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terça-feira, 31 de agosto de 2021

LAGES ALÉM DOS LIVROS DA HISTÓRIA OFICIAL

 


Existem outras formas de entender os acontecimentos que constituem a identidade de Lages. Ao lado dos relatos pessoais, memórias, recordações, há uma série de contribuições histórico-ficcionais. Esse conjunto de informações talvez não esclareça objetivamente muitas coisas, mas permite uma visão panorâmica menos apegada à emoção ou aos sentimentos de pertença.

O explorador alemão Robert Christian Barthold Avé-Lallemant (1812 - 1884), depois que foi atingido por um coice de mula, precisou passar algum tempo em Lages. Em Viagens pela Província de Santa Catarina, Paraná e São Paulo (possivelmente escrito em 1858), afirma que foi hóspede de Jorge Trueter, que morava na Rua Direita (atual Rua Nereu Ramos). A vila contava com cerca de 500 habitantes, umas duas ou três ruas e edificações precárias. Foi bem tratado, mas... foi incapaz de suportar as agruras da época, principalmente a falta de conforto. Também foi crucial para que desgostasse da região a guerra sem quartel que os indígenas e os fazendeiros estavam travando.



O escritor paulista Paulo de Oliveira Leite Setúbal (1893 – 1937), por recomendação médica, morou em Lages, em 1919. Hospedou-se na casa de seu irmão, João Batista Setúbal, proprietário do Armazém Paulista, que estava localizado no meio da primeira quadra da atual Rua Benjamin Constant. Embora tenha obtido sucesso como advogado, escrito alguns dos poemas que integram um dos seus livros mais famosos, Alma Cabocla, frequentado festas e eventos sociais, suas impressões sobre a região não são muito simpáticas. Estão publicadas em Confiteor, o seu livro de memórias (1937).

O protagonista do conto Grama Leve (2013), de Ettore Michele di San Fili Bottini (1948-2013), visita (ficcionalmente) Lajes (sic) em 1946. Na companhia do pai exuma o corpo de um familiar, morto em uma briga. No romance Eu queria que você soubesse (2015), de Marcos Kirst, um caminhoneiro está a 100 km de Vacaria. Nesse percurso entre um lugar e outro, revisita os anos 60 e 70 do século passado. Santiago Nazarian situa o seu romance Neve Negra (2017) em lugar impreciso, a fictícia Trevo do Sul, na Serra Catarinense: Talvez seja Lages. Talvez.

Guido Wilmar Sassi (1922 – 2002), nos livros de contos Piá (1953) e Amigo Velho (1957), não economiza na descrição lírica de uma paisagem que foi destruída pela ganância predatória. Em Os 7 Mistérios da Casa Queimada (1989) escolhe outra abordagem. A cidade de Gales (anagrama de Lages) serve de moldura para os conflitos de uma família disfuncional.



Em Márcio Camargo Costa (1939-2011), o Planalto Catarinense é dissecado com ironia, crítica social e certo desprezo pela modernidade. Nos seus livros prevalece a recuperação de causos orais, ao mesmo tempo em que estabelece uma nova mitologia para o período áureo do ciclo da madeira. Publicou O gaudério de Cambajuva (1986), A caudilha de Lages (1987) e Qüeras (1994). 

Edézio Nery Caon (1921-1982) foi outro que não levou Lages a sério. Em A Academia (1977) e A Faculdade (1977) não desperdiçou a ocasião de fazer sátira. Em Estórias de minha cidade (1978), usa outro tom e recupera uma parte da história urbana que não consta dos registros de sucesso da cidade.

A prosa de Júlio Corsetti Malinverni também acrescenta elementos ao contexto. Tendo com centro a Coxilha Rica, O Morro do Surrão (1985) e Luzes do tempo (1996) evocam uma série de “causos”, daqueles que nossos avós contavam ao redor do fogão de lenha, nas noites de inverno. 

