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terça-feira, 30 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (C)



Antes do almoço, constatei que não havia um único prato limpo. Olhei para a pia com tristeza, arregacei as mangas e, sem alternativa, lavei a louça. Detergente biodegradável, que o sabão de coco acabou. A ironia é que estou em licença-prêmio e o prêmio que ganhei foi a pandemia e os serviços domésticos.

Estou negligenciando as tarefas do lar. No início da quarentena estava todo entusiasmado com as novidades. Inclusive escalonei mentalmente horários para cada uma das atividades. Só não fiz tabelinhas e diagramas porque sou contra qualquer tipo de seriedade nas atividades de lazer. Com o passar do tempo (dias e noites de leituras, filmes e ócio), deixei cair a peteca, foi-se o boi com a corda, a vaca foi pro brejo. Triste fim de um jovem idoso enquanto (não muito) belo, (quase) recatado e (integralmente) do lar.

Mas vamos que vamos, que nesse fundo do poço ainda dá para cavar uns cinco metros – no mínimo. Pensando ampliar meus parcos rendimentos de funcionário público municipal de quinto escalão, vou iniciar outro projeto. Quero aproveitar o momento propício para empreender e gravar uma meia dúzia de tutoriais. A ideia é transferir para as novas gerações toda a minha experiência de trabalhador doméstico.

Alguns tópicos que deverão ser abordados: a difícil arte de varrer o apartamento, com destaque à limpeza dos cantos menos iluminados; a importância do sabão de coco para prevenir o ressecamento das mãos; como eliminar odores agressivos em áreas de conflito intestinal; parâmetros organizacionais para um melhor gerenciamento do espaço na geladeira; entre a Q-boa e o álcool gel construiremos um mundo mais seguro; você, encanador e eletricista em tempos de Covid-19; eliminação de manchas sem identificação no chão da cozinha; o rei do micro-ondas será o novo mestre do sabor; como cortar o cabelo e as unhas do pé sem sair de casa; a área de serviço como depósito geral; e diversos temas correlatos.



Serão vídeo-aulas de curta duração, mas com ensinamentos para a vida inteira. Não faltará didática, garanto! No entanto,... solicito a compreensão do distinto público-alvo para a inexistência de diploma universitário na área de ensino, pois o meu aprendizado foi empírico. Talvez, mais tarde, quando ficar rico ou ganhar um cargo no governo (o que vier primeiro), faça inscrição em algum curso à distância em universidade argentina ou alemã. Tenho muita vontade de desenvolver um pós-doutorado fake na área de armazenamento de vinhos e queijos diversos. 

Enquanto o projeto que me consagrará como coach virtual não decola... (em que direção?), continuarei enclausurado (na medida do possível), tomando o sagrado five o’clock tea com acepipes diversos. Nas horas vagas, farei dupla dançante com a vassoura nesse baile de (más)caras que a vida nos presenteou.  

 


segunda-feira, 29 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XCIX)


Woman in the rain, oil on canvas, Andrew King

Era quase noite e chovia. Torrencialmente. A rua deserta e a pouca visibilidade contribuíam para ampliar a sensação de desconforto. Os óculos – inúteis naquele momento – estavam pendurados na camisa. O vento insistia em empurrar o guarda-chuva para fora de minhas mãos.

Estava indo para a rodoviária. A razão de estar ali, naquele lugar, naquele momento, não é importante, é apenas um marcador que estou utilizando para situar a história no tempo e no espaço. O que quero contar é de outra natureza.

– Nunca esqueça isso, Jesus te ama.

O susto foi grande. Não pela frase, que se tornou um clichê, mas pela mulher – que surgiu não sei de onde. Não creio que fosse assombração, fantasmas ou alguma criatura de outra dimensão. Sei que isso não existe. Quer dizer,... De qualquer modo, concordo que a vida está repleta de enigmas.

Queria falar alguma coisa, talvez um mísero obrigado, mas, naquele instante, me faltaram as palavras. A angústia que acompanha a afonia se fez presente. Demorei alguns segundos para recuperar o controle da situação – era tarde demais, ela tinha desaparecido no meio da tempestade.

Imediatamente, percebi que estava me molhando. Por algum motivo, tinha fechado o guarda-chuva e, digamos assim, abraçado a chuva.

O que se seguiu foi o trivial. Fiz o que tinha que fazer e voltei para casa. Tomei um banho, bebi uma cerveja e esqueci o episódio – que ficou depositado em alguma gaveta da memória até alguns meses atrás, um pouco antes do início da quarentena.  



Fui ao centro da cidade, provavelmente para pagar alguma conta, não lembro exatamente o quê. E isso também não tem a mínima relevância. O que importa é que a vi. Quer dizer, não sei se era a mesma mulher. Depois de tanto tempo, certeza é algo que não existe. O que posso dizer é que me pareceu ser a mesma pessoa.

Era um dia de sol, mas – na minha fantasia – a mulher e a chuva estavam juntas, outra vez. Fiquei olhando de longe. Era como se estivesse brincando com aquele jogo em que é preciso procurar por sete diferenças em dois desenhos quase iguais. Conferi várias vezes os detalhes, procurando semelhanças, afastando as distinções. Não consegui concluir se era ou não a mulher que encontrei no temporal.

Alguma coisa me chamou a atenção do outro lado da rua. Foi só um instante. Quando voltei o olhar para o lugar em que ela estava, não mais a encontrei. Provavelmente entrou na galeria, pensei. Sem raciocinar, fui atrás. Como se fosse etérea, evaporou – ou algo similar.  

