aeroclube. Os bailes de Carnaval no Clube 14 de junho, no Princesa da Serra, no Caça e Tiro.

– Capilé, groselha, gasosa, Crush – bebidas que deixaram um sabor que nunca serão recuperados.

– Não é mais possível brincar de faroeste, momento em que imitava os caubóis da matinê do Cine Tamoio, no domingo. Diamante Negro, Mentex, Pirulito Zorro e balas azedinhas eram imprescindíveis para acompanhar o filme (não todos esses doces, apenas o que fosse possível). No final da tarde, se sobrasse algum dinheiro, comprar revista em quadrinho (Batman, Super−Homem, Pato Donald).

– Plínio Luersen era o ás do volante da época. Seus adversários "comiam poeira".

– O tormento acompanhava a Emulsão Scott (óleo de fígado de bacalhau), o Biotônico Fontoura e as pílulas de vida do Dr. Ross. No armário de remédios, o Merthiolate e a pomada Minancora prometiam nunca nos abandonar.

– Qual é a diferença entre os fermentos Fleischmann e Royal – que eram comprados "na caderneta", lá na mercearia da esquina?

– O sino da Catedral, a sirene da Rádio Clube – sons a nos recordar que a vida escorre incansável pelas ruas da cidade.

 – Doce de gila, compota de pêssego, figo em calda, goiaba serrana, butiá colhido na árvore.

– Perdidos no Espaço, Família Dó Re Mi, Gunsmoke, Os Waltons, Kojak, Ilha da Fantasia, Jeannie é um Gênio, A Feiticeira, Agente 86, Thunderbirds, As Panteras, Jornada nas Estrelas, Cyborg – o homem de seis milhões de dólares, Anos Incríveis.

– Amargarei até o fim de minha vida não ter aprendido a nadar. Não sei andar de bicicleta.  Não tenho canivete (certa vez comprei um Vitorinox, que perdi em situação tola).

– Neil Armstrong pisou na lua e, diante da televisão, não acreditei. Na imaginação, esse tipo de façanha somente poderia ser protagonizado por Flash Gordon.

– Gostaria de reencontrar aquelas meninas que, nas manhãs de domingo, frequentavam a missa das dez. (Ir à missa não era questão de fé: elas iam namorar; eu, na doce ilusão de que uma delas namoraria comigo).

– Pastelão da Petisqueira. Carrinho de X do Luís (ao lado do Correio). Cervejas no Texas Burguer.

– Álbum de figurinhas, coleção de selos, cartões postais.

– Ninguém lamenta o desaparecimento do salão de sinuca do Clube 14 e do Rei do Frango. Tiveram o mesmo destino, sem choro nem vela, o Canto Jovem de A Barateira, a Magnetron, o Café Ouro, o Lanchik, o Marroquinos, o PX Lanches.

– Os irmãos mais velhos dos amigos (acima de 17 anos) dirigiam Karmann Ghia e bebiam Cuba Libre, Hi−Fi ou Porta Aberta.

– Meu avô, lá na Coxilha Rica, contava dezenas de causos de assombração – momentos em que o terror e o lúdico se confundiam. Jamais vou recuperar aquela alegria.

– O sonho de todo motorista era dirigir um Fenemê.

 – Meu pai fumava duas carteiras diárias de Continental (sem filtro).

 – Quem, nos dias de hoje, consegue aquilatar o prazer que era ler as aventuras de Winnetou e Mão de Ferro, heróis literários criados por Karl May?

– Nas festinhas, a radiola portátil tocava – sem parar − Jerry Adriani, Wanderléia, Os Mutantes e outros menos cotados pela Contigo e pela Sétimo Céu. Em outro momento, Bento Mondadori (e o seu Suco de Imaginação) disputava a atenção da cidade com os músicos que cantavam as dez mais da Califórnia da Canção. Em paralelo, os alternativos ensurdeciam o mundo com Rick Wakeman, Pink Floyd, Janis Joplin e Rolling Stones.

– Uma multidão (encostada no muro, do outro lado da rua) esperava pela saída da sessão das oito do Cine Marrocos.

 (O passado é uma ilusão bonita – principalmente quando a inventamos, quando misturamos o tempo e as situações. Somos órfãos do caminho que escolhemos trilhar).

quinta-feira, 14 de abril de 2022

NO TEMPO DOS PIQUENIQUES

 


Em um domingo qualquer de outono. Depois de vários dias de frio, chuva e demais intempéries climáticas, coloquei uma cadeira na sacada do apartamento. Repor a dose de vitamina D, ver carros deslizando pela avenida, atletas de final de semana, adolescentes empinando bicicletas, homens e mulheres passeando com os cachorros. O mundo oscilando entre a harmonia e a diversidade.

Acompanhando o sol tímido, um vento fraco e gelado  – que talvez tenha causado as lembranças. São imagens embaçadas, sem nitidez. Dois momentos distintos. Faz muito tempo. Mais de cinquenta anos. Piqueniques.

Aquele que está mais nítido na memória aconteceu em uma espécie de quermesse na Gruta de São Bom Jesus (Bairro Ipiranga). Não recordo se tinha toalha xadrez, formigas, galinha com farofa, garrafas de cerveja, algum refrigerante para as crianças, esse conjunto de clichês que caracterizam a bagunça. Será que alguém estava vendendo rifas de bolos e/ou de churrascos? Barracas com jogos de argolas, tiro ao alvo e roleta estavam estrategicamente dispostas ao redor do santuário? Também não sei se houve missa ou algum tipo de cerimônia religiosa. Alguém soltou fogos de artifício? São muitas as dúvidas e poucas as respostas que as recordações oferecem. O que lembro é mais trivial: minha mãe, sentada no gramado, gritando com os filhos, não faça isso, não faça aquilo, essas crianças vão me deixar louca!  

