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segunda-feira, 28 de março de 2022

CENTENAS DE GIBIS (texto modificado)

 


Eu tinha nove ou dez anos. Meu irmão, cinco ou seis. Em razão de um acontecimento inesperado, no final dos anos 60, decidiram que nós dois deveríamos dormir na casa do patrão do pai. Os dois meninos – que nunca tinham se separado da família – estavam naquela idade que acolhe qualquer fuga da opressão doméstica com rapidez.

Não aconteceu nada de excepcional – de modo geral. Lá pelas sete horas da noite, nos deram comida e nos mandaram dormir. No quarto, encontrei uma pilha de gibis. Não eram cinco ou quinze. Nada disso. Na compreensão do mundo que eu tinha naquele instante a quantidade era inimaginável. Mais de trezentos. Muito mais. Tio Patinhas, Donald, Mickey, Batman, Super-Homem, Homem-Aranha, Popeye, Sobrinhos do Capitão, Luluzinha, Zorro, Fantasma, Flash Gordon, Capitão América, Tarzan, Recruta Zero, e várias revistas do meu personagem Disney favorito: Peninha.

Fiquei assustado. Nunca tinha visto tantos gibis em um único lugar. Nem na banca de revistas a variedade era tão grande. Na nossa família, classe média baixa, quatro filhos, nunca sobrava dinheiro para esse tipo de entretenimento. Em períodos de fartura, podia-se, no máximo, ir ao cinema – e não era toda semana. O usual era trocar as poucas revistas em quadrinhos que tínhamos por outras ou emprestar dos amigos. Mas essa segunda hipótese sempre se mostrava problemática, em algum instante a cobrança aparecia e nunca estava revestida de alegria. 

Meu irmão, cansado, dormiu rapidamente. Eu, ao contrário, estava desperto. Com medo de mexer no que não me pertencia, fiquei olhando para aquela montanha de diversão o durante muito tempo, quase uma eternidade. Depois de muito relutar, venci a timidez, sai do quarto e, diante do primeiro adulto que encontrei, pedi permissão para ler uma ou outra daquelas revistas. Expliquei que estava sem sono e que talvez assim conseguisse dormir mais fácil.

Fique à vontade, foi o que ouvi. Voltei ao quarto e... Quase passei a noite em claro! Queria aproveitar ao máximo aquela oportunidade mágica. Li todos os gibis que me foi possível. Não lembro quais, nem quantos. Cada um mais interessante do que o outro.

Em algum momento, o sono venceu a luta. Dormi com a luz acessa – que talvez alguém tenha apagado durante a noite. Quando nos acordaram, lá pelas oito da manhã, um dos gibis ainda estava preso na minha mão.

Tive vontade de chorar. Não me importei em ter que voltar para casa. Naquele tempo, já tinha consciência de que a família é uma cicatriz com que temos que conviver. O que me entristeceu foi não poder levar comigo as revistas em quadrinhos.

Foi uma experiência única. Nunca mais voltamos àquela casa.


segunda-feira, 21 de março de 2022

LUIZ ALFREDO RIBEIRO (1944 - 2022)

 


Luiz Alfredo Ribeiro cultivava as conversas espichadas, dessas que, na medida em acrescentam detalhes e situações pitorescas, se afastam – perigosamente – do assunto principal. Quando parecia que não havia mais possibilidade de retorno, como todo ficcionista de talento, ele reencontrava o fio da meada e concluía o causo de forma impecável. Mais do que contar centenas de histórias bem-humoradas, ele fazia desse exercício uma brincadeira pessoal.

Sou o advogado dos pobres, dos traficantes pés de chinelo, dos ladrões de galinha, dizia entre risadas, sem se importar com os colegas engravatados e cheios de pose. Não sei se isso era (toda a) verdade, o que importa é que ele não gastava latim nas páginas das petições, tampouco esgrimia os códigos jurídicos diante dos juízes. A forma com que tratava o trabalho e aqueles que procuram por ajuda era a menos formal possível. Muitas vezes era com uma piada ou com gestos inesperados que conseguia obter resultados favoráveis aos seus clientes.

