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sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

CONTAGEM REGRESSIVA

 


Ao se aproximar o fim do ano, cabe lembrar uma cena do romance O Leopardo (Il Gattopardo), escrito entre 1954 e 1957, por Giuseppe Tomasi, Príncipe de Lampedusa, e publicado em 1958 pela editora Feltrinelli. Trata-se de uma interpretação ficcional do período histórico italiano conhecido como Risorgimento.

Em conversa privada, ao comentar a necessidade de unificar a Itália, Tancredi, príncipe de Falconeri, diz ao seu tio, Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina, Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude.

Mais do que uma lição sobre a volatilidade das ações humanas, a frase carrega dentro de si a projeção sobre o quanto nos iludimos com a possibilidade de que as mudanças acenam com aspectos positivos. O autoengano é uma benção divina. E a crueldade do real (seja lá o que isso for) não tem limite.

As festas de réveillon produzem a sensação de que basta arrancar a última folha do calendário e o paraíso se instala. Ano novo e vida nova – anuncia uma frase de autoajuda muito lembrada por parte da população. De acordo com essa proposta, os problemas (familiares, econômicos, políticos) podem ser dissolvidos entre taças de espumante e colheradas de lentilha. Pular sete ondas, comer romã e vestir roupa de determinada cor também serve como portal para a prosperidade.

O idealismo cotidiano se alimenta na mitologia de que a tábua de salvação une a esperança com a alegria.  

Também conhecido como o ano da vacina, 2021 injetou (literalmente) uma dose de otimismo na população brasileira. Não faltarão pitonisas para prever que, com as energias renovadas, chegou o instante de lutar por um novo tempo.

E isso significa que cada ação, cada decisão, pode servir de catapulta para mudanças mais significativas. Ter-se-á fôlego para todo esse esforço?  Nas palavras de Romain Rolland (citado por Antonio Gramsci), o pessimismo da inteligência não deve abalar o otimismo da prática. Então, diante da visão lastimável que o presente nos oferece, cabe tentar modificá-lo. Mas, vamos com calma. Historicamente, nenhuma revolução garantiu contentamento ou delicadeza. Em alguns casos, resultou em mais confusão. Faz parte do espetáculo – e deve servir de alerta para as ilusões de felicidade instantânea. O ceticismo é o elixir da sanidade.  

Inadmissível é o discurso da servidão voluntária, o acomodamento, o imobilismo. Na perspectiva do arqueiro zen-budista, mudar a direção da seta significa escolher entre o acerto e o erro. Resta saber qual é o alvo.

Esperar pelo fim do ano e por mudanças estruturais deve ser um objetivo, mas não pode ser confundido com algumas atividades humanas – que oscilam entre a má-fé, a falta de coerência e os inúmeros valores pessoais. Deve-se ter consciência de são raros os momentos em que o interesse coletivo superou o interesse pessoal. Muitas vezes, a catástrofe acompanha os ladrões de galinha – essa espécie abundante no cenário nacional.

Também é necessário entender que algumas mudanças são apenas uma forma de fornecer um papel de embrulho novo para um produto antigo. Qualquer semelhança com as eleições presidenciais de 2018 não será mera coincidência.

Feliz ano novo!


sábado, 11 de dezembro de 2021

PORQUE TEMOS O DIREITO DE SONHAR

 


Na pátria de chuteiras, sempre fui um perna-de-pau. No colégio era o último a ser escalado nas aulas de educação física. Alguns companheiros de time ficavam irritados por ter que me aceitar na equipe. Diziam que estavam recebendo um estorvo, alguém que, em algum momento, cometeria um erro grave (desses que resultam na perda da partida). Não é possível negar, aconteceu – umas duas vezes, talvez mais, não sei, o inconsciente bloqueou esse tipo de lembranças. Inclusive porque, naquelas circunstâncias, a honra da senhora minha mãe foi agraciada com doses exageradas de carinho.


Em algum momento, desisti do futebol. Infelizmente, nunca consegui me separar do esporte. Durante alguns anos precisei acompanhar os jogos de futebol de salão do filho. Foram partidas sofridas, nas manhãs de sábado e domingo. Muitas vezes saímos de casa antes das sete da manhã – embora o confronto só acontecesse lá pelas dez horas. Bocejando, vi os meninos perderem incontáveis vezes. Eles não jogavam mal, mas eram ineficientes no ataque.


Em uma oportunidade me vi torcendo entusiasticamente. Pelo outro time! Contaminado pela luta de classes, ao ver a precariedade econômica dos adversários, que representavam uma escola da periferia, só percebi a contradição quando era tarde demais. Constrangido, optei por sair do ginásio, fui respirar um pouco de ar puro, diminuir o estresse, esperar pelo fim do jogo com o coração acelerado.


Poucas vezes fui ao estádio Vidal Ramos Júnior, mas assisti – ao vivo e em cores –, na companhia do filho e de alguns de seus amigos, algumas partidas de futebol profissional do Internacional e do Lages Esporte Clube (LEC). Lembro que, em um jogo contra o Figueirense, válido pelo campeonato catarinense, os meninos estavam muito interessados no cachorro-quente, na pipoca e no churrasquinho de gato. É que, em campo, não estava acontecendo nada de importante. Foi uma pelada digna do Íbis (inúmeras vezes considerado o pior time de futebol do Brasil).


