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terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

SOBRE A POESIA

 


A poesia não vale o papel em que é impressa. Incontáveis vezes esse tipo de argumento se repete. E parece estar absolutamente correto – mas por motivo oposto ao do declarante. A poesia não tem preço. Não é mercadoria.

Sequer há utilidade para a poesia. Usualmente trata-se de algo que atrapalha os dias de praia e sol, que incomoda aos que gostam de astronomia e astrologia, que tem a aparência dos peixes abissais ou dos animais extintos.

Um verso expande a potência do verbo, despreza a verba, reverbera o vazio e institui o caos. O pensamento se desdobra em novas presenças, ausências, referências e reticências. A árvore que recusa o asfaltamento do bom gosto.

Uma estrofe não compactua com o silencio e institui as frases com a violência dos vulcões que entram em erupção na primavera – exatamente quando todos julgam estar a salvo. A poesia incendeia a planície – ao som da onça com fome.

A linguagem como resistência. Empilhar sentimentos e inaugurar catedrais de vento. A iluminação obliqua, a sombra inesperada, a sobra. A vida dividida entre projetos falidos e noites turbulentas. A prece dos que não acreditam em deus.

A poesia respira a imensidão da Antártida no equinócio. Detesta compactuar com as certezas. Acrescenta novas dúvidas. Sabe que o nascer da manhã confirma a desventura, nega a usura, abomina a clausura.

A poesia não escolhe caminho, nem ordem, nem ideias, nem se detém diante do iníquo. A expansão é o seu destino, desatino de quem escolhe acolher em abraços os que estão satisfeitos com a imensa coleção de equívocos.  

A poesia não faz prosa, não carrega ramalhetes para o amor, não suporta paredes ou comporta escafandros. O poema gosta da palavra sim, mas prefere dizer não. E isso afasta a discussão, propõe a digressão. A poesia é a poesia e em si se basta.  


sábado, 24 de fevereiro de 2024

JORNALISMO: SOMATÓRIO DE DERROTAS

 


Durante muitos anos estive jornalista. Não estou mais. E isso é um alívio. Acreditem. Minha graduação foi no curso de letras, e, mais tarde, especialização em literatura. Ou seja, minha bagagem intelectual se situa em outros referenciais, muitas vezes distantes do profissional “raiz”. Isso é bom e é ruim. Bom porque me colocou em vantagem quando o material a ser trabalhado se referia ao jornalismo cultural. Ruim porque me obrigou a escrever sobre assuntos outros que não são os do meu agrado ou domínio. Tudo bem, uma das regras de ouro da profissão afirma que o jornalista é uma pessoa que sabe de tudo, mas não entende de nada.

Comecei escrevendo crônicas, resenhas de livros e artigos de opinião. Foi divertido – enquanto durou. Isso significa um período de uns 20 anos. Exerci a atividade, basicamente, em três veículos de comunicação: A Notícia (Joinville, SC), O Momento (Lages, SC) e O Escrivão da Serra (Lages, SC). Nesses três empregos o trabalho era remunerado. Esporadicamente, publiquei no Correio Lageano e no Diário Catarinense (o que me causa arrependimento até hoje). A proposição desses dois (falecidos) jornais era simples: a honra de ser publicado constitui pagamento suficiente.

Em determinado momento passei para o lado de dentro do balcão e comecei a viver o "sofrimento" na redação. Não sei se fiz boa troca. A necessidade de pagar as contas me deixou sem alternativas. É um serviço insano e que envolve mil complicações. Reescrever texto de analfabeto funcional é atividade trivial perto do olhar para o outro lado e ignorar que existem – a cada instante – interesses diversos em jogo. O jornalismo é um empreendimento tão desonesto quanto outro qualquer.