Foi o melhor desfecho possível. Não tenho a mínima ideia do que lhe diria se a localizasse. Lembrar da chuva seria patético. Possivelmente, ela me olharia incrédula, sem entender porque um desconhecido estava lhe atribuindo aquele tipo de comportamento. Ou, em hipótese mais assustadora, olho no olho, confirmasse a proposta religiosa e dissesse que essa minha busca por explicações evidenciava a força dos desígnios do Senhor.

Estou convicto de que, algumas vezes, deve-se manter fechado o baú do tesouro. O mistério pode ser mais valioso do que a verdade.


domingo, 28 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XCVIII)


Cafebreria El Pendulo, Cidade do México

O Covid-19 está matando as livrarias. Algumas editoras também estão com os dias contados. O modelo econômico, baseado no comércio eletrônico, vai – a médio e longo prazo – eliminar a diversidade e destruir a concorrência. Só sobrará (se sobrar) lugar para as grandes empresas – que podem oferecer descontos e promoções, atraindo o público que foi educado para levar vantagem em tudo.

Sim, eu sei que o parágrafo acima beira o niilismo e é contrário à (hilariante) filosofia do empreendedorismo. Mas, diga lá, nestes tempos de quarentena, como é que o pequeno negociante vai sobreviver com as portas fechadas, tendo que pagar aluguel, impostos e as despesas com água, luz, telefone, salários?

A crise atingiu um ponto nevrálgico: a distribuição. Os valores absurdos das tarifas postais estão inviabilizando as vendas de livros físicos, principalmente os usados (sebos). As empresas de transporte e entrega de mercadorias não conseguem ocupar o território abandonado pelos Correios. E os preços que praticam também não são competitivos.

Conglomerados como Estante Virtual, Portal dos Livreiros e Livronauta estão se arrastando para competir com a Amazon, Submarino e as cambaleantes livrarias Cultura e Saraiva – que não poupam esforços publicitários para ganhar clientes a todo instante. Mas, o inimigo principal do livreiro é outro: as plataformas que oferecem e-book (e seu primo pobre, o áudio-book) – basta acessar a loja virtual e fazer a compra. As vantagens são indiscutíveis: download instantâneo, não ocupa espaço de armazenamento e é mais barato. Ah, o e-read ajusta o tamanho de letra para aqueles que possuem problemas de visão.

Acumular livros físicos logo se transformará em excentricidade, algo como colecionar ossos de dinossauros, selos, moedas, pedras coloridas. A assepsia do prazer sensorial (peso, cheiro, tato), característica de um tempo em que as relações afetivas estão se tornado esgaçadas, acabará por produzir um mundo em que a mercadoria livro não terá personalidade (ou “aura”, na definição certeira de Walter Benjamin).

Não bastasse esse cenário desolador, a notícia recente da falência da matriz do Wirecard, o meio de pagamento usado pela Estante Virtual, jogou mais uma pá de cal em cima de quem está próximo dos últimos estágios de vida. Os sistemas de pagamento “on line” ficaram frágeis. A confiança está desaparecendo.  Além disso, a volatilidade da economia “real” (mas que se manifesta virtualmente) torna imprevisível qualquer plano de negócios que exija tempo de maturação. O imediatismo, atrelado às cotações do câmbio e da bolsa de valores, tende a destruir o futuro (se é que, nestes tempos tenebrosos, se pode falar em futuro).

As editoras estão adiando ou cancelando lançamentos. Para que colocar o produto à venda se não há compradores? Ou, em hipótese mais desoladora, se os eventuais clientes não conseguem acessar esse material? Tudo ficou mais difícil atualmente e os eventos pela Internet não possuem força suficiente para empurrar a área comercial dos livreiros.  

O que fazer? Ninguém sabe. Não há uma resposta para o desmoronamento. Comprar nas pequenas livrarias, sebos e editoras alternativas pode ajudar, mas não é garantido. É como dar um pouco de ar para quem acabará asfixiado. No entanto, enquanto for possível resistir... esse é o caminho que estou seguindo.      


Livraria Lello, Lisboa

sábado, 27 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XCVII)


                                              Nereu de Lima Goss e Estevam Borges 

Ele foi um dos jurados do concurso literário. Usava um casaco xadrez e cheirava a cerveja. Embora sua voz tropeçasse nas palavras, a poesia o acompanhava em exercício de linguagem límpida, sem prejuízo do que queria dizer para aqueles adolescentes entediados e que pouco ou nada entenderam daquilo tudo.    

Centenas de garrafas de “pão líquido” depois – quando me tornei amigo de Nereu de Lima Goss (1924-2004) –, disse para ele o quanto tinha ficado muito impressionado com aquele dia. Ele fez de conta de que isso não era importante, bebeu um gole de cerveja, resmungou alguma coisa inaudível, e mudou de assunto.

Funcionário público municipal, desenhista habilidoso, poeta sem sequer ter publicado um verso, aluno da primeira turma do Colégio Diocesano (hoje Bom Jesus), crítico de artes plásticas, cinema e literatura – são muitas as suas facetas.

Em algum momento, atendendo pedidos de Salim Miguel e Guido Wilmar Sassi, colaborou com a Revista Sul. Escreveu um artigo sobre Walt Disney e publicou alguns bico-de-pena como ilustração de artigos alheios. Não teria feito isso por livre e espontânea vontade. Não era um homem de vaidades, embora tivesse muitos talentos.

Dono de um currículo acadêmico invejável, jamais conseguiu se graduar. Os dois anos de engenharia civil (em Porto Alegre) se somaram com um ano de ciências sociais e oito de direito (foi jubilado quando tinha quase 70 anos). A ausência de diploma não o impediu de saber distinguir o importante do supérfluo, o talento da mediocridade.

