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quarta-feira, 28 de junho de 2023

O DICIONÁRIO GREGO-PORTUGUÊS

 

Destroços de uma livraria, depois de um ataque aéreo. Londres, 1940. 


Não tenho certeza, mas não devo ter visitado mais de três vezes a livraria paulista que fechou recentemente. Isso é fácil de explicar, moro no interior de Santa Catarina e só vou a São Paulo em ocasiões especiais. Em compensação, estive na filial de Brasília duas vezes. Somando tudo, não é muito. Ou melhor, não é o suficiente.

Olho para as estantes do escritório e tento adivinhar quais livros comprei lá. Não foram muitos. Talvez uns três ou quatro de teoria literária – provavelmente nenhum romance. Nos início dos anos 2000 era difícil (para mim) encontrar aqueles calhamaços que dissecam os livros que li em anos anteriores e que fornecem (muitas) informações sobre a carpintaria ficcional. Minha formação literária sempre privilegiou o amor de jardineiro – só depois, muito depois, quando resolvi estudar teoria, é que cultivei o amor de botânico (o sujeito que esquarteja o texto e, sem desfrutar do sabor, acredita que o saber está em colocar rótulos).

Lembrar da livraria (dessa livraria) significa confessar um arrependimento. Enquanto estava caminhando entre as estantes, vi um dicionário grego-português. Edição em capa dura, diagramação profissional, papel de boa qualidade. Folheei o livro, conferi o preço e desisti. Era muito caro. O meu maior problema bibliográfico sempre foi o saldo bancário. Quer dizer, a ausência de saldo bancário. Em vários momentos da vida tive que abrir mão da compra de alguns livros porque as relações econômicas eram incompatíveis com o objeto do desejo. Faltou-me um pai milionário.

O mais importante nessa questão está expresso em uma pergunta básica. Com dificuldades de me expressar em português (nem vale mencionar o inglês horrível e o portunhol selvagem), o que é que eu faria com um dicionário de grego? Nem mesmo a desculpa de estudar filologia seria suficiente para justificar a loucura de comprar um livro que meio mundo classificaria como sem importância para o dia a dia. Provavelmente sua serventia seria – apenas – preencher um vazio na estante. E lá ficaria, belo e intocado. Ou, em versão mais prática, seria promovido a objeto de decoração – no estilo daqueles table books que embelezam as salas burguesas.

Então, sem opção, fui embora. É esse o arrependimento. Olhando para o mar de papel que está emparedado no meu escritório, não encontro o dicionário grego-português. Sou tomado pela ausência do livro que tive nas mãos e que abandonei. Se não fosse uma bobagem sentimentalóide, diria que falta um pedaço de mim.

A livraria deixou de existir – não sei se para sempre. É provável que sim, a incompetência administrativa conduziu o empreendimento a essa situação lamentável. Mesmo que, em algum momento, aconteça o milagre da ressurreição, é necessário estar ciente de que não voltarei a caminhar entre aquelas estantes, não verei as lombadas e as capas dos livros que não quero ler.

Na tentativa de oferecer algum lenitivo, alguém poderia – cheio de boas intenções – recomendar calma. Afinal, existem outras empresas que comercializam livros no Brasil e no mundo (e provavelmente melhores). Terei de concordar. E seguir em frente. Mas, em alguns momentos, será difícil conseguir controlar as lembranças; o coração estará envolto em saudades do dicionário grego-português e da livraria que desapareceu.



 

P.S: Se me detenho em lamentar o encerramento das atividades da livraria famosa, não o faço esquecendo que testemunhei outras perdas (A Sua Livraria e a Livraria Serrana são exemplos na minha região). As livrarias de rua, principalmente no interior do país, foram soterradas pelo e-comerce. Ficou difícil competir com o mercado virtual, que oferece descontos, frete grátis e outras vantagens. Sem poder de reação, nada mais resta senão fechar as portas. Paralelamente, o número de leitores de livros físicos também diminuiu – ou migrou para outras plataformas de leitura (e-books).