Leituras mais distantes (embora próximas afetivamente, porque a vida do campo está em primeiro plano) podem ser encontradas nos contos de Edson Nelson Ubaldo (que nasceu no Cerro Negro em 1940, época em que aquela região era parte do município de Lages). Escreveu Bandeira do divino (1977), Rédea trançada (1980),  O voo da coruja (1988), entre outros.  

Outras visões sobre Lages e o Planalto Catarinense estão presentes em diferentes autores e livros. O mesmo se pode dizer de filmes e documentários. Mas isso é assunto para outra oportunidade.




quinta-feira, 26 de agosto de 2021

TRÊS CENAS URBANAS

 


1

Fui à padaria. Escolhi uma que fica longe do lugar onde moro. Caminhar nas tardes de domingo se tornou um hábito. Vi as duas pessoas próximas do supermercado, lá na Avenida Presidente Vargas. Um rapaz e um homem. Talvez pai e filho ou, em outra hipótese, irmãos com grande diferença de idade. O mais velho caminhava, o mais novo estava de bicicleta. Na medida em que me aproximei deles um detalhe chamou a atenção: aquele que estava caminhando segurava o guidão, garantindo o equilíbrio da bicicleta. Conjecturei que poderia haver algum problema entre eles. Não consegui identificar o quê. De qualquer forma, não era da minha conta. Então, como a vida tem as suas urgências e a mais importante, naquele instante, era colocar o pão na mesa, segui em frente. Dos dois guardei uma imagem que foi se dispersando rapidamente.

Voltei por caminho diferente. Escolhi a XV de Novembro e a Fernando Athayde. Na Walmor Ribeiro, por uma dessas coincidências que nos atropelam a cada instante, os encontrei outra vez. O rapaz pedalava suavemente e sem ajuda. Esporadicamente, aquele que estava caminhando colocava a mão no ombro do outro. Havia uma cumplicidade explícita na cena. Imaginei que o mais velho talvez quisesse dizer, sem emitir palavras, que sempre estaria por perto, a protegê-lo, a impedir que ele se machucasse.

Ao longe, o entardecer se aproximava.    

 

2

Sai para comprar máscaras descartáveis. Na Rua Quintino Bocaiúva atendi ao telefone. Minha ilustre Auxiliar para Assuntos de Limpeza Doméstica (AALD), que não poupa palavras, começou a descrever as agruras da vida, a falta de dinheiro, um pagamento que tinha para receber e que ainda demoraria alguns dias. Típico preâmbulo para pedir um adiantamento. Escutei com paciência a ladainha. Faz parte da confusão que nos une. Em determinado momento da conversa, talvez para tentar diminuir a "facada", falei:

– Tenho R$ 50,00 na carteira. Se você quiser, é teu.

Antes que ela respondesse, um senhor (que estava na porta de uma loja e que não é meu conhecido) entrou na conversa e disse:

– R$ 50,00? Então me empresta R$ 49,00?

Fiquei um segundo sem saber o que estava acontecendo. Que maluquice! Rapidamente, recuperei o controle da situação e, apontando o telefone, avisei ao “pedinte”:

– Desculpe-me, não posso te emprestar, ela pediu primeiro!  

Ele riu e entrou na loja. Eu voltei à conversa com a AALD. Infelizmente, o prejuízo foi maior do que os R$ 50,00.

 

3

Na fila do restaurante, alguém me pergunta:

– Você ainda mora no São Miguel?

O quê? Nunca morei lá! Aliás, não devo ter visitado o bairro mais de duas vezes na vida. Diante da minha perplexidade, ele baixou a máscara e mostrou o rosto.

– Você não se lembra de mim? Fui candidato a vereador!

Não o reconheci. Talvez seja algum problema relacionado com a idade ou à memória, não sei, talvez seja somente uma confusão, dessas que acontecem no dia a dia, quem sabe? Fiquei surpreso com a cena. Será que tenho um Doppelgänger (duplo, sósia) no São Miguel?