Lúcido – como só é possível acontecer com aqueles que não se deixam arrastar pelo vendaval da loucura – preferia o lúdico à sobriedade. Invariavelmente, tinha uma piada pronta para ser disparada na direção dos tolos – era o seu escudo contra um mundo hostil.

Nereu foi o guru de uma geração de escritores e artistas plásticos. Nunca ensinou teoria literária, métrica poética ou truques de construção do discurso narrativo. Também não contestou erros de perspectiva, de proporção ou de tonalidades nas escolhas cromáticas. Detestava exercer habilidades professorais. Era contra juízos de valor estético. Acreditava que há espaço para todas as manifestações artísticas. Por isso, nunca recusava estar na companhia dos mais jovens, em mesa de bar, alternando copos de cerveja e comentários esparsos. Às vezes citava um ou outro artista de sua estimação. Isso acontecia mais para ilustrar alguma ideia do que para sugerir caminhos. Ouvia os disparates da juventude com estoicismo e, mesmo nos casos mais pavorosos, encontrava uma palavra de incentivo.

Das muitas histórias que protagonizou, escolho duas. Não porque são as melhores ou as minhas preferidas, mas porque mostram a sua expertise na arte de fazer trocadilhos.

Aconteceu nos anos 50, no aniversário de seu grande amigo Edézio Nery Caon. Morando em Porto Alegre e precisando enfrentar a eterna falta de dinheiro, enviou um telegrama com o seguinte texto: Felicidades aniversário pt Amigo e telegrama caríssimos pt.

Durante o curso de direito, em uma palestra sobre o alcoolismo, parabenizou o orador dizendo que a cachaça precisava ser (com)batida... de limão ou de maracujá.




sexta-feira, 26 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XCVI)



Os homens, incidentemente, se dividem também em duas categorias: os que são e os que não são de canivete.

(Fernando Sabino)

 

 


Perdi o Victorinox no início do século. O meu nome estava gravado no dorso vermelho. Quase comprei outro – várias vezes. Em algumas lojas de importados (Florianópolis e Joinville), pedi para ver o canivete. Durante alguns minutos manipulei réplicas daquele que desapareceu. Perguntei pelo preço. Não era caro, nem barato. No entanto, lutando contra todas as forças do universo, resisti. Sou um homem sem canivete. 

Aconteceu assim. Fui a São Paulo. O canivete estava unido ao molho de chaves. Na ida, nenhum problema. Na volta, a Polícia Federal imaginou que eu poderia praticar alguma ação terrorista. Os protocolos de segurança depois de 11 de setembro de 2001 ficaram mais paranoicos. O voo estava quase saindo, não tive tempo para encontrar alternativa. Vão-se os anéis, ficam os dedos.

Para ser bem sincero, o canivete não era muito utilizado. Sequer lembro-me de ter descascado laranja com ele. Como não sou da turma do cigarro de palha, também não piquei fumo-de-corda. Aliás, nem fumante sou. Apontar lápis é outra atividade que não executei. Escrevo a caneta ou no computador. Então, para que precisava do canivete?

Para lembrar. Era a recordação física de um período da vida em que imaginei que a felicidade seria eterna. Ver o aço da lâmina brilhando tinha como significado principal impedir que o passado fosse tratado como algo descartável ou substituível. Com o poder simbólico que atribuímos às relíquias, sentir o seu peso nas mãos ou no bolso equivalia a um ritual de celebração da memória.   

A ausência, mais do que assumir a forma de luto, amplia a frustração. É a potência da descontinuidade, o império da interrupção. De repente, sem que fosse permitido escolher por manter ou apagar o registro de algo que foi importante, o objeto que servia de ponte entre o presente e o passado deixou de existir.

Em algum momento impreciso a névoa do esquecimento encobrirá o percurso. Será como se o canivete nunca tivesse existido. E todas as coisas que a ele estão relacionadas também desaparecerão na bruma.

Antes cair das nuvens, que do terceiro andar, observou o cínico Machado de Assis, fingindo não compreender a intensidade de alguns sentimentos. Renato Russo foi mais cruel: (...) a gente chegou um dia a acreditar / Que tudo era pra sempre / Sem saber / Que o pra sempre / Sempre acaba!

             

quinta-feira, 25 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XCV)



A união entre literatura e cinema nem sempre resulta em felicidade. No caso das adaptações de livros de ficção, o leitor costuma deixar a sala de exibição com a sensação de que houve algum engano ou traição. E não adiante argumentar que são formas artísticas que utilizam linguagens diferentes e que o cinema, em comparação com a literatura, possui algumas limitações. É um problema insolúvel  mesmo quando a transposição é de qualidade.

Em paralelo, há uma série de filmes que adotam a metalinguagem. Isto é, que utilizam a literatura, os livros, os escritores e as livrarias como tema. Entre os clássicos desse subgênero pode-se mencionar Nunca Te Vi, Sempre Te Amei (84 Charing Cross Road. Dir. David Jones, 1987); Nunca Te Amei (The Browning Version. Dir. Anthony Asquith,1951; Dir. Mike Figgs, 1994); O Clube de Leitura Jane Austen (The Jane Austen Book Club. Dir. Robin Swicord, 2007); O Mestre dos Gênios (Genius. Dir. Michael Grandage, 2016); A Livraria (The Bookshop. Dir. Isabel Coixet, 2017).