O outro episódio ocorreu no Guará, na região da ponte que leva para a estrada de Morrinhos. Naquele tempo, era possível pescar no rio Caveiras. Fui até a margem, junto com alguns homens. Mas não fiquei lá muito tempo. Como estava atrapalhando, fazendo perguntas e barulho, meu pai me levou de volta para o lugar onde estavam as mulheres e as outras crianças. Por mais esforço que faça, não consigo recordar quem estava presente nessa ocasião. Além da minha família, provavelmente tios, primos, alguns amigos dos adultos. É possível que tenha garoado no meio da tarde.

Na infância, território que percorremos com saudade, nunca é possível afirmar que aconteceu aquilo que imaginamos ter vivenciado. As pessoas que poderiam confirmar se esses fatos são reais ou inventados estão, como naqueles versos do Manuel Bandeira, dormindo profundamente.

Em tempos distantes, a cada minuto mais distantes, os piqueniques eram formas de celebrar os laços de amizade, viver em comunhão e se divertir. Em alguns casos, serviam de ponto de partida para diversas aventuras, inclusive as amorosas.

A vida moderna perdeu o interesse pelos piqueniques. Estou enganado? Acredito que até as escolas deixaram de promover esse tipo de encontros. Com a multiplicação das atividades sociais e culturais, geradas pelo mundo virtual, a ausência de áreas públicas propícias à atividade e a insegurança de algumas regiões da cidade, poucas pessoas saem de casa para fazer algum tipo de refeição ao ar livre – a exceção fica por conta daqueles que pregam a comunhão com a natureza, hippies tardios.

Qual foi a consequência do recordar desses acontecimentos tão distantes? Com o prato no colo, almocei na sacada. Não foi um piquenique, mas fiz de conta que era.

domingo, 3 de abril de 2022

DICIONÁRIO DO PLANALTO SERRANO

 


Recentemente, em conversa de trabalho, alguém usou a expressão: tô te escorando! Escorando? Essa palavra, com o significado de enfrentar, se opor, praticamente deixou de existir no vocabulário regional. Na mesma semana foi possível ouvir, em comentário sobre algum tipo de conflito familiar, que a esposa queria guelar o marido.

As duas situações acenam para uma particularidade: os habitantes do Planalto Serrano, em algum momento, utilizavam um dialeto quase incompreensível para o restante do estado de Santa Catarina. Quase não utilizam mais. Ou melhor, raramente usam de alguns termos que não correspondem à cultura letrada, essa que a modernidade quer impor como um padrão de uniformidade e de dominação.

Ao longo do tempo, a linguagem coloquial (influenciada por um mundo rico em significados e alusões muito particulares – história, geografia, economia, história e influências temporais) sofreu um processo de transformação que separou algumas coisas e impediu a visibilidade de outras. O aumento da complexidade do tecido social (principalmente nas relações urbanas) reprimiu os ruídos produzidos pela linguagem popular nas áreas fonéticas, morfológicas, sintáticas e lexicais. Ou seja, domesticaram as diferenças sociolinguísticas. Com isso, o universo vocabular regional sofreu um processo de apagamento e quase foi extinto.

A língua falada, descrita, observada e a analisada em situações reais de uso, foi encaixotada pela norma culta, ou seja, pela gramática. Os principais fatores que contribuíram para essas mudanças são o aumento do nível de escolaridade da população, influências da televisão e da Internet e o preconceito linguístico (não necessariamente nesta ordem). Expressar o pensamento de forma diferente da normatização se tornou motivo para reprimendas ou piadas. Em outras palavras, a linguagem oral foi sendo – lentamente – tiranizada pelo ordenamento gramatical, que não admite grafia ou prosódia diferente daquela que está autorizada pelo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP).

A organização de um pequeno dicionário com algumas das expressões usadas pelos habitantes do Planalto Serrano constitui uma tentativa de conter o processo de soterramento linguístico. Nada muito complicado ou acadêmico, mas que seja versátil o suficiente para abranger e explicar as raízes da linguagem que antecedeu à organização da vida contemporânea e que é (ou foi) uma das características dos habitantes do Continente das Lagens (como diria Licurgo Costa).

Assim, expressões como bombiar, jaguara, djaoje, tresantonte, omi-du-céu, malemá, divereda, incarangado, desacorçoado, encuerado, sumanta, minhazarma, incanzinado, liviano, divardi, picá a mula, de sartá us butiá du borço, entre outras, não se perderiam na selva da linguagem asséptica das padronizações, tampouco deixariam de existir nos mecanismos de comunicação entre os indivíduos. 

Mas, é preciso ressaltar que esse tipo de projeto não deve ser visualizado como reserva de mercado, culto ao passado ou ao folclore. Também não se trata de uma reação ao processo de cooptação linguística promovido pela cultura estadunidense, que está substituindo palavras e conceitos por expressões alienígenas à história sociolinguística do Brasil. Ao contrário, trata-se uma proposta de inclusão, de multiplicar as possibilidades de comunicação social, de permitir que a criatividade seja mais forte do que o engessamento linguístico.

Iniciativas similares (catalogar os dialetos regionais) foram realizadas – com sucesso – em Porto Alegre, Florianópolis e em quase todas as capitais do Nordeste.

Está na hora de recuperar o vocabulário do Planalto Catarinense. Um dicionário específico talvez ajude.