Tenho lembranças de sua presença nos extintos Lanchik, Café Ouro e Marroquinhos, muitas vezes na companhia dos advogados emblemáticos da época (Cid Couto, Luiz Valente, Rogério Castro, Herasmo Furtado, Max de Azevedo Coutinho,...). Frequentava A Sua Livraria, onde ia beber chimarrão, contar alguma anedota ou saber das novidades. Na famosa “reinauguração do sofá” do João Rath (14 de agosto de 1999) foi o responsável pelo foguetório, tarefa que cumpriu com o sorriso de criança que estava “fazendo arte”. 

Recentemente (mais ou menos) o encontrei várias vezes. Antes da pandemia, fui tomar café com Nereu Pereira de Lima no também desaparecido Pão de Pedro (Av. Belizário Ramos). Luiz Alfredo estava saindo do Fórum. Fomos caminhando até o cruzamento da Av. Presidente Vargas. Nesse percurso, menos de 300 metros, ele nos contou um das passagens que protagonizou no tempo em que morou em Imperatriz (Maranhão). Com perfeito domínio da arte narrativa, desenvolveu uma história hilariante, repleta de personagens caricatos, um padre ligado à Pastoral da Terra, uma mulher sem-terra (talvez amante do padre), o proprietário rural que invadiu terras devolutas e o sistema judiciário inerte. O relato, composto por passagens muito engraçadas, tinha reviravoltas quase inacreditáveis e uma riqueza de detalhes surpreendente. Obviamente, não revelei para ele que já tinha ouvido esse episódio em outra oportunidade, em versão ligeiramente diferente.

Em duas oportunidades, nos últimos meses, frequentamos a mesma fila do caixa do supermercado. Nessas ocasiões ele repetiu a pergunta sobre a idade do meu filho e criticou a edição artesanal de um dos livros que publiquei (dizia ter um exemplar). Na primeira vez, sem esperar pela resposta, emendou a conversa citando momentos de sua vida de causídico (como gostava de se autodenominar) no Tribunal de Justiça em Florianópolis. Na outra (a pouco mais de um mês), enquanto pagava pelas compras, dizendo duas ou três piadas para o atendente (que parecia não entender o que estava escutando), em tom menos alegre, encerrou o encontro me dizendo que estava organizando um álbum de fotografias. Queria deixar para os netos um conjunto de lembranças que transcendesse o tempo. Ou melhor, que não fosse apagado pelo futuro.        

A vida – para Luiz Alfredo – era um imenso parque de diversões. E ele sempre estava extraindo o máximo dessa aventura. Sentiremos falta de seu humor estranho, subversivo.



domingo, 20 de março de 2022

UMA AVENTURA COM CLÊNIO SOUZA (texto modificado)

 


No início dos anos oitenta do século passado, éramos jovens e vivíamos como se não houvesse amanhã.

Clênio Souza, excelente artista plástico, era professor de desenho na Escola de Artes Eluza Bianchini (localizada em um casarão na Rua Correia Pinto). Sua namorada da época era tão temperamental quanto ele. Brigavam frequentemente. Conflitos homéricos. Daqueles cheios de gritos, copos espatifados na parede e vizinhos se controlando para não chamar a polícia. No último round dessa série de batalhas não houve agressões físicas. Apenas cicatrizes emocionais. Dolorosas. Dessas que precisam ser carregadas pelo resto da vida. Discutiram sobre alguma bobagem e, para surpresa de todos, inclusive deles mesmos, resolveram se separar. Para sempre.