O diretor francês Remi Benzaçon (conhecido pelo drama familiar Le Premier Jour du Reste de Ta Vie, 2008) acrescentou um novo título a esse série de filmes: O Mistério de Henri Pick (Le Mistère Henri Pick, 2019).

A editora Daphne Despero (Alice Isaaz) encontra um manuscrito na biblioteca de Crozon, na Bretanha. O texto estava na Seção dos Livros Rejeitados, que é o lugar onde estão depositados alguns textos que foram recusados por diversas editoras. Após ser publicado, As Últimas Horas de uma História de Amor se transforma em best-seller. O crítico literário Jean-Michel Rouche (Fabrice Luchini) não acredita que um texto tão interessante, que dialoga com a obra do poeta russo Alexander Sergeyevich Pushkin (1799-1837), possa ter sido escrito por Henri Pick, o falecido dono de uma pizzaria. Tomado por uma espécie de obsessão, decide que precisa descobrir quem é o verdadeiro autor da narrativa.



Misturando enciclopedismo e pedantismo, Jean-Michel faz questão de mostrar, a todo instante, a sua superioridade intelectual. Elitista delirante, condiciona a obtenção do sossego com o desmascarar o dono da pizzaria. Por isso, confronta a viúva e a editora em seu programa de televisão. Esse procedimento destemperado resulta em duas pequenas tragédias: perde o emprego e é abandonado pela esposa.

Sem grandes objetivos imediatos, Jean-Michel decide iniciar uma cruzada detetivesca para provar o seu ponto de vista. Quer saber quem escreveu o livro e porque o atribuiu ao Henri Pick, um sujeito que poderia, na sua visão, no máximo escrever as listas de compras ou algumas receitas. Em parte desse percurso conta com a ajuda de Joséphine, filha de Henri Pick (Camille Cottin)  

Mais do que um passeio pelo interior da indústria editorial, o filme revela alguns dos valores que a movimentam. A ilusão de que todos trabalham para publicar os melhores livros não se sustenta. Há uma cadeia de eventos e interesses muito específicos que passam despercebidos ao leitor. A publicação do texto não é a história do texto – é, muitas vezes, o apagamento desse percurso.

O labirinto possui muitos corredores e apenas uma saída. Quem quer escapar desse lugar nem sempre consegue ver a luz. São as relações afetivas que solidificam o saber literário e permitem que tudo se esclareça.  



quarta-feira, 24 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XCIV)


Sujei a camiseta com chocolate e a Rede Globo deixou de existir na minha televisão. Não sei que relação poderia existir entre estes dois fatos. Se estivesse na Grécia, consultaria o Oráculo em Delfos. No momento, isso é impossível. Estou residindo no interior de Santa Catarina. E Madame Rosa, a mais celebre das pitonisas do vilarejo, partiu para a outra dimensão faz alguns anos.

Órfão de quem poderia fornecer uma chave de interpretação ou transformar tudo em alguns números (o jogo do bicho e a quina se apresentam como opções lúdicas), só me restou jogar a camiseta no cesto de roupa suja e esperar que alguma mágica aconteça e o canal volte a ser sintonizado. Por enquanto, só consigo ver um aviso na tela: sem sinal. 

Minha relação com as emissoras de televisão está se distanciando velozmente. Assisto aos noticiários nos canais abertos e, esporadicamente, algum filme no meio da madrugada – quando a insônia resolve aparecer. No resto do tempo, essa Esfinge a-pós-a-moderna-idade fica quietinha, lá no seu canto.



Nem sempre foi assim. No final dos anos 60, inicio dos anos 70, só era possível sintonizar um canal de televisão: a TV Gaúcha, de Porto Alegre. Minha família costumava ir, no domingo à noite, jantar na casa de um dos irmãos do meu pai (ficava perto). Depois da refeição, era permitido assistir dois clássicos da época: o Show do Gordo e o Ringue Doze Marinha Magazine. Os mais novos suportavam o programa de calouros porque logo depois tinha as lutas de telecatch. Todo mundo torcendo pelo Ted Boy Marino.

Algum tempo depois, a TV Coligadas (Blumenau) entrou no ar. Quando mudamos para a região do Aeroporto Velho, meu pai comprou um televisor no crediário, incontáveis prestações. Foi esse aparelho que levei comigo quando fui morar no sótão da casa de minha avó, logo depois da Grande Tragédia Familiar, em 1972.

O episódio que causou maior confusão, nessa época, foi a noite que passei em claro para assistir “Cidadão Kane” (Dir. Orson Welles, 1941), filme que “todo mundo” considerava como obra de arte. Baixei o som o máximo possível e fiquei próximo do televisor. Fui dormir lá pelas quatro da madrugada. Minha avó, que tinha sono leve, ficou furiosa e, pela manhã, ao me acordar para ir à escola, não economizou no sermão! Precisei rezar uma dúzia de Ave Marias e Pai Nossos para tentar ser perdoado. O mais maluco disso tudo é que não entendi o filme e nem aquela história do botão de rosa (rosebud). Ah, dormi na aula.



Quando voltei a morar com minha mãe, a televisão ficava ligada o dia todo e a novela das oito era o momento em que o mundo parava para tomar a dose diária de anestésico romântico.  

Depois, fui desapegando, a literatura e o cinema se tornaram mais importantes. Preferi alugar filmes a assistir o lixo comercial que se tornou regra geral nas televisões abertas.

Tentei a televisão a cabo duas vezes. Conclui que não vale o dinheiro investido.


terça-feira, 23 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XCIII)

      


Estou planejando mudanças na biblioteca. Gostaria de me organizar melhor. Ou menos pior. O que vier primeiro. Mas,... (o que destrói qualquer iniciativa é a existência do “mas”). Não sei se tenho forças para trocar uns 600 ou 700 livros de lugar. Força, no sentido triplo de determinação, disposição e ação física. Além disso, procrastinar é um dos meus verbos favoritos.