 

 

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

UMA LENDA E NOSSA SENHORA DOS PRAZERES

 

Nossa Senhora dos Prazeres
(foto: Aline Borba - Assessoria de Comunicação PML)

Contam os livros de História que a Vila de Nossa Senhora dos Prazeres das Lajens, fundada em 22 de novembro de 1766, recebeu essa denominação em homenagem à santa que era de devoção do fundador, o Capitão-mor do Certão de Curitiba Antonio Correa Pinto de Macedo. Isso aconteceu na época em que o sul do Brasil (São Paulo, Santa Catarina, Paraná) era um território inexplorado e os povos indígenas tentavam sobreviver ao instinto predador dos poucos fazendeiros que estavam se instalando na região. 

Com o passar do tempo o imaginário popular ampliou a importância da santa, mas também forneceu um pouco de folclore. Uma das lendas mais conhecidas na região está relacionada com a serpente do Tanque (Parque Jonas Ramos). Em tempos remotos uma mulher negou-se a identificar o pai do filho que trazia no ventre. Pressionada pela convenção social, que não aceitava mães solteiras, abortou. Em seguida, jogou o feto dentro do lago onde eram lavadas as roupas dos habitantes do povoado. Forças sobrenaturais transformaram a criança em uma enorme serpente (e que se projeta, alegoricamente, no rio Carahá). Diante da possibilidade do réptil destruir a Vila, Nossa Senhora dos Prazeres colocou um de seus pés sobre a cabeça da serpente, imobilizando-a. Segundo o entendimento popular, no momento em que a cobra se libertar a catástrofe será sem precedentes.

No entrecruzamento entre lendas e superstições, uma versão do “causo” sugere que a mulher grávida teria sido a filha de Antonio Correa Pinto de Macedo. Essa hipótese não apresenta base sólida, pois o fundador da cidade não deixou descendência. Outra variação relaciona a fábula com as três profecias do monge João Maria. Na primeira década do século XX, um dos três homens a quem se atribui o papel de líder religioso das tropas revolucionárias na Guerra do Contestado (João Maria de Agostinho, João Maria de Jesus e José Maria) esteve acampado durante alguns dias nas proximidades de Lages. Depois de ter profetizado que chegaria um tempo com muito pasto e poucos animais, e que em algum momento anoitecerá e não amanhecerá, pois tudo será tragado e submergido nas entranhas da terra, decretou que o destino do lugarejo estava ligado a algumas condições: 1) preservar a cruz de madeira que ele ergueu em cima do morro da Cacimba, fonte d’água onde saciou a sede; 2) manter a imagem de Nossa Senhora dos Prazeres no altar da Igreja Matriz (elevada à categoria de Catedral Diocesana em 1927), onde impede que a serpente do Tanque se liberte; 3) evitar que as ruas do vilarejo sejam pintadas de preto.

Desses três requisitos, dois ainda vigoram. A imagem da santa continua onde deveria estar. A cruz deteriorou-se no tempo e os seus restos estão preservados em uma redoma de vidro, na Igreja da Santa Cruz. Em contrapartida, o asfaltamento se mostra progressivo e irreversível, de acordo com as propostas da modernidade.

O fim de Lages está próximo? Evidentemente que não. Não se deve confundir a realidade com a ficção. E a população lageana, por enquanto, conta com a proteção de Nossa Senhora dos Prazeres. Em todo caso, a hipótese da cidade ser devastada por uma inundação não pode ser descartada. Lages está situada em cima do aquífero Guarani, o maior reservatório subterrâneo de água doce do planeta. 