Nessa época eu estava estudando no período noturno. Colégio Diocesano, último ano do segundo grau. Vivia mais na rua do que em sala de aula. Bebia mais cerveja do que estudava.  Em uma dessas escapadas, provavelmente alguma aula chata, encontrei Jonas Malinverni. Ele estava assustado. Queria ajuda para encontrar Clênio. E me disse:

− Ele saiu lá da escola muito angustiado, disse que a vida não tinha mais sentido. Acho que ele está pensando em suicídio!

Não tive outra opção senão rir.  Não lembro direito. Mas a chance de ter deixado escapar uma risada é grande. Puro nervosismo. Não imaginava que alguém pudesse cometer esse tipo de desatino aos vinte e poucos anos.

Entre voltar para a aula e procura pelo desaparecido, o que escolher? Entramos no boteco mais próximo e pedimos uma cerveja. Depois de ter pensado nessa intrigante encruzilhada uns dez segundos, talvez menos, resolvi acompanhar Jonas. Estivemos em todas as espeluncas que conhecíamos. E nada. O cara tinha desaparecido.

A última tentativa de localizar o fugitivo foi em um bar suspeito, mentira, confirmado antro de encontros furtivos e comércio sexual chamado Cisne Branco (Rua Coronel Córdova). E isso nos mostrou como a vida é irônica: ficava muito perto do colégio em que eu estudava!

O ambiente (escuro, fumacento) era constituído por um corredor. As mesas encostadas na parede (nos dois lados) eram separadas por biombos, que garantiam a privacidade. As funcionárias eram gentis e generosas – sempre dispostas a acompanhar algum solitário no meio da noite. Naquele estabelecimento só trabalhavam mulheres, vigiadas pelo dono, que ficava lá no fundo, controlando tudo. Para ser atendido, o cliente precisava acionar uma espécie de interruptor na parede, uma luz se acendia acima da mesa, chamando a garçonete.

Foi nesse inferninho que encontramos Clênio Souza. Desmaiado. O rosto enfiado em um prato. Um prato cheio de macarrão à bolonhesa. Erguemos a sua cabeça, na tentativa de salvá−lo do ridículo. Tudo o que conseguimos foi sujar as mãos de molho. Nojento. Mas, fazer o quê? Amigos são assim mesmo, encrencas que precisamos aceitar como se fossem brinquedos.

Depois de muito esforço, foi possível arrastá−lo até o banheiro, onde providenciamos uma faxina básica no descornado, digo, no desacordado artista plástico. Também limpamos os seus bolsos, para ver se ele tinha dinheiro suficiente para pagar a conta. Tinha. Felizmente. O arrastamos de volta à mesa, pedimos outra cerveja, por conta da vítima, e começamos a discutir sobre o que fazer.


Ao saber que ele estava morando com a irmã, lá na Vila Comboni, que é quase no fim do mundo, sugeri o óbvio: táxi. Lendário pão−duro, Jonas discordou. Disse que não tinha dinheiro. Quem não tinha dinheiro era eu, desempregado naquela época. Foi o que disse para ele, da forma mais inteligível possível. Não o convenci. Então, qual era a alternativa? Carregar o sujeito como se fosse um saco de batatas? Foi essa a proposta. Foi o que fizemos. Protestei muito − apenas para constar, porque não adiantou nada.

Abraçado em nós, um de cada lado, a vítima foi arrastada pelas ruas frias da cidade gelada. Minha proposta era fazer umas cinquenta paradas. De preferência em cinquenta botecos. Mais uma vez, fui voto vencido. Inclusive porque Clênio estava retomando a consciência. E, com aquela voz enrolada de ébrio, disse que queria voltar para casa o mais rápido possível, não estava se sentindo bem. No meio desse discurso, vomitou. Várias vezes.

Escolhemos o caminho mais rápido, não o mais fácil. Subir pela escadaria do Morro do Posto não foi inteligente. Primeiro, era íngreme. Segundo, a chance de ser assaltado era de cem por cento. Terceiro, havia a ameaça latente de encontrar a polícia no caminho – e talvez fosse mais seguro ser assaltado. Dizem que Deus protege os bêbados e as criancinhas. Dizem. Não sei qual era a nossa categoria. De qualquer maneira, foi com grande surpresa que conseguimos chegar ao destino de entrega sem o mínimo problema.