Apesar da paisagem se mostrar devastada, resistir é preciso – precioso.                


quarta-feira, 21 de junho de 2023

SRTA. AUSTEN

 


Algumas figuras literárias são quase unânimes. Jane Austen (1775 - 1817) pode ser apontada como um desses fenômenos. Os seis romances (uma novela, Lady Susan, e diversos textos esparsos) que escreveu continuam sendo lidos e aplaudidos – independente da idade, do grau de instrução ou da situação econômica do leitor. Além disso, a vida pessoal da escritora propõe mistérios que desafiam biógrafos e estudiosos. Milhares de páginas (ficção, biografias, ensaios e autoajuda) continuam a ser publicadas sobre temas significativos (embora pouco transparentes) como o estranho noivado (que durou menos que um dia), o desaparecimento de parte da epistolografia ativa e passiva, o processo criativo literário, as relações familiares, etc.

O romance Srta. Austen (Editora Record, 2023) se concentra em uma figura que costuma ficar nas sombras no universo proposto por Jane Austen: Cassandra (Cassy, Cass) Elizabeth Austen (1773 – 1845), a única irmã no total de oito filhos do casal George Austen e Cassandra Leigh. Oscilando entre acontecimentos ocorridos em 1795, 1796, 1801, 1802, 1805, 1806, mas concentrada principalmente nos de 1840, a narrativa procura, de maneira ficcional, abordar algumas questões importantes sobre a família Austen.

Em 1840, Cassandra vai visitar Isabella Fowler, em Kintbury, Berkshire. Quer encontrar as cartas trocadas entre Jane Austen e Eliza Lloyd (mãe de Isabella). Isso não se apresenta como dificuldade. No entanto, ao ler o conteúdo desses escritos, a memória de Cassandra (57 anos na época) vai recuperando alguns fatos do passado – longínquo, embora presente na memória. Esse conjunto de lembranças mostra as crises depressivas de Jane, as dificuldades financeiras da família (depois da morte do pároco anglicano George Austen), as constantes mudanças de domicílio e a opção das duas irmãs pelo celibato – uma decisão muito difícil em um mundo onde as mulheres eram desprovidas de quaisquer garantias financeiras que não viessem do marido.

Cassandra decide censurar toda e qualquer menção ao que considera segredos familiares. Ou seja, destrói as cartas que poderiam servir para modificar a imagem da escritora talentosa e que se dedicou incansavelmente para construir um projeto literário (mas que só foi reconhecido tardiamente).

Em paralelo com situação similar que viveu no passado, Cassandra procura ajudar Isabella (que ficou em dificuldades econômicas depois da morte de seu pai, o reverendo Fulwar Fowlen). Ou seja, inicia conversações para que ela vá morar com as outras irmãs (Elizabeth e Mary-Jane). Evidentemente, esse arranjo (que lembra um pouco as tramas dos romances de Jane Austen) se mostra complicado; ou melhor, um imenso engano – inclusive porque existem incompatibilidades entre as irmãs. A solução somente aparece nas últimas páginas (graças aos esforços da criada bisbilhoteira, Dinah, a personagem mais engraçado do livro).

Srta. Austen empilha nova camada de admiração na mitologia de uma das mais importantes escritoras de língua inglesa. No entanto, apesar de bem construído tecnicamente e de usar uma linguagem fluída, o livro não acrescenta qualquer novidade para aqueles que conhecem a literatura (e a vida) de Jane Austen.

 

ALGUNS LIVROS SOBRE A LITERATURA E A VIDA DE JANE AUSTEN

Romances

– Austerlândia, de Shannon Hale (Rio de Janeiro: Rocco, 2014);

– As Sombras de Longbourn, de Jo Baker (São Paulo: Companhia das Letras, 2014);

– O Clube de Leitura de Jane Austen, de Karen Joy Fowler (Rio de Janeiro: Rocco, 2017);

– A Fraternidade Jane Austen, de Natalie Jenner (São Paulo: Universo dos Livros, 2020). 