Um dos momentos mais interessantes desse percurso foram os 30 dias em que “estagiei” na redação do Anexo (suplemento cultural de A Notícia), no final do século XX. Estava morando em Meia Praia (Itapema, SC) e esperava pelo fim de uma greve na UFSC. Para garantir alguns trocados, escrevia artigos e resenhas e os enviava por fax.  Muitas vezes ocorriam problemas de transmissão – originando erros ou interpretações distantes do propósito inicial. No meio do caos, perguntaram-me se queria substituir alguém que estava saindo em férias. Aceitei. Valeu por uns três cursos universitários, mestrado e doutorado – tudo junto e misturado. Embora tenha sido um aluno indisciplinado (e isso faz parte da minha natureza), o aprendizado rende até hoje.

Tenho cópia física de algumas “matérias” que escrevi nesse período, muitas vezes página inteira, reflexo de um tempo em que o texto era valorizado e as imagens eram apenas complemento. A pasteurização da notícia, promovida por um conglomerado que comprou os mais importantes jornais de SC, não só implodiu a atividade profissional como contribuiu para o empobrecimento do leitor (de várias maneiras).

Com a popularização da Internet, os jornais físicos começaram a desaparecer. Além da competição quase que massacrante dos jornais televisivos, que abocanharam parte substancial dos anúncios, faltou perceber que o mundo estava em transformação. Embora alguns jornais estejam tentando sobreviver com versões on line, a verdade é que muitos profissionais capacitados migraram para outros formatos – onde podem negociar com os patrocinadores sem a intermediação de terceiros. Como afirmou, em outro contexto, Ryszard Kapuscinski, quando se descobriu que a informação era um negócio, a verdade deixou de ser importante.

Escrever em jornal significa “comprar briga” (com a fonte da informação, com o texto, com os editores, com o departamento comercial e – por que não? – com os leitores). Somatório de derrotas é a minha visão sobre essa travessia do mar da intranquilidade. Esclareço que isso não é blague de alguém que prefere, neste instante, ficar longe do olho do furacão.

Por fim, quando se fala em jornalismo, é necessário ter em mente duas versões da mesma tragicomédia: As pessoas não param de confundir com notícias o que leem nos jornais (A. J. Liebling) e, a mais importante, Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados (Millôr Fernandes).


quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

HISTÓRIAS DE TESOUROS EM LAGES

 


Algumas lendas relativamente comuns na região sul do Brasil referem-se a possíveis tesouros enterrados – ou seja, grandes quantidades de ouro e prata que, por alguma razão, estão perdidas. Nos séculos XVII e XVIII, quando a corrida latino-americana do ouro e da prata estava no auge, quando se acreditava na existência de El Dorado, eram frequentes os conflitos armados entre os portugueses e os castelhanos. O transporte de valores era complicado (envolvia mulas de carga e grupos de escolta). Em caso de ataque inimigo, era necessário esconder os bens por algum tempo. A esperança de voltar para recuperá-los alguns dias depois nem sempre se realizava. Então, supõe-se que muitas riquezas ficaram ocultas em algum lugar não identificado por centenas de anos.

Com a expansão urbana das cidades (loteamentos) em áreas que até então somente eram acessíveis para gado e animais selvagens, algumas pessoas, movidas pelas histórias que foram transmitidas de uma geração para outra, começaram a procurar por esses esconderijos. Salvo engano, ninguém encontrou a fortuna.

Mas, a imaginação nunca descansa e existem na região do município de Lages, no mínimo, três ocasiões em que a crença popular projetou a possibilidade de alguém ficar rico com alguns desses objetos. Em duas dessas circunstâncias, as narrativas populares afirmam que foram encontradas na periferia da cidade algumas panelas ou baús cheios de ouro. Infelizmente não é possível comprovar a veracidade desses episódios.

O tesouro mais famoso da região dizem que está escondido no Morro do Juca Prudente. A história oral sustenta que, em algum momento, na segunda metade do século XVIII, um grupo de jesuítas estava sendo perseguido por criminosos. Expulsos da região de Sete Povos das Missões, os religiosos provavelmente se dirigiam para o litoral do Oceano Atlântico. Nas proximidades do Morro, sentindo que os inimigos estavam próximos, e impossibilitados de oferecer um mínimo de resistência, resolveram colocar em segurança parte da carga que levavam. Moedas de ouro, castiçais cravejados com pedras preciosas, aspersórios de prata, além de outras peças, foram depositados em um lugar secreto.  Por algum motivo (talvez tenham sido mortos), nunca voltaram para resgatar os objetos.