Um livro tem peso médio entre 350 e 500 gramas. Deslocar cerca de 250 quilos entre um lugar e outro – mesmo que a distância entre os dois pontos seja menor que três metros – nunca é tarefa fácil.  

O principal motivo para essa movimentação é bastante simples – ao mesmo tempo, muito especial. No final do ano passado, fui surpreendido por um ato de generosidade. Ganhei cerca de 500 livros. Literatura especializada: teoria literária, análise do discurso, filosofia da linguagem e áreas afins. Livros valiosíssimos (em vários sentidos) e que estavam fora de meu alcance. Tudo o que precisava fazer era ir buscar.

Conto o milagre, mas não conto o santo (como dizia minha avó). Primeiro, porque não tenho permissão para isso, e, segundo, porque defendo a tese de que a bondade não precisa de publicidade. Em algum momento da vida, espero poder repetir o gesto – não como compensação pelo que recebi, mas porque o afeto é que nos distingue como seres humanos.



A epopeia (não consigo descrever os acontecimentos de outra maneira) de trazer os livros para cá está composta por vários episódios e algumas trapalhadas. Vou resumir. Não tenho carro (sequer sei dirigir) e, depois de várias tentativas, não consegui encontrar uma transportadora que fizesse o serviço com alguma rapidez e por um preço razoável. Cogitei em ir de ônibus e trazê-los no bagageiro. Talvez precisasse fazer duas ou três viagens. Percebi que isso era insensato e inviável economicamente. Quando estava quase desistindo, consegui companhia para a aventura. Um dia inteiro na estrada, sacos e caixas empilhados dentro do automóvel. Fomos e voltamos conversando sobre música, os amigos que temos em comum e bobagens em geral. Com exceção da dor nas costas – e que resultou na necessidade de uma dose cavalar de relaxante muscular –, foi divertido.

Agora, que passou algum tempo, depois que fiz um reconhecimento geral das novas aquisições, separei isso e aquilo, e confirmando que o suave tédio da ordem ainda não os envolve (como escreveu Walter Benjamim), aventei a hipótese de integrar os novos com o acervo geral. Isso só será possível se mexer nas estantes e redefinir lugares. É trabalho para vários dias.  

Será uma forma produtiva de aproveitar a quarentena, diz o Grilo Falante que habita o meu mundo imaginário. Então, tá! Vou agendar o evento. De preferência para daqui a uns cinco anos ou mais, pode ser?, disse o meu inconsciente – esse notório sabotador! A consciência crítica (monstro que não consegue existir sem a organização e a ordem) rebateu com um claro que não, isso é serviço para o aqui e o agora!

Ai, que preguiça, exclama o herói sem caráter em que me transformei.


segunda-feira, 22 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XCII)




Estou prestes a iniciar uma guerra. Buda não me abençoou com o dom a paciência. Mas, nem mesmo Sua Santidade, o Dalai Lama, teria serenidade para suportar cinco, seis ligações diárias oferecendo planos de telefonia e internet.

Várias vezes deixei o que estava fazendo para atender ao telefone (fixo e celular), sempre com medo de alguma notícia desagradável sobre o estado de saúde de minha mãe, que está com Alzheimer e diversas outras complicações.

Tenho ciência de que a remuneração do pessoal do telemarketing é ridícula e que eles precisam alcançar metas (provavelmente inatingíveis) em um trabalho estressante. Sou solidário. Não desejo esse tipo de sofrimento para o meu pior inimigo (desejo sim, mas o protocolo de convivência social exige a mentira). A questão é que não tenho calma para ouvir discurso decorado, sem a mínima empatia entre o que é repetido ad nauseam e o que sente o sujeito que está emitindo a mensagem. Nada pessoal, mas prefiro os robôs dos livros e filmes de ficção científica.  

As ligações acontecem nos horários mais esdrúxulos. Várias vezes o telefone tocou depois das oito da noite. Alguém determinou que sábados, domingos e feriados são dias propícios para oferecer internet super-rápida. O sujeito está em casa, preocupada com a temperatura da cerveja ou com o ponto da carne na churrasqueira, então não vai se incomodar em assinar um novo plano de negócios, vai?  

Estou convencido que isso acontece por questões de fuso horário. Com as mudanças climáticas, o aumento do buraco na camada de ozônio, as calotas polares derretendo e a alteração da linha do Equador, tudo ficou confuso. Ou difuso. Sei lá. Falta aliteração para esse tipo de interpretação multiuso.



Outro dia, tentaram uma abordagem menos engessada. A voz me perguntou se eu estava bem. Respondi com algum grunhido, nada muito diferente da reação instintiva que esboço diante das situações que me desagradam. Quem estava do outro lado da linha, em exercício de falsa intimidade, queria saber se eu estava com algum problema. Será que desejava me ajudar? Claro que não! Depois de alguma enrolação, talvez umas duas frases de autoajuda, o golpe seria aplicado. Ou seja, o sujeito queria ser ajudado. Bastava comprar o que ele estava vendendo.

Depois de alguns segundos de reflexão, pensei em esticar a conversa. Talvez inventar alguma doença contagiosa, provavelmente o Covid-19 (que está na moda), e, entre lágrimas, descrever minunciosamente as dores que acometem o corpo que maltrato diariamente. Desisti. Na quarentena, deve prevalecer a economia emocional. Então, mandei a pessoa plantar batatas no asfalto com enxada de borracha. Quer dizer, as palavras utilizadas na ocasião foram outras e não podem ser mencionadas agora – em respeito aos valores fundamentais da família tradicional brasileira.