Próximos da casa de madeira, onde morava a irmã de Clênio, encontramos dois pequenos obstáculos: vários cachorros e uma valeta, que só podia ser transposta através de uma pequena ponte, dessas que são feitas com tábuas soltas, basta pisar em ponto que rompa o equilíbrio e a queda na água suja é garantida.

A solução foi gritar por ajuda, ou seja, acordar os parentes do artista. Surpreendentemente, nenhum vizinho abriu a janela, querendo tomar satisfação daquela algazarra. Uma lâmpada foi acesa dentro da casa. Instantes depois, alguém abriu a porta e perguntou o que queríamos. Apontando para o pinguço, contamos a história. Provavelmente cansada de ver a pantomima sem graça que o irmão protagonizava com frequência, recebemos permissão para se aproximar. Felizmente, os efeitos do porre estavam passando e Clênio conseguiu (sozinho) atravessar a ponte de tábuas – amparado provavelmente cairia naquele esgoto.

Na porta da casa, pedimos desculpas à mulher por tê−la acordado, deixamos a figurinha carimbada entrar e fomos embora – rapidamente. Só respiramos aliviados quando nos afastamos dos cachorros, que pareciam ansiosos para tirar pedaços de nossas pernas.

A volta foi tranquila, a aragem da noite abençoando a nossa insensatez. No centro da cidade, me separei de Jonas. Continuei caminhando um pouco mais. Na época, eu morava ali perto do Pronto Socorro. Em casa, abri a geladeira e outra cerveja. Depois dormi umas dez horas.

Só voltei a ver Clênio Souza uma semana depois. Ele parecia não se lembrar de nada.

terça-feira, 15 de março de 2022

O CASO DA LAREIRA

 


Durante muito tempo a principal rota de comércio entre o Rio Grande do Sul e São Paulo passava pelo Planalto Catarinense. Isso talvez explique porque, por motivos variados, muitos viajantes se fixaram na região. Alguns desses personagens eram, na falta de expressão mais apropriada, diferenciados.  

O médico e engenheiro Reuben Cleary escolheu o Brasil como local de residência após a derrota das tropas do General Robert Edward Lee, na Guerra de Secessão estadunidense (1861-1865). Não foi um caso isolado. Centenas de ex-soldados confederados, descontentes com o resultado do conflito, imigraram para a América do Sul. Uma parte significativa se estabeleceu no interior da (então) província de São Paulo – principalmente na região onde está localizada a cidade de Americana.

Quando chegou em Lages, em 1869, depois de rápida temporada no Rio Grande do Sul, Reuben Cleary começou a clinicar e, em seguida, se casou com Guilhermina Schmidt. Durante cerca de 20 anos exerceu a medicina e a engenharia na região (o primeiro projeto do Mercado Público é de sua autoria). Esse período de sua vida está registrado em um manuscrito de 200 páginas, Brazil Under Monarchy, que pode ser encontrado na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos. Em um dos capítulos do texto ele faz algumas considerações sobre o período em que residiu na cidade (mas, como todos os outros viajantes que escreveram sobre Lages, são raros os elogios).

Em determinado trecho da narrativa, Cleary comenta sobre o desconforto causado pelo frio bastante severo. Além da precariedade das casas de madeira, entendia que era inconcebível a inexistência de lareiras. Ao constatar a impossibilidade de trabalhar no consultório/escritório durante o inverno, resolveu mandar instalar uma.

Esforço em vão. Os pedreiros não conseguiam executar o que estava sendo requerido. O nível de desentendimento entre as partes era de tal ordem que parecia que ele estava pedindo para construírem uma das pirâmides do Egito ou algum outro monumento colossal. A cada momento surgiam dificuldades, obstáculos a ser transpostos, material que sumia.