Alguns moradores das proximidades do Morro acreditam que as bolas de fogo que surgem no meio do campo, no período da noite, são manifestações dos espíritos errantes (fantasmas) que estão protegendo o tesouro e impedindo-o de cair em mãos erradas. Para os céticos, trata-se, provavelmente, de fogo-fátuo (combustão de gases provenientes da decomposição de matéria orgânica). Seja uma coisa ou outra, o fato concreto é que o mistério continua sem solução.

Como essas histórias, por enquanto, só se sustentarem como lendas, os caçadores de tesouros continuam vasculhando o território do município. E pouco importa se essas riquezas nunca existiram. Munidos de detectores de metal e mapas antigos, ambicionam encontrar o Santo Graal – ou o seu equivalente.


segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

OESTE – a guerra do jogo do bicho

 


Um rio de sangue. Ou um açougue. Dezenas de personagens mortos em emboscadas, em confrontos com rivais, em explosões, em tiroteios com a polícia (civil, militar, federal). Esse poderia ser o resumo de Oeste – a guerra do jogo do bicho, de Alexandre Fraga.

Mas, reduzir o texto a umas poucas linhas não dá conta de todos os temas que estão presentes no livro. Um dos mais importantes se refere à traição: monstro que emerge do pântano da contravenção como uma das formas de ascensão ao poder. Todos quererem uma fatia maior do bolo econômico. O “inofensivo” jogo do bicho, em determinado momento, aposta no empreendedorismo e se expande em outras direções: máquinas caça-níqueis, cassinos clandestinos, prostituição. Muito dinheiro circulante. Isso desperta o desejo de possuir a chave do cofre. Como o sucesso das ações delituosas se baseia na confiança, no momento em que a realidade bate na porta e escancara o quanto as aparências são enganosas, todos se assustam. Nada mais resta senão derramar mais alguns litros de sangue. Apesar dessas ações estarem conectadas com um propósito pedagógico, eliminar o traidor não resolve a questão – sempre haverá alguém ambicioso o suficiente para tentar um novo golpe. 

A corrupção é outro tema espinhoso que aparece no romance. Quase todos os personagens que atuam nas áreas policiais e jurídicas mostram interesse em receber um por fora – a exceção é um policial federal (que age por vingança). Nessa confusão em que ninguém consegue distinguir quem é o bandido e quem é o mocinho, há uma espécie de normalidade nas idas e vindas de malas carregadas de cédulas por tribunais, delegacias e prisões. E quando o agrado não funciona, entram em campo outras armas: destruição de reputação, transferências funcionais, “suicídio”, etc. Enfim, o dinheiro fala mais alto. Em alguns momentos, grita. E produz muitos surdos – que fazem de conta que tudo está na mais completa ordem.

As guerras intestinas entre bicheiros também são abordadas no texto. Seja por ganância, seja por algum tipo de ofensa, o conflito desconhece a trégua. O resultado natural aparece na forma de ciladas, troca de tiros, mortes de alguns inocentes e muita corrupção. Em alguns momentos, o leitor tem a impressão de que o objetivo principal do mundo clandestino em que está situado o jogo do bicho é a autofagia. Reinventando o combate entre gangsteres (ou algum faroeste extemporâneo), eliminar o concorrente parece mais importante do que compartilhar os lucros. Mas, essa estratégia é uma via de mão dupla e o esforço sanguinário empregado na tarefa resulta em criar debilidades e, em alguns momentos, na própria destruição.

A narrativa também não economiza nas descrições sexuais. Embora o narrador mantenha discrição sobre os acontecimentos que ocorrem entre quatro paredes, tentando descrever o mínimo de detalhes, a narrativa sugere que a possibilidade de ser morto no dia seguinte implica em aumentar a libido, em criar relações (efêmeras ou duradouras) que sirvam para afirmar a importância de estar vivo – momento em que a atividade sexual surge como compensação pelo perigo.      