Na maioria das vezes, desligo o telefone no momento que percebo o motivo da ligação. Mas isso está ficando chato e não resolve o problema. Um amigo me recomendou contar que estou desempregado e, antes de qualquer reação do outro lado, perguntar: será que a empresa de telemarketing não está contratando novos funcionários?

Parece que essa estratégia funciona e o nosso nome desaparece instantaneamente do cadastro de futuras vítimas. Não custa tentar. No amor e na guerra, nenhuma arma pode ser considerada excessiva (dizia minha avó, a sábia).

domingo, 21 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XCI)




Pastel de carne, queijo e ovo. Mais ovo do que queijo. Comprei na pastelaria da esquina, uns cinquenta metros de onde moro. Final da tarde. Não é possível dizer que é uma iguaria. Aliás, passa longe disso. Nenhum problema. O desejo não está ligado umbilicalmente com a qualidade.

Estava ouvindo uma seleção de músicas do Belchior. Uma das vantagens do YouTube. Distraído, sai sem máscara. No meio do caminho, percebi a maluquice e voltei. Voltei, mascarado, à pastelaria. Li metade de um conto do livro novo do Marcelo Moutinho. Uma história maluca sobre um roubo. Não consegui chegar ao desfecho, o garçom me avisou que a cozinha tinha finalizado a encomenda. Mais tarde retomo a leitura.        
  
Comi o pastel com garfo e faca – o que muita gente considera uma heresia. Para ampliar as reclamações, Coca-Cola no acompanhamento. Posso visualizar a imagem de algumas pessoas torcendo o nariz e lamentando a minha má alimentação. E, com a melhor das boas intenções, é possível que alguém tente me puxar para o lado negro da força, o vegetarianismo. Como quero evitar o uso do sabre de luz, não vou postar foto da fritura nas redes sociais. Muito barulho por nada (much ado about nothing).



Sonho de Valsa de sobremesa. Apenas um. Que preciso domar as vontades insensatas. As outras também precisam de freio. Sou desorganizado por natureza. Conjugo a bagunça como se fosse verbo principal. Muitas vezes, em momentos de meu passado obscuro, deixei a prudência de lado e fiz o que me deu na telha, como dizia minha avó. Evidentemente, isso resultou em arrependimentos variados. Não vamos contabilizar a desgraça, talvez outra hora, provavelmente daqui a uns vinte anos, I’m worse at what I do best / and for this gift I feel blessed (sou o pior no que faço de melhor / e por essa dádiva me sinto abençoado) diz a letra daquela música do Nirvana – que gosto de escutar na voz da Patti Smith.

Na cozinha, comi uns três ou quatro grãos de uva, um exercício desnecessário de gula. Fui buscar os panos de prato sujos, amanhã é dia de levar as roupas para a lavanderia. No banheiro, troquei as toalhas. No quarto, juntei camisas e calças em uma sacola. Não ficou pesada.  

Depois de quase quatro meses de confinamento, estou prestes a receber diploma de dono de casa. Suma cum laude. Tenho lavado pratos quase diariamente, não estou deixando o banheiro sujo (quer dizer...) e passo com frequência um pano molhado no chão da cozinha (aquelas manchas, ah, aquelas manchas estão me deixando irritado). Nos dias de sol, na sacada reabasteço o estoque de vitamina D. O resto do dia passo no escritório, escrevendo, lendo ou fuçando na internet. Assisto o mínimo possível de televisão.  

Daqui a pouco, vou deitar no sofá, me enrolar em cobertor, ler um pouco e ouvir música. Talvez alguns clássicos da MPB. Estou me sentindo saudosista de um Brasil que não existe mais.  Mais tarde, quando for hora de dormir, me despedirei suavemente desse que é o primeiro domingo do inverno.

sábado, 20 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XC)




A velhice é território maldito. A consciência de que a vida está se extinguindo causa danos irreversíveis. Nem todos os atingidos por essa fatalidade reagem de maneira satisfatória. Os herdeiros são os primeiros que enlouquecem.

Muitas histórias podem ser contadas a partir da velhice. As mais banais costumam relacionar essa fase da vida com a experiência, a generosidade e a submissão. Simultaneamente, todos os seres humanos costumam fantasiar pais e mães, tias e tios, avós e avôs como pessoas sem máculas, sem defeitos, exemplos de bondade e carinho.  Na vida “real”, nem sempre é assim. A idade cronológica não costuma eliminar os defeitos, as idiossincrasias e os desvios de caráter.

A idade está relacionada com centenas de doenças, complicações amorosas, diversos graus de violência, incontáveis acidentes e decepções que se somam com outras decepções. Quando se alcança a melhor idade (que é a forma com que os cínicos definem a velhice), resta viver com a aposentaria ridícula, algumas histórias amargas, milhares de ressentimentos e a solidão – protagonizada pelo abandono parental.  

Foi com o propósito de mapear algumas situações relacionadas com a decomposição física e intelectual de pessoas com mais de 65 anos que Alê Motta escreveu os 30 contos curtos que compõem Velhos (São Paulo: Reformatório, 2020). Algumas dessas histórias são tristes porque insinuam que o isolamento afetivo tem parentesco com a morte. Em paralelo, há outras situações e outros sentimentos. A personagem que se arruma para ir ao shopping e conversar com qualquer desconhecido ilustra um movimento de resistência: Só volto para casa quando me sinto feliz.