No limite da tolerância, ou melhor, sem paciência, Cleary decidiu construir a lareira (com chaminé) pelas próprias mãos. Ou quase isso, porque deve ter tido algum tipo de ajuda, mas sempre de forma precária.

O resultado dessa aventura é que a sua família desfrutou do aquecimento que era inacessível aos demais moradores da cidade. Mesmo assim, o projeto foi considerado coisa excêntrica, uma anomalia que desperdiçava tempo e dinheiro com algo tão estranho aos costumes regionais.

Por motivo não identificado, Cleary precisou se mudar. No verão, a casa foi ocupada pelo juiz do distrito – que, sem nenhum constrangimento, mandou destruir a lareira. Alegou que não precisava daquilo e que o espaço poderia ser ocupado com algo mais importante.

No inverno seguinte, mais rigoroso que o anterior, o juiz foi obrigado a se esquentar precariamente. Nas palavras de Cleary, sentando-se perto de um recipiente com carvão de lenha ardendo, embrulhado em seu poncho e inalando o ar com gás carbônico.




P.S.: A história da cidade reviveu episódio similar quando um empresário mandou instalar calefação central em sua casa nos anos 70 (talvez 80) do século XX. Não faltaram detratores a dizer que ele era um esbanjador e que esse tipo de conforto não condizia com a realidade brasileira (e lageana).

sábado, 12 de março de 2022

CINQUENTA E CINCO AFORISMOS DE NASSIM NICHOLAS TALEB

 


– É uma maldição ter ideias que as pessoas entendem apenas quando já é tarde demais.

– Escrever é a arte de se repetir sem que ninguém perceba.

– É uma boa prática sempre pedir desculpas, exceto quando se fez algo errado.

– A diferença entre tecnologia e escravidão é que os escravos têm plena consciência de que não são livres.

– Você precisa se lembrar constantemente do óbvio: o encanto está no não dito, no não escrito e no não sabido. Controlar o silêncio requer maestria.

– As pessoas revelam muito mais sobre si mesmas quando mentem do que quando dizem a verdade.

– Por prazer, leia um capítulo de Nabokov. Como castigo, dois.

– Pergunto-me se um inimigo ficaria com ciúmes se descobrisse que eu odeio outra pessoa.

– Algumas pessoas só têm graça quando tentam ser sérias.

– Alguém da sua classe social que fica pobre afeta você mais do que milhares de pessoas famintas de outras classes.

– Virtude é quando a renda que você deseja mostrar à Receita Federal excede a que você deseja mostrar ao seu vizinho.

– Evite chamar de heróis aqueles que não tinham outra escolha.

– No caso de doenças terminais, a natureza permite que você morra com um sofrimento abreviado; a medicina permite que você sofra com uma morte prolongada.  

– Generosidade pura é ajudar um ingrato. Todas as outras formas são interesseiras.

Nunca confio em um homem que não tem inimigo.

– Desconfio que mataram Sócrates porque há algo de terrivelmente desagradável, repulsivo e inumano em pensar com extrema clareza.

– A mente curiosa abraça a ciência; os talentosos e sensíveis adotam as artes; as pessoas com espírito prático, os negócios; o resto vira economista.

– Falar mal de alguém é a única expressão de admiração genuína, jamais fingida.

– Para saber o quanto uma pessoa é desinteressante, basta lhe perguntar quem ela acha interessante.

– Se você mentir para mim, continue mentindo; não me machuque dizendo, repentinamente, a verdade.

– A respeito de qualquer assunto, se você acha que não sabe o suficiente, não sabe o suficiente.

– O mercado de ações, em resumo: os participantes esperam calmamente na fila para serem abatidos no matadouro, pensando que é para um espetáculo da Broadway.

– Nunca prive uma pessoa de uma ilusão, a menos que você possa substituí-la por outra ilusão.