Oeste – a guerra do jogo do bicho (editora Record, 2014) usa imagens visuais fortes, próprias do realismo visceral. Essa escolha, além de denunciar a barbárie que estrutura o submundo do crime, desperta interesse no leitor.


terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

LENDAS E CAUSOS DE LAGES

 


A ficção sempre fez parte da vida dos moradores de Lages. É um mundo onde não há limites para a imaginação. Reunir uma serie de histórias e compor um fabulário não parece tarefa difícil, principalmente se o contador das histórias souber misturar o fantástico e o onírico com algum ingrediente humano (uma morte violenta, um amor interrompido, uma briga entre vizinhos, por exemplo). 

Nos Morrinhos, coração da Coxilha Rica, havia, na década de 1960, um olho d’água, uma nascente subterrânea, e que aflorava em um poço construído com pedras. Como ficava distante da casa grande, as crianças eram proibidas de brincar nas proximidades. Diziam que uma alma penada (que não tinha conseguido entrar no céu) vivia naquele local e costumava assustar quem se aproximasse do poço atirando pedras manchadas de sangue. Ninguém duvidava disso.

João Maria de Agostinho, conhecido como São João Maria, curandeiro e líder messiânico da Guerra do Contestado (1912-1916), quando visitou os arredores de Lages, ergueu uma cruz de madeira no topo de uma pequena colina, perto de uma cacimba. O imaginário coletivo logo concluiu que a cruz tinha poderes milagrosos. Fez-se ali lugar de peregrinação, promessas e rezas intermináveis. Algum tempo depois, construíram uma igreja. Pedaços da cruz estão preservados dentro da igreja.

Idêntica circunstância envolve a gruta de São Bom Jesus (Sambão Jesus, como dizia Edézio Nery Caon), que foi, em outros tempos, local de devoção dos católicos. No dia do santo (06/08) eram realizadas missa, churrascada, quermesse. Uma legião de devotos do santo se formou.   

No Parque Jonas Ramos (Tanque), local onde as esposas dos primeiros habitantes da cidade lavavam as roupas, dizem que Antônio Correa Pinto de Macedo (o fundador da cidade, em 1776) afogou a filha (que estava grávida de um bugre – índio Xokleng). Não importa que os livros de história desmintam esse fato e reafirmem que o sujeito nunca teve filhos, o que vale é a lenda e a lenda diz que a moça (ou a criança que estava para nascer) se transformou em uma serpente gigantesca – que, furiosa, queria destruir tudo o que estivesse ao seu alcance. Nossa Senhora dos Prazeres, a padroeira da vila, resolveu impedir a hecatombe que se anunciava e prendeu a cabeça da cobra embaixo de um de seus pés. Conta o povo que, no dia que a estátua da santa (que está na catedral, próxima do altar) for removida, a cobra estará livre e a cidade será arrasada. Como prova e ameaça, o rio Cahará serpenteia o centro da cidade.

Esse vaticínio apocalíptico leva à famosa declaração de São João Maria: quando as ruas de Lages se cobrirem de negro e a Catedral apresentar rachaduras no meio, estará próximo o fim da cidade, pois anoitecerá e não amanhecerá. Tudo será tragado e submergido nas entranhas da terra. Os mais velhos jamais questionaram essa profecia. Basta perceber que a cidade está quase toda asfaltada e que está localizada acima do aquífero Guarani, talvez a maior reserva de água potável do mundo. Será que, em algum momento, a reprisar alguma metáfora bíblica, a terra vai se abrir e engolir a cidade?

A ideologia bélica dos habitantes do Planalto Catarinense costuma glorificar um grupo de cavalaria que combateu na Guerra dos Farrapos (1835-1845), ao lado das tropas de Bento Gonçalves e Davi Canabarro. Nessa epopeia não faltam passagens heroicas, batalhas épicas e o famoso encontro amoroso e sexual entre Ana Maria de Jesus Ribeiro da Silva (também conhecida como Aninha do Bentão) e Giuseppe Garibaldi. O mistério que intriga os historiadores (e os escritores) está em descobrir se Anita Garibaldi nasceu no interior do município de Lages ou em Laguna, onde residia com o marido (que era sapateiro).