Quem tem alguma afinidade com o tema provavelmente vai se lembrar de Memento Mori (São Paulo: Companhia das Letras, 2001), o estranho e engraçado romance de Muriel Sparks. Nesse livro, os personagens (quase todos na faixa dos 70, 80 anos) se recusam a ficar esperando pelo momento em que tudo termina. Preferem se comportar como adolescentes mal-educados. Na primeira oportunidade mentem, traem, roubam e tentam machucar uns aos outros. Se não estivessem tão perto da morte, poder-se-ia dizer que estão lutando pela vida. Desesperadamente.

Os personagens de Alê Motta não são tão radicais. Eles estão em outra escala. As inquietudes são mais sutis. Por isso, muitas das situações não apresentam novidades. A ideia é facilitar a compreensão e permitir que o leitor reconheça nessas histórias o caso de algum parente ou vizinho – ou, talvez, em mergulho crítico, projete o próprio futuro.

Diversos contos apresentam o humor como uma espécie de válvula de escape para o traumático. Isso não quer dizer que os personagens são edulcorados e que há ambição de que tudo termine bem. Ao contrário, diversas narrativas revelam a desesperança, o passado opressor e o grotesco. A crueldade dos parentes (filhos, sobrinhos, genros e noras) aparece em cena com frequência. Sentimentos são moídos rapidamente por interesses pouco claros. Não há remédio que cure mágoas e dores.

O que está explicito em Velhos é relativamente simples e pode, salvaguardando as exceções, ser resumido no desfecho de um dos melhores contos do livro: não tenho mais paciência para esse papel de velhinho bom. Qualquer hora eu toco o terror nessa casa.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LXXXIX)




Amanhã, exatamente às 18h44, começa o inverno. Não sei se estou preparado para esse encontro climatológico. Inclusive porque o Brasil está envolto em brumas confusas. Um funcionário do governo trocou o Equador de lugar e isso talvez tenha afetado o Trópico de Capricórnio.

Conta a lenda grega que Hades (deus do mundo interior e dos mortos) raptou Perséfone, filha de Deméter (deusa da fertilidade e da agricultura) e de Zeus (senhor do Olimpo). Desolada, Deméter começou a chorar – o que causou alagamentos, enchentes e tempestades. O mundo se tornou sombrio. Os homens, ao ver que as plantações estavam sendo destruídas e que a fome estava se aproximando, exigiram que Zeus resolvesse o conflito. Deméter queria a volta da filha. Depois de muitas complicações, eles chegaram a um acordo. Perséfone voltou, mas só por seis meses. No resto do ano, fica com Hades. Quando Deméter está com a filha, o período de alegria é chamado de primavera e verão. Quando Perséfone está com Hades, o período de tristeza é chamado de outono e inverno.  

O frio exige que o indivíduo utilize uma espécie de armadura: camisas de flanela, casacos, cachecóis, luvas, meias grossas e botas. O uso de bonés, gorros e chapéus é opcional (mas as baixas temperaturas não podem servir de desculpa para a falta de elegância). Essas roupas de combate, por sua vez, possuem dupla finalidade. A primeira, não deixar que os corpos congelem. A segunda, encenar um ritual de sedução. O ato de despir – lentamente – peça por peça vai revelando contornos e surpresas. O desejo, ampliado pelo que estava oculto, fica mais intenso.         

Não existe calefação no Planalto Catarinense. Nas cidades, a urbanização desenfreada e os condomínios verticais contribuíram para que os fogões de lenha e as lareiras se transformassem em lembranças de um tempo que foi tragado pelo nevoeiro. Também desapareceram os pelegos e as cobertas de pena. Esses símbolos de um modo de vida foram substituídos por artigos industrializados em terras distantes, fábricas e lugares que desconhecem aqueles que comprarão os produtos postos à venda.

Nas manhãs em que as temperaturas costumam alcançar vários graus negativos, a geada e a neve modificam a paisagem. Lâminas de gelo substituem o verde dos campos. A respiração das pessoas e dos animais quase se solidifica. O inóspito se instala.



Café, chimarrão, chocolate quente, chá, quentão, ponche, vinho – dependendo do gosto e do freguês, há bebidas para todos. No entanto, ninguém pode negar que um martelinho daquela que matou o guarda têm o seu valor. Desce queimando. O resto não pode ser descrito com palavras, porque ainda não inventaram uma forma de nomear esse calorão.

A quarentena adiou as festas de são João. Possivelmente, alguém encomendará pelo telefone uma meia dúzia de paçoquinhas, uns pés-de-moleque, algumas espigas de milho verde e junto com pipoca de micro-onda fingirão que esse tipo de encenação é sinônimo de felicidade. Talvez seja servido canjica e arroz-doce. Transmissões via whatsup para algum parente próximo podem acontecer.

Winter is coming. O lema da casa Stark deixará de ser uma promessa. Durante mais três meses a ausência de Perséfone entristecerá Deméter. Aos mortais nada mais restará senão aquecer o corpo com sopas diversas e pinhão assado na chapa. E esperar, esperar, esperar.


quinta-feira, 18 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LXXXVIII)




Na metade dos anos 70 do século passado, quando fui aluno do segundo grau (a terminologia da época), a vida dos estudantes era diferente. Livros técnicos eram difíceis de conseguir. O mercado comercial das apostilas ainda estava sendo desbravado. Computadores portáteis só existiam em filmes de ficção científica. Gravadores eram precários (ou muito caros ou muito difíceis de carregar). Nada mais restava para o aluno senão copiar, com caneta ou lápis, o material de estudo.