Interior da Catedral Diocesana de Lages.
(Foto: Aline Borba - Assessoria de Comunicação da PML) 


terça-feira, 17 de agosto de 2021

FERNANDO JOSÉ KARL (1961-2021)

 


Fernando José Karl morou em Lages nos anos 80 do século passado. Passou no vestibular para agronomia e imaginou a possibilidade de construiu uma carreira profissional cultivando árvores e flores. Trouxe na bagagem a esposa e um livro publicado – um catatau de quase 500 páginas, A ilha dos pássaros ao sol. Era muita coisa para um menino de 17, 18 anos.

Depois de uns dois semestres (talvez nem isso) abandonou o futuro e foi viver o presente. Montou um curso na Biblioteca Pública e saiu pelas ruas da aldeia procurando por gente doida o suficiente para gostar de poesia. Encontrou centenas de malucos. Infelizmente, todos do tipo errado. Mesmo assim, escravizou meia dúzia de aborígenes, vassalos que o seguiram fielmente durante muito tempo. O ponto alto dessa missão civilizatória ocorreu em 1984, quando ajudou a Sandra Andrade na organização de um concurso poético. A aventura teve como resultado um livro esquálido (atualmente relíquia de colecionador). 

Em paralelo, morou durante algum tempo com Beto Mondadori (no prédio da antiga Celesc, no entroncamento entre as ruas Coronel Córdova e Frei Rogério). Nesse período, a dupla compôs uma série de canções – Suco de Imaginação foi o grande sucesso da temporada. Também publicou Tema para romance (1984), livro quase artesanal que integrou um dos projetos literários do Departamento de Cultura do município. 

 


Um dia, depois de acumular cansaço e dívidas bancárias, Fernando arrumou as malas e sumiu em uma das curvas da rodovia que o levou na direção do litoral (a esposa tinha desaparecido de cena muito tempo antes).

Esporadicamente chegavam notícias das peripécias do nobre cavaleiro na arte zen de fabricar versos absurdos em quantidade e qualidade absurdas. Uma hora estava com o pessoal do jornal A Notícia (Joinville), em outra com a turma do suplemento cultural Nicolau (Curitiba), às vezes estava morando em São Francisco, às vezes procurava por novas terras para conquistar. Inquieto, queria sempre mais do que estava disponível.

Encontrei-o em dois ou três eventos literários, mas, nos últimos tempos, nosso maior contato era por e-mail ou por mensagem nas redes sociais. Várias vezes me pediu para escrever o prefácio de um de seus livros, tarefa que nunca executei, embora tenha lido o PDF que ele me enviou. A vida está repleta desses desencontros, desses olhares para diferentes horizontes.

A sua poesia oscila entre o erotismo sutil, o observar cotidiano e o misticismo oriental (o Japão e a Índia se confundem a todo instante). Outra característica importante de seus escritos é o surrealismo  que resulta em estranhamento, surpresa e beleza poética. 

Fernando José Karl faleceu em 16 de agosto de 2021, em Curitiba (PR). Deixa dois filhos (Shânkara e Matheus). 

 


 

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

LEMBRANÇAS DE REFEIÇÕES NA INFÂNCIA

 


Houve um tempo na história de minha família em que as refeições eram uma forma de reunião afetiva. Mais do que aproximar (ou afastar) pais e filhos, aqueles momentos ao redor da mesa serviam para acertar as contas. Enquanto distribuía o arroz ou a carne no prato dos filhos, a mãe costumava reclamar em voz alta. Não era fácil controlar quatro crianças. O pai fulminava o(s) indisciplinado(s) com o olhar. Corretivos físicos faziam parte do ritual. Enquanto alguns saboreavam a comida, outros descobriam que o almoço estava impregnado de violência. Muitas vezes a comida era engolida com lágrimas nos olhos.

Ao arroz e feijão, tínhamos frango assado, frango ensopado, guisados com batatas, bifes de fígado, buchada (dobradinha), estrogonofe, almôndegas, macarrão com sardinha. Comida de pobre. Que era devorada rapidamente. Seja porque era gostosa, seja porque a lentidão era premiada com a impossibilidade de repetir o prato. E nenhum pré-adolescente gosta de passar fome.