Márcio Camargo Costa, provavelmente o escritor que melhor compreendeu as tradições ficcionais da região, recuperou a história da Caudilha de Lages (Aninha Athanasio), senhora e dona do Raposo e do Cajuru. Com o chicote em uma das mãos e o nagant garrão-de porco na outra, ela fez os homens se curvarem ao seu poder. Era uma feminista avant la lettre

Uma das histórias mais horríveis da região também foi contada por Márcio Camargo Costa. Foi no tempo da escravidão. A esposa de um fazendeiro recebeu alguns amigos. Uma das escravas (que era muito bonita) sorriu para um dos visitantes e foi correspondida. A fazendeira, cheia de rancor, considerou a cena um desrespeito. Então, mandou quebrar todos os dentes da escrava. Em seguida, ordenou que fosse pendurada pelas orelhas no pelourinho – a moça lá ficou, os pregos se misturando com o sangue, a dor sendo traduzida em gritos e desejo de morrer.

No folclore regional, há outras narrativas, mais leves, menos amargas, e que envolvem maridos traídos, aventuras na “zona”, corridas de cavalos, golpistas, episódios de tolice política, bêbados, muitos bêbados. Há diversão para todos os gostos. Para quem gosta de histórias baseadas na vida real, os inúmeros episódios protagonizados por figuras pitorescas como Beto Louco, Nereu Goss, Rogério Castro, Clênio Souza, Luiz Alfredo Ribeiro, Morô, Al Neto e outros tantos não devem ser esquecidos. São peripécias que ainda estão para ser contadas em detalhes. Cada um desses personagens vale um livro!

Olhando para o passado, pensando no poder do imaginário e em quem gosta de ouvir uma boa história, cabe perceber que as narrativas que são recordadas com maior nitidez foram contadas em volta do fogão de lenha, em noites de inverno. As sombras projetadas nas paredes pelas labaredas e pelo lampião de querosene sempre foram mais eficazes do que os cenários teatrais. E esses relatos, que cobrem um vasto leque de emoções, transitam entre assombrações, golpes do destino, desilusões amorosas e aventuras épicas. 

Há quem diga que aquilo que não aconteceu precisa ser inventado.


sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

O ANO DO DRAGÃO

 


Com cauda de serpente, garras, asas, cuspindo fogo e um corpo imenso, que lembra um lagarto gigante, o dragão está presente no imaginário de muitas sociedades (mas, esse formato físico não é universal, cada cultura o apresenta de forma particular).

O ano chinês 4722 terá vigência entre 10 de fevereiro de 2024 e 28 de janeiro de 2025 – e será regido pelo dragão, com características do elemento madeira e polaridade yang. Sem entrar em detalhes sobre essas características (que devem ser explicadas por quem entende do assunto), cabe dizer que o sistema de contagem do tempo na China obedece a um calendário que une os ciclos lunares e solares. Como os doze ciclos lunares anuais somam 354 dias, os chineses acrescentam um mês a cada três anos – mantendo a equivalência com o ciclo solar (365,25 dias). Isso significa que existem variações no início, fim e duração de cada ano lunissolar.

Na mitologia chinesa, o dragão foi um dos quatro animais sagrados que participaram da criação do mundo e é um símbolo da abundância e da fartura, do poder e da autoridade. Sua aparência difere da imagem ocidental e possui inúmeras variações corporais: tem olhos de tigre (ou de camarão ou do coelho), cabeça do camelo, corpo (ou cauda) de serpente, patas de águia (ou de tigre), chifres de veado, orelhas de boi, bigodes (ou escamas) de carpa, etc. Em uma das representações, talvez a mais comum, o animal apresenta quatro patas (quatro dedos para frente e um para trás) ou carregando uma pérola em uma das patas (Yoku). Ele vive nas águas doces e salgadas, controla o clima, as chuvas, os ventos e as marés. No passado, nas épocas de secas ou de enchentes, os governos regionais chineses promoviam rituais religiosos para pedir chuvas ou para parar de chover.