Porque temos o direito de sonhar. Foi com essa frase de impacto que o herdeiro de minhas dívidas e dúvidas me convidou para assistir ao jogo entre as Leoas da Serra e a equipe de Taboão da Serra, válido pela semifinal da Copa do Brasil de futebol de salão feminina. A pandemia e o distanciamento social tinham me feito esquecer o quão caótico é o mundo dentro de um ginásio de esportes. O barulho ensurdecedor do tambor no meio da torcida, as crianças correndo para lá e para cá, pessoas que esbarram em outras pessoas, fotógrafos e videomakers de celulares, o vendedor de cervejas e refrigerantes que não estava usando máscara, e as meninas (ponytail queens, como gosto de chamá-las) que, quase desesperadas, impuseram um ritmo frenético ao primeiro tempo do jogo. Tudo parecia conspirar para um final feliz. O desastre surgiu no segundo período, não só pelo placar (3 x 2 para as adversárias), mas porque foi um dos últimos jogos de Amandinha (uma das melhores jogadoras do mundo) e de Tampa, que estão se transferindo para outras equipes.


Dizem que o futebol é a continuação da guerra por outros meios e que, no esporte, a frustração é uma companhia constante. Não tenho como avaliar essas afirmações, mas lembrei das palavras de Nelson Rodrigues, em outro contexto, em futebol, o pior cego é o que só vê a bola.


domingo, 5 de dezembro de 2021

DUAS OU TRÊS COISAS QUE SEI SOBRE O MERCADO PÚBLICO

 


Em algum momento do passado, não lembro quando, eu era pré-adolescente, fui com meu pai ao Mercado Público. Talvez fosse próximo da Semana Santa. Minha família seguia o costume religioso de comer peixe nessa época do ano. E lá era o lugar ideal para comprar esse tipo de alimento, que vinha do litoral – naquela época ninguém se interessava pela piscicultura na região.


Minhas recordações estão enevoadas e talvez se confundam com outros momentos. O que tenho nítido é que havia um restaurante, desses com piso de oleado e paredes engorduradas. Em cima do balcão estavam vários vidros com doces e salgados em conserva (cebola, ovos, sardinhas). Provavelmente havia uma estufa de vidro com pasteis, coxinhas e croquetes. Em algumas mesas de fórmica, várias pessoas, enquanto conversavam em voz alta, bebiam cerveja ou faziam algum tipo de refeição. Era uma agitação que parecia não ter fim.


Dentro do mercado, numa ampla área coberta, vários estandes comercializavam hortifrutigranjeiros, galinhas (vivas e mortas), queijos, embutidos diversos e carnes. Tudo vindo diretamente do campo, como era normal em uma cidade de origens rurais. Os peixes (e aquele cheiro característico) ficavam em separado. Alguns estavam em um aquário, era possível levá-los vivos para casa Também eram vendidos em postas.


Naquele tempo, a inspeção sanitária não existia (ou era ineficiente) e as pessoas estavam imunizadas contra alguns tipos de bactérias. Não sei se a vida era melhor, o que posso dizer é que parecia ser menos complicada.


Provavelmente voltei lá outras vezes. O Mercado Público sempre foi uma referência, um lugar onde as pessoas se encontravam para fazer negócios ou para conversar. Em algum momento, a modernidade bateu nas portas da cidade e o lugar perdeu a importância. Foi substituído pelos supermercados – que descentralizaram os pontos de comercialização dos gêneros alimentícios. As compras mudaram de endereço e os produtos industrializados invadiram a vida familiar. Para as miudezas, ou para alguma emergência, o povo usava os mercadinhos de bairro, que adotavam o sistema de anotar as compras na “caderneta”. O acerto era feito no final do mês, quando as pessoas recebiam o salário e saldavam os débitos. Mas esse sistema também foi sendo ultrapassado pela diversidade das ofertas e pela competição predatória das redes de comercio varejista.


Olhando para esse tempo que ficou preso na memória, imagino que muitas histórias podem ter acontecido dentro do Mercado Público. Como não foram registradas, só nos resta fazer alguns exercícios de imaginação. Talvez o verdureiro tenha se apaixonado pela moça que vendia flores. Tímido, nunca confessou a paixão e acabou se casando com a mulher que trabalhava na banca de artesanato – e que jamais pensou em ter marido, o que ela ambicionava era comprar um par de sapatos novos. Talvez a senhora que escolhia berinjelas, brócolis e bergamotas estivesse pensando nas decepções que acompanham a vida. Talvez o jornalista caminhasse no meio da multidão, procurando por uma boa história – sem perceber que a beleza se esconde entre as coisas mais banais. Talvez aqueles trocados recebidos pelos meninos que faziam frete representassem a diferença entre ter um prato de comida e passar fome.


Talvez essas histórias (as que aconteceram e as que foram inventadas) não tenham a mínima relevância, o passado é constantemente soterrado pelo presente.