Enormes pedaços de polenta frita, recheados com queijo colonial, empanados em ovo e farinha, se transformavam em iguarias dignas do Guia Michelin. Em dias especiais (aniversários, natal, páscoa), bife à milanesa e batatinha frita. Aos domingos, lasanha. A travessa (pirex) fumegante diante de nossos olhos confirmava que, nessa festa, éramos felizes e sabíamos. 

Claro que essa abundância não existia nas refeições diárias – mas alguma coisa sempre estava lá. A mãe estava sempre renovando o cardápio, apesar do péssimo orçamento doméstico.  

Saladas eram raras. Não é comida, como costumávamos repetir, sonhando com pedaços enormes de carne ou coxas de frango. Mesmo assim, era costume ter à mesa alface, tomate e refogados diversos (repolho, couve, ervilha).

No meio da tarde, havia uma refeição intermediária, o café com mistura. Acontecia entre as dezesseis e as dezessete horas. Mas, nem todos eram convidados. Visitas tinham prioridade. A xícara de café bem forte (moído – socado – no pilão, lá nos fundos de casa) era acompanhada por uma fartura sem fim: bolo de fubá, cuca, bolachinhas de maisena com leite condensado, biscoitinhos de nata, sequilhos e bijajica. Quem quiser escrever sobre a vida alimentar dos lageanos deve reservar um capítulo para tentar explicar a importância das roscas de coalhada na mitologia gastronômica. Pensando bem, talvez um capítulo seja insuficiente.

Por razões que ignoro eram raros os jantares. As refeições noturnas eram substituídas por café ou um copo de leite morno misturado com algum achocolatado ou farinha láctea. De acordo com gostos individuais, o pão feito em casa (uma das sete maravilhas do mundo doméstico) era acompanhado por manteiga, nata, requeijão, mel, geleias diversas, queijo e mortadela. Tudo em porções moderadas, evitando o desperdício.

Devo ter esquecido alguma coisa. O quê? Não sei. Algumas vezes tínhamos canjica, coalhada, cuscuz e quirera com carne de porco. Peixe era raro. Somente na Semana Santa. Os serranos temem uma espinha de peixe atravessada na garganta. Ainda está por se descobrir o valor dos pescados.

Passados tantos anos, em oposição aos alimentos gourmet e outros modismos, resta-nos, através da imaginação, alimentar sabores que se perderam no tempo.



quarta-feira, 4 de agosto de 2021

AS ALEGRIAS DO INVERNO

 


Em tempos olímpicos, as baixas temperaturas no Planalto Serrano estão batendo recordes. A cidade ficou coberta pela neve, esse espetáculo que une encantamento e frio. Várias explicações são possíveis. O desequilíbrio do sistema climático, o inferno astral e a pandemia estão entre as hipóteses mais prováveis. Difícil saber qual delas merece alguma atenção. Talvez nenhuma – ou todas. Mais prático é retirar edredons, cobertores e agasalhos que estavam escondidos dentro dos armários. 

 

Evidentemente, existem diversas alternativas para espantar o frio – quase todas envolvem significativos índices alcoólicos. Como nem só de cachaça (ou graspa ou steinhaeger ou vinho) vivem os habitantes do Planalto Serrano Catarinense, cabe, nas manhãs do sul do mundo, abastecer o tanque (como diria o lageano) com canecas de chocolate quente, chá e café. Chimarrão também é uma opção. O pessoal do interior se esquenta com camargo (o leite tirado da vaca direto em um copo com café preto e puro).

 

Nesse clima de congelar pinguim de geladeira, o fogão de lenha poderia ser uma alternativa. Infelizmente, o progresso imobiliário – que substituiu as casas por edifícios – prefere fingir que o ar condicionado e a lareira são boas opções. O problema é que os aprimoramentos civilizatórios custam fortunas e poucos podem desfrutar desses benefícios. Então cabe improvisar. É nesses momentos que entra em cena o pelego e o pala (poncho, bichará) ou os sistemas primitivos de calefação: brasas de carvão vegetal dentro de uma bacia. Tudo no estilo não tem tu, vai tu mesmo.