Em escavações arqueológicas na China foram encontradas várias representações do ser mitológico (desenhos e inscrições, amuletos de jade, vasos de argila). Esses objetos servem para demonstrar que o dragão sempre esteve presente na cultura chinesa. 

O Festival das Lanternas, segundo a tradição milenar, é celebrado no 15º dia do primeiro mês do calendário chinês. Ele anuncia o início da primavera. São realizados desfiles de rua, queima de fogos de artifícios e danças. Costuma-se consumir o yuan xiao (nián gão), um bolinho de farinha de arroz gelatinoso, cozido no vapor, e que pode ter diversos recheios (doces ou salgados). A televisão estatal apresenta eventos de gala, com shows musicais, ópera, artes marciais e acrobacia. Algumas famílias costumam colar versos em rima acima ou ao lado das portas para expressar o desejo de sorte e fartura no ano que está se iniciando. Também é prática usual presentear as crianças com um envelope vermelho (hóngbão) contendo uma quantia em dinheiro.

 

Yuan xiao, prato tradicional chinês 


Na Idade Média europeia o dragão era considerado um animal perigoso e associado com Satanás. O imaginário popular o visualizava sobrevoando castelos e catedrais e sempre disposto a mandar para o inferno aqueles que se entregavam aos vícios condenados pela religião. Uma lenda bastante difundida entre os católicos relata que um soldado romano salvou uma princesa que estava prestes a ser oferecida em sacrifício para um dragão que atemorizava a região. Desde então, nas hagiografias, Jorge, nascido na Capadócia (atualmente, parte da Turquia), e que provavelmente viveu no século III d. C., aparece montando um cavalo branco e empunhando uma lança, pronto para derrotar o dragão, ou melhor, o mal. Santa Margarida de Antióquia (275-290), que foi torturada durante o governo do imperador Diocleciano, é apresentada enfrentando um dragão. No momento em que ela faz o sinal da cruz, o monstro desaparece.       

Ao longo do tempo, o mito do dragão foi sendo substituído por outras alegorias. Mas, a literatura (principalmente no gênero fantasia) ainda conserva o animal como uma força importante. Em romances como O Hobbit (J. R. R. Tolkien) e nas séries Guerra dos Tronos (George R. R. Martin) e Harry Potter (J. K. Rowling), o dragão aparece para desequilibrar as forças em combate. Em O Gigante Enterrado (Kazuo Ishiguro), uma fêmea de dragão surge no caminho dos protagonistas, Axl e Beatrice. Jorge Luiz Borges propõe uma leitura do mito em O Livro dos Seres Imaginários. No plano realista, a protagonista da série Millenium (Stig Larsson), Lisbeth Salander, tem uma enorme tatuagem de dragão nas costas. No romance erótico japonês Cobras e Piercings (Hitomi Kamechara), a personagem Lui Nakazawa pede ao amante que faça uma tatuagem de dragão nas suas costas – no caso, um Kirin (o mensageiro dos deuses, uma espécie de unicórnio asiático).

Os filmes da saga Como Treinar o seu Dragão e o desenho animado Caverna do Dragão continuam encantando jovens e idosos. O mesmo acontece com jogos de tabuleiro como Dungeons & Dragons

Enfim, os dragões, assim como os dinossauros, oferecem diversão para todas as idades.   

No aspecto simbólico, a China está tentando usar um emblema nacional mais suave. Em lugar do dragão (que possui uma conotação agressiva, militar), o governo está propondo uma imagem mais suave, o panda gigante. Querem que o dragão seja usado apenas como imagem decorativa em festividades (pandorgas, balões, lanternas de papel, gravuras) ou como entidade regente do tempo e das águas.

Em sentido contrário, as peças publicitárias de Hong Kong usam o dragão para forjar uma representação internacional da cidade.