– Boa parte do que chamam de humildade é arrogância extremamente bem disfarçada.

– Se somos os únicos animais com senso de justiça, claramente é porque também somos os únicos animais com senso de crueldade.

 – Em 25 séculos, não surgiu nenhum ser humano com genialidade, profundidade elegância, inteligência e imaginação para rivalizar com Platão – e para nos proteger dele.

– Precisamos nos sentir um pouco perdidos em algum lugar, física ou intelectualmente, pelo menos uma vez por dia.

– Outro sinal característico dos charlatões: eles não expressam opiniões que possam causar problemas.  

– Quando usado com habilidade, um elogio será muito mais ofensivo do que qualquer forma de depreciação.

– Para a maioria das pessoas, o sucesso é a passagem nociva do campo do odiar para o campo do ser odiado.  

– Karl Marx, um visionário, descobriu que se pode controlar melhor um escravo convencendo-o de que ele é um empregado.

– Você será civilizado no dia em que puder passar um longo período sem fazer nada, sem aprender, sem melhorar nada e sem sentir um pingo de culpa.

– A maioria das pessoas alimenta suas obsessões tentando se livrar delas.

– Nunca contrate um aluno nota dez, a menos que seja para fazer provas.

– A diferença entre o político e o filósofo é que, em um debate, o político não tenta convencer o outro lado, apenas a plateia.

– Nunca entre em uma parceria comercial com um advogado aposentado, a menos que ele tenha outro hobby.

– Os que usam as outras pessoas são os que ficam mais chateados quando alguém os usa.

– Existem designações, como “economista”, “prostituta” ou “consultor”, para as quais caracterizações adicionais não acrescentam informações.

– O único sistema político válido é aquele que dá conta de lidar com um imbecil no poder sem sofrer consequências.

– Os homens destroem uns aos outros em tempos de guerra, e a si mesmos em tempo de paz.

– Não sou capaz de ver diferença entre riqueza extrema e overdose.

– Assim como comer carne bovina não transforma ninguém em vaca, estudar filosofia não torna ninguém mais sábio.

– Se você detectar um sorriso contido no olhar do vendedor, é porque pagou caro demais.

– Felicidade: não sabemos o que significa, como medi-la ou como alcançá-la, mas sabemos muitíssimo bem como evitar a infelicidade.   

– Os três vícios mais nocivos são heroína, carboidratos e um salário mensal.

– De uma coisa você pode ter certeza: o diretor-executivo de uma corporação tem muitos motivos de preocupação quando anuncia publicamente que “não há motivos com o que se preocupar”.

– A era da informação exponencial é como uma pessoa com incontinência verbal: cada vez mais fala sem parar e cada vez menos pessoas lhe dão ouvidos.

– Os programas executivos nos permitem observar pessoas que nunca trabalharam ensinando aqueles que nunca refletiram sobre coisa alguma.

– Muitas pessoas precisam suspender sua autopromoção e ter alguém na vida que não precisem impressionar. Isso explica por que têm cachorros.   

– O único problema de rir por último é que o vencedor vai rir sozinho.  

– Um inimigo que se torna amigo continuará sendo amigo; um amigo convertido em inimigo nunca se tornará um amigo.

– A polêmica é uma lucrativa forma de entretenimento, uma vez que a mídia pode empregar atores não remunerados e ferozmente motivados.  

– A calamidade da era da informação é que a toxicidade dos dados aumenta mais rapidamente do que seus benefícios.

– Tenho curiosidade de saber se alguém já calculou o tempo que leva para que um desconhecido ligeiramente bem-sucedido que estudou em Harvard mencione isso aos outros convidados de uma festa.

– Se meus detratores me conhecessem melhor, iam me odiar ainda mais.







segunda-feira, 7 de março de 2022

A ANGÚSTIA DE VERDOLINO

 



Verdolino estava desconfiado de que o seu casamento estava próximo do fim. Motivos para que essa suspeita se confirmasse não faltavam. As repetidas dificuldades com seus deveres nos assuntos domésticos de cama, mesa e banho não estavam ajudando.