Biografia

– A verdadeira Jane Austen – uma biografia íntima, de Paula Byrne (Porto Alegre, L&PM, 2018)

Técnicas literárias

– Aprendi com Jane Austen, de William Deresiewicz (Rio de Janeiro: Rocco, 2011);

– O Clube de Escrita de Jane Austen, de Rebecca Smith (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2017).


quinta-feira, 8 de junho de 2023

ME CHAMA DE CASSANDRA



As palavras caindo como ameixas excessivamente maduras produzem um sabor amargo na história do soldado Raul Iriarte, personagem do romance cubano Me chama de Cassandra (Biblioteca Azul, 2023). Com tons de tragédia grega, mas com tempero caribenho e africano, o mundo em que o protagonista/narrador se movimenta vai se diluindo em sangue, lágrimas, sexo e morte. Em terras angolanas, lutando em uma guerra que não lhe pertence, entre tiros de metralhadora e disparos de morteiro, emulando a sacerdotisa do templo de Apolo, Raulzito, o Sem Ossos (e que gostaria de ser chamado de Cassandra, a filha de Príamo e Hécuba) consegue visualizar o futuro – mas ninguém acredita em suas previsões.

O dom do presságio estabelece uma carga muito pesada nos ombros de Raul Iriarte. Ver antecipadamente as calamidades que acontecerão com aqueles que lhe estão próximos causa angústia (em alguns momentos). Mas, sabendo que ninguém consegue mudar o destino, guarda para si as visões que surgem diante de seus olhos a cada instante: o redemoinho dos mortos como nuvens escuras de tempestade acima de nós.

Muitos dos soldados cubanos que foram ajudar na guerra civil de Angola (1975 – 2002) não conseguiram voltar para casa (estima-se em cerca de 10.000 mortos). Pelo ideal socialista, o sangue caribenho espalhou-se por uma infinidade de lugares (ruas das cidades, florestas). Encarregado de escrever os relatórios e as cartas que comunicam a morte dos soldados de seu batalhão, Raul Iriarte sofre por Cuba estar muito distante, muito mais longe de que a península grega está de Ílion. No entanto, a guerra em Angola, local do conflito político, não passa de uma moldura. A batalha mais árdua ocorre em outra esfera – o mundo onírico da mitologia grega.

Simultaneamente, Raul Iriarte aproveita a possibilidade do relato literário e, num vaivém temporal (desprezando as diferenças entre o passado, o presente e o futuro), relaciona alguns dos acontecimentos que foram marcantes em sua vida: o mundo familiar, a descoberta da identidade sexual (e de gênero), o alistamento militar, a violência que nutre os homens frágeis  e que ele precisa aguentar com resignação. 

Como se isso não fosse suficiente, as Erínias (Tisifone, o castigo; Megera, o rancor; e Alecto, o inominável) clamam por novos corpos. Avisaram-lhe que o seu tempo de vida é curto e que a viagem de retorno para dentro das muralhas de Ílion está próxima: Caronte (o barqueiro de Hades) iniciou uma nova travessia do rio Estige. E a sua chegada não vai demorar.

Raul Iriarte, aquele que foi amaldiçoado pelos deuses (gregos e africanos), com sua passividade diante dos acontecimentos, com uma cultura literária absolutamente inútil, caracteriza o deslocamento, o estranhamento, a perda e o exílio – ele sempre está em lugar errado. E o que escreve, construído com a linguagem da poesia que distingue aqueles que estão à margem do mundo estruturado pelo poder, irradia a pátina inconfundível de tristeza. Somente a estrutura mitológica de Homero, principalmente no episódio em que os aqueus estão sitiando Ílion, consegue fornecer algum anestésico a uma vida destinada a ser destruída pela barbárie.

Em Me chama de Cassandra, a miséria do mundo real, inscrita no corpo literário, reflete a dor que aflige o corpo físico.