Carisma, ambição e prazer por aventuras são algumas das características dos nascidos no ano do dragão (os últimos são 1928, 1940, 1952, 1964, 1976, 1988, 2000, 2012, 2024). Segundo os astrólogos, o ano novo promete prosperidade, força, muitas energias e grandes realizações nos campos profissionais, amorosos e sociais. Um mapa astral provavelmente mostrará como isso será possível para cada signo do horóscopo convencional.



segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

VALE O QUE TÁ ESCRITO

 


Danylton, o narrador pouco confiável de Vale o que tá escrito (Editora DBA, 2023), observa o mundo dentro de um café quase falido, na periferia da capital da República. Com a vida pessoal e econômica destroçada, ele aguarda o fim com estoicismo. Certo dia ocorre uma mudança significativa na pasmaceira diária. Ele vê passar pela calçada alguém que pensava estar morto.

O reaparecimento de Juan Pablo Norabuena Urondo, o Lilico, fornece o impulso necessário para que Danylton inicie, pela escrita, um ajuste de contas com o passado. Quer recuperar a história em que ele, no máximo, foi observador relativamente afastado. Isso significa que, para fornecer coerência para o desenho que (em muitos momentos) parece ser ininteligível, precisa fazer muitas perguntas para quem estava próximo dos acontecimentos, consultar arquivos, relembrar episódios, trocar e-mails, reencontrar os amigos. Nessa estrutura fragmentária, que pode ter inúmeras imprecisões, os elementos da trama são oferecidos ao leitor em doses homeopáticas.

Apesar de conter alguns ingredientes de um thriller policial, inclusive porque o jogo do bicho está presente no texto, a narrativa transita com maior ênfase pelas relações familiares, pelos horrores do deslocamento social, pelas pequenas tragédias cotidianas e pela violência urbana – que está enraizada em terreno profundo e fértil. Tudo isso está emoldurado no período da ditadura militar, onde as regras jurídicas são utilizadas para favorecer aqueles que estão em conluio com os que detém o poder.

Descendente de indígenas andinos, Lilico parece ter um imã para as encrencas.  Como não nasceu sob o signo da submissão, reage toda vez que encontra obstáculos. E faz isso sem medir as consequências. De certa forma, flerta com o suicídio. Não é exatamente essa a opinião de Cleyton, o seu melhor amigo: Lilico é gente boa, mas sente muita raiva.

Essa raiva diminui quando Lilico começa a namorar Juliane. As aparências enganam. O pai da namorada, um bombeiro que faz “extras” para o jogo do bicho, começa a perseguir o rapaz. Ele conta com a ajuda de policiais corruptos e força o alistamento de Juan Pablo no exército. Essa série de torturas lentas procura transformar a vida de Lilico no inferno em vida. Como não se trata de uma preocupação paterna com a segurança da filha, o motivo desse proceder somente é revelado na parte final da narrativa.   

Violência gera violência e, em determinado momento, algumas coisas saem do controle. A selvageria avança em progressão geométrica – sequestros, espancamentos, assassinatos. Lilico desaparece. Juliana e a mãe desaparecem. Algumas pessoas são presas. A vida volta ao “normal” – ou ao que os ingênuos consideram como normal.

Danylton, na medida do possível, fornece uma visão geral dos acontecimentos – embora não consiga preencher alguns “buracos” do enredo. São acontecimentos que não estão ao alcance do narrador. E ele não se esforça para superar essas faltas, prefere terminar a narrativa sem se preocupar com aqueles leitores que não gostam de elaborar teses sobre os acontecimentos textuais que estão faltando. Há quem imagine que uma das tarefas do escritor é fornecer todas – todas! – as informações, resolver as inúmeras questões que surgem no desenvolvimento do texto e entregar um final sem dúvidas ou questionamentos. Felizmente, essa ideia não é consensual.