Atualmente, escrever à mão se tornou artigo raro. Conheço poucas pessoas que ainda praticam essa arte. Fico surpreso quando descubro alguém que possui caneta tinteiro. Ter uma Parker revelava poder aquisitivo (quase o mesmo efeito das Mont Blanc). Tenho um amigo que coleciona canetas tinteiro. Deve ter umas cem. Nos momentos de lazer, pasmem, escreve com elas!   
  
Durante um período, principalmente quando fui aluno da UFSC, carreguei um bloco pequeno. Fazia anotações, tentando tornar perene o que, durante a aula, era volátil. A grande dificuldade, mais tarde, era decifrar o que estava gravado no papel: meus garranchos não são muito legíveis – nem mesmo para mim. Esse foi um dos motivos porque troquei a escrita cursiva pela letra de forma.

Não tive aulas de caligrafia (será que ainda existem?) e, frequentemente, era confrontado com pessoas que tinham letra bonita. Escrever de forma harmônica e respeitando as linhas do caderno permitia uma espécie de distinção social. Motivo de orgulho familiar. O que não estava expresso, naquela época, é que a caligrafia estava relacionada com questões de gênero. A expressão letra de moça tinha como tradução capricho, elegância e feminilidade. Estava vetada ao homem que era homem uma escrita que demonstrasse delicadeza ou induzisse suspeitas sobre a sua masculinidade. Muitas contradições para pouca tinta.

Tive uma professora de biologia que defendia a tese de que aluno ocupado era aluno que não incomodava. Então, mal entrava na sala de aula e começava a ditar a matéria em alto e bom som. Pode ser também que ela estivesse apaixonada pela própria voz (essa hipótese deve ser descartada: a voz da mestra lembrava taquara rachada). Preenchi cadernos e mais cadernos com anotações sobre componentes celulares – felizmente, essas anotações se perderam e esqueci as diferenças entre complexo de Golgi e mitocôndria.  



Quando a máquina de escrever se tornou popular (e mais barata), a escrita passou a ser efetuada à máquina. Ninguém poderia almejar um emprego razoável se não soubesse datilografia. Para quem ambicionava ter algum tipo de relação com a escrita e a literatura, ter uma máquina de escrever era fundamental. Tive várias – inclusive uma elétrica (suprassumo da modernidade). Bons tempos. Para o bem ou para o mal, sou da turma que pratica a dedografia, um eterno catar milho, como se dizia antigamente.  

Com os computadores e os smartphones, a datilografia foi substituída pela digitação – que se espalhou pelo mundo como se fosse um vírus mortal.  Simultaneamente, há quem pense no corretor automático como uma vacina contra a ignorância gramatical. Obviamente, não o é. Jamais será.

O mundo ficou mais ágil e os conceitos estéticos adquiriram contornos inovadores. A escrita à mão perdeu a finalidade. Ou melhor, a indústria da informática (através de milhares de aplicativos) a transformou em outra coisa e que é difícil de ser definida. Espero que, assim como a humanidade evoluiu da escrita cuneiforme e dos hieroglifos para os alfabetos atuais, também possamos sobreviver a essas mudanças.  

quarta-feira, 17 de junho de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (LXXXVII)




Em literatura, sou a soma de minhas ausências. Tento corrigir isso, na medida do possível. Mas, em vários momentos, a euforia é substituída por algum imprevisto. Na falta de imagem melhor, é como estar correndo a maratona e – a dez metros da chegada – ser ultrapassado por 300 quenianos.

Olho para a pilha de livros que está no criado-mudo e respiro fundo. Preciso ler, urgentemente, os últimos do Itamar Vieira Júnior, Paulo Scott, Javier Arancibia Contreras, Julian Fuks, Miguel del Castilho, Natalia Borges Polesso, Joca Reiners Terron, Reinaldo Moraes, Mirian Alves. Isso para não falar nos romances de Lima Trindade, Rogério Menezes e Glauber Soares, que comecei e não terminei. As biografias de Walter Benjamin, Lima Barreto e Susan Sontag aguardam atenção e leitura.

Muitas pessoas reclamam (nas redes sociais) que o clima da quarentena está atrapalhando o ritmo de leitura. Não é o caso. Continuo firme e forte. Leio em todos os instantes possíveis. A diferença é que resisto em ler o que deveria. Em lugar de um dos acima citados, que estão alinhados com a minha formação intelectual e acadêmica, fui buscar na estante romance de ficção cientifica que comprei a mais de seis meses e que estava destinado a acumular pó por mais meio ano.

Provavelmente o meu inconsciente está procurando o escapismo. Ou seja, uma forma de autoproteção contra um ambiente em que o real é mais assustador que a ficção. O equilíbrio compensatório surge quando é possível encontrar algo ainda mais absurdo que a realidade. Nesses termos, talvez se enquadre o sucesso dos filmes adaptados de histórias em quadrinhos, onde o espectador, diante de situações esdruxulas, ignora os princípios mais elementares da lógica e aceita o cinema como uma válvula de escape para as tensões cotidianas.

Esse tipo de raciocínio é muita psicologia para pouco trauma. Leitores de romance histórico, policial, espionagem, aventura ou fantasia não se preocupam em explicar porque gostam deste ou daquele gênero. O mesmo acontece com quem mergulha na poesia e/ou se interessa pela dramaturgia. O problema não está na preferência.

Almas bondosas talvez imaginem que a fluidez da leitura está relacionada com o número de páginas. Então, recomendam contos e crônicas. É uma ideia – mas só para algumas crônicas. Não todas. Por sua vez, o conto está