Embora nunca tivesse tido o mais ínfimo motivo para duvidar da fidelidade da ilustre consorte – e que tivera o azar de casar com ele –, sentiu que o vento poderia mudar a qualquer instante e...

O alerta vermelho disparou no momento em que viu (ou imaginou) o olhar de cobiça da esposa: um pós-adolescente (calção de futebol e sem camisa) limpava um terreno baldio próximo.

Verdolino, meia idade, barrigudo e alcoólatra não tinha cacife para competir com um rapaz bonito, bem alimentado e que, provavelmente, frequentava alguma academia.

A partir desse instante, começou a dormir mal. Nos pesadelos recorrentes, a esposa protagonizava cenas inacreditáveis com diversos parceiros. O sujeito acordava encharcado em suor.

Diz a sabedoria popular que o ciúme trabalha com lentidão, macerando o veneno, injetando-o na corrente sanguínea dos infelizes. Quem há de duvidar?

No boteco do Frajola, tentou – incontáveis vezes – afogar a crise emocional com cerveja e cachaça. Tudo o que conseguiu foi uma série interminável de ressacas. 

Um dia, próximo do desespero, desabafou com o Zé Currumaça. Contou que estava ficando encurvado. O medo de estar carregando um par de chifres pesava uma tonelada.

O amigo ouviu atento. Depois, quando o silêncio substituiu aquela saraivada de desespero, decretou:

– Vancê precisa marcá uma consurta com Madami Ismerarda. Ela lê o futuro no Tarô. Cê sabe, as carta não mente!

Sem saber resolver os problemas do cotidiano pelas vias da razão, o sujeito se deixou arrastar até o covil, digo, o templo da famosa cartomante. 

Enquanto aguardava pela leitura dos desígnios do destino, envolto em uma mistura de incenso de patchouli com flores mortas, Verdolino se sentiu mal e quase vomitou.

– Sou um fraco, reconheceu para o amigo (que parecia imune àquele festival de aromas desagradáveis).

O cenário pouco arejado, digamos assim, acionou o gatilho da imaginação. Era como se ele estivesse participando de algum velório, provavelmente o próprio féretro.

– Cuidado c’as visage, avisou Zé Currumaça.

– Quero ir embora, disse Verdolino.

– O quê? Num vai isperá pelas carta?

– Não quero saber mais disso. Quero ir para casa.

– Quequiéisso? Vancê tá perdendo as estribeira?

– ?!?!?!

– Nóis veio cá prá vê as carta e nóis vai vê essa porquera. Num seje jaguara e sussegue o facho!

Sem alternativa, o infeliz sentou no primeiro banco mocho que encontrou. Levou as mãos ao rosto e chorou. Um choro lento, amargurado, e que foi aumentando a cada segundo até desaguar em histeria.

Entre um soluço e outro, Madame Esmeralda apareceu subitamente ao lado de Verdolino e pousou o braço no ombro do sujeito.

O susto foi monumental. O descontrole urinário, também.

Ao perceber que havia molhado a roupa, Verdolino mergulhou na catatonia. Foi preciso chamar o SAMU. Ficou internado no hospital três dias.

Antes de voltar para casa chamou um corretor de imóveis, queria vender a casa. E assim foi feito. Foi morar, com a esposa, no subúrbio.

Encostado na porta do bar Grenal, mascando um pedaço de gengibre, Betão da Penha acompanhou a chegada da mudança. A vida está repleta de surpresas, disse para si mesmo. E ficou alegre – como talvez possa ficar alegre o leão baio quando decide qual é a ovelha que vai devorar.




terça-feira, 1 de março de 2022

OS SUCESSORES DE CORREA PINTO

 


Após a morte do Capitão-mor Antonio Correa Pinto de Macedo, em 28 de setembro de 1783, a Vila de Nossa Senhora dos Prazeres das Lagens e Certão de Curitiba ficou, cerca de três anos, sem dirigente. A questão somente se resolveu oficialmente em 07 de janeiro de 1786, quando Francisco da Cunha e Menezes, Governador e Capitão-General da Capitania Real de São Paulo, nomeou Bento do Amaral Gurgel Annes, também conhecido como Bento do Amaral Ribeiro (1730-1812).

Nascido em Taubaté, na Capitania Real de São Paulo, Bento do Amaral Gurgel Annes integrou a expedição dos fundadores da póvoa. Do pouco que se sabe sobre sua vida particular, conta-se que, do primeiro matrimônio (com Maria Catarina de Jesus Soares Fragoso) teve quatro filhos, e que (em segundas núpcias com Genoveva Raquel da Fontoura, que era 17 anos mais moça que ele) foi pai de outros cinco. Além disso, teve uma filha com a escrava Marcelina.

Quando a Coroa Portuguesa criou vários impostos visando garantir o recebimento de um quinto de todo o comércio realizado entre as capitanias de São Pedro do Rio Grande e São Paulo coube ao Bento do Amaral Gurgel Annes a tarefa de tentar impedir o contrabando e a consequente sonegação de pagamento relativo ao transporte de gado e muares, couro, charque e outros produtos. As ordens reais impediam que o dinheiro arrecadado com esses tributos fosse utilizado na compra de viveres, armamentos ou animais e deveria ser mandado integralmente para o governo português.

Além da ameaça iminente de invasão das tropas castelhanas, da resistência indígena (Kaingangs e Xoklengs) à ocupação territorial pelos brancos e dos ataques às pequenas lavouras de subsistência, os habitantes da povoação viviam aterrorizados com a quantidade de indivíduos com pendências com a lei e que se refugiavam nas terras acima da Serra. Não havia qualquer tipo de segurança e a região carecia de estímulos para se desenvolver.

Nesse cenário, a tarefa do Capitão-mor Bento do Amaral Gurgel Annes, que durou 26 anos, não foi de fácil realização. Foi ele que, contornando as dificuldades, criou alguns mecanismos de proteção aos habitantes do vilarejo (que apresentava, segundo o recenseamento de 1816, uma população de 995 habitantes, sendo que 15% eram cativos). Um dos grandes obstáculos que ele teve que ultrapassar foi o seu afastamento do comando administrativo do povoado. Por duas vezes, 1804 e 1809, esteve envolvido em confusões políticas. Na primeira vez foi substituído pelo Tenente Baltazar Joaquim de Oliveira (sobrinho de Correa Pinto e genro de Bento do Amaral Gurgel Annes) e na outra oportunidade ninguém foi designado para ocupar o seu lugar. 

Com a morte de Bento do Amaral Gurgel Annes, em 1812, seu filho João Annes do Amaral Gurgel o substituiu até 1814 (quando faleceu). Provisoriamente, o Tenente Baltazar assumiu o posto até 1818, quando o Capitão-Mor Ignácio de Oliveira foi nomeado para a função. Como este se encontrava em expedição pelos campos de Guarapuava, coube ao Tenente Baltazar, no mesmo ano, assumir o cargo e governar até 1820. O quarto e último Capitão-mor, Joaquim Ribeiro do Amaral, integrante de uma lista de “três homens bons” da Vila, foi empossado em 1826, pelo governador da Província de Santa Catarina, Francisco de Albuquerque Melo, e permaneceu na função até 1828. 

Com a implantação da Lei de Organização Municipal do Império, em 1828, o cargo de Capitão-mor (que era vitalício) foi extinto e uma nova Câmara de Vereadores foi eleita. O presidente da Câmara de Vereadores tornou-se o responsável pela administração da Vila de Nossa Senhora dos Prazeres das Lagens (a elevação à categoria de cidade ocorreu em 25 de maio de 1860).