Vale o que tá escrito não tem a mínima relação com a série televisiva. São histórias diferentes, embora tenham o jogo do bicho como um dos eixos narrativos.             


quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

TSUNDOKU

 


Existe uma palavra em japonês que me assusta. Olho para a biblioteca e a vejo – como se fosse um aviso imaginário – escrita nas lombadas dos livros. Em uma tradução ligeira, tsundoku (積ん読identifica  comprar livros para não lê-los. Uma variação erudita da síndrome de acumulação.

Como assim, alguém compra livros e não os lê? Essa pergunta utilitarista (proferida por quem somente percebe o que é imediato) costuma ocorrer com bastante frequência. Normalmente está acompanhada pelo espanto. Em um mundo onde há preferência por comprar comida, pagar o aluguel e obter algum conforto, adquirir alguns livros e não os ler pode parecer desperdício. Livros não enchem a barriga de ninguém, como costumava dizer meu pai toda vez que queria diminuir emocionalmente o seu primogênito.

Mesmo assim,... Para algumas pessoas, acumular livros se faz necessário – independente de qualquer explicação racional. Estar em contato com o objeto do prazer se torna imperativo. Não satisfazer esse desejo significa alimentar uma dor insuportável. É um interdito ao gozo.

Ter livros é um exercício voyeurístico. Para poder fruir da potência que está presente em centenas de páginas de papel pintadas com tinta preta (ou de outra cor) urge desfrutar da estética da capa e da encadernação, além dos inúmeros elementos paratextuais que compõem o volume (a textura do papel, o cheiro, o peso, a visão de tê-los emparedados na estante). Muitas vezes, o texto em si adquire valor secundário.

Anne Fadiman, em Ex-Libris – confissões de uma leitora comum (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002), dedicou um capítulo para contar algumas histórias monstruosas: seu pai, a fim de reduzir o peso das brochuras que lia nos aviões, rasgava os capítulos terminados e os jogava no lixo; seu marido costuma ler na sauna, sem se preocupar com as páginas fendidas pelo calor [e que] caem como pétalas numa tempestade; Thomas Jefferson retalhou uma primeira edição de 1572, em grego, das obras de Plutarco para intercalar entre as páginas uma tradução em inglês. 

Fico assustado ao saber que algumas pessoas praticam esse tipo de mutilação. Parece ser caso de procurar ajuda terapêutica. Prefiro ver os livros intactos, mesmo quando intocados. Não ler os livros – muitas vezes  evoca um respeito que muitos leitores desconhecem.  

Existem razões para não ler alguns livros. Ou partes deles. Dicionários e manuais técnicos são ferramentas de consultas. Basta tê-los por perto. Quando se faz necessário, procura-se pelo trecho específico e, depois que se obtém a informação, coloca-se o volume de volta na estante, onde ficará até o momento em que a sua ajuda for imprescindível outra vez.     

Ninguém está imune ao que há de nefasto na moda e no marketing. Engana-se quem pensa que somente os clássicos (esse território confuso) possuem lugar privilegiado na vida dos leitores. Ficção científica, tramas policiais, thrillers, pornografia, história em quadrinho (mangás), histórias com final feliz (ou, vá lá, infeliz), todos esses livros merecem alguma atenção. Não há limites para a voracidade de quem procura por algum tipo de entretenimento. Então, se não houver autocontrole, um passeio pelas livrarias (ou pelos sebos) pode resultar em compras compulsivas. E que ficarão intocadas em algum canto da estante.

Não li cerca de 40% dos livros que compõem a biblioteca. Não vou verificar se esse número é maior ou menor – não gosto de reduzir a paixão ao racionalismo da quantidade. Muitos títulos foram adquiridos em função de projetos acadêmicos que não puderam ter continuidade. Algumas ideias se tornaram inviáveis, mas isso só percebi depois de ter comprado 10 ou 15 livros sobre o tema. Em dado momento, resolvi ter um acervo de literatura brasileira – especialmente, a contemporânea. Continuo seguindo esse caminho com dedicação, embora saiba que o labirinto termina em abismo.   

Por fim, alguns livros estão presentes na biblioteca pelo capricho de tê-los. Provavelmente nunca os vou ler. Ou reler. Mas, sem eles a minha vida de leitor seria mais triste.