 

As diversas peças de roupa sobrepostas escondem os pecados gastronômicos que todos cometem nessa época do ano. É difícil resistir. Paçoca de pinhão, sopa de agnoline, churrasco, bolos, frituras, fondue. Uma imensidão de gostosuras. Há quem diga que a gula é a irmã malvada do inverno. Sei lá, o perigo se esconde nos lugares mais inesperados. Por isso, o uso de casacos e jaquetas (japona, na linguagem usada em tempo distante), além de camisas de flanela, camisetas, mantas, cachecóis e botas, ajudam na composição de um look estiloso, desses que incentivam a imaginação – o calor dos corpos nega prazeres, forja promessas, alimenta sonhos.

 

No inverno, a vida e o afeto são valorizados. O que incomoda é ter que deixar o calor da cama para ir ao banheiro durante a madrugada. Ou regular a temperatura do chuveiro, na hora do banho. Ou sair de casa pela manhã. Dizem que na Sibéria é pior. Provavelmente é.

 

O vento que corta a pele e o sol de enganar trouxa costumam se aliar na confusão das tardes que parecem indicar que tudo está voltando ao normal. Por normal deve-se entender temperaturas abaixo dos 10° C. Ou seja, quase verão – para ursos polares e cachorros lanudos. Mas, quem se importa?

 

O que não podemos esquecer é que não existe primavera sem o inverno.


segunda-feira, 2 de agosto de 2021

NÉVIO FERNANDES (1934 - 2021)

 


Névio Fernandes, o decano do jornalismo lageano, faleceu na manhã de 22 de julho, aos 87 anos.  Homem calmo, gentil, sempre disposto a fornecer uma palavra de alento e esperança aos que necessitavam, iniciou no jornalismo aos 13 anos de idade, quando fundou A Cidade, jornal que era escrito à mão e distribuído aos amigos. Algum tempo depois, começou a colaborar com os jornais Guia Serrano e Região Serrana – o que lhe garantiu o reconhecimento como profissional exemplar.  

Em 1956, a convite do empresário José Paschoal Baggio, integrou a equipe jornalística do Correio Lageano, onde, por 39 anos, foi editor-chefe. Nesse período, publicou quase dez mil artigos sobre a história e a cultura do Planalto Catarinense.

Através de suas crônicas e textos jornalísticos, Névio Fernandes foi presença diária na vida da população lageana. Testemunha viva da história do Planalto Catarinense acompanhou alguns dos mais importantes eventos da política regional nas últimas décadas. Também foi capaz de entender o impacto e os desdobramentos desses fatos entre os habitantes de Lages. 

Seus textos, escritos em estilo direto, sem dar espaço aos apostos e às explicações acessórias, primam pela objetividade, pela análise criteriosa e imparcial. Partindo dos acontecimentos cotidianos, mas de incontestável relevância, com rara habilidade, estabeleceu um quadro lírico, impregnado de poesia e sabor narrativo.

Ao lado da obra de Walter Dachs, Névio Fernandes forneceu substância ao que há de mais significativo no registro historiográfico da Região Serrana. Ao resgatar acontecimentos que poderiam passar despercebidos, provou que é possível estabelecer significado e consistência ao que é invisível aos olhos.

Em paralelo, mas de forma complementar, durante nove anos presidiu a Associação Lageana dos Escritores (ALE), período em que solidificou a instituição e deu-lhe uma identidade. A edição de livros, a busca por patrocínios, as conversas de incentivo aos jovens, o imenso carinho pelo fazer literário – são essas qualidades que ficarão na memória daqueles que tiveram o prazer de desfrutar de sua companhia.

Sit tibi terra levis, Névio Fernandes (1934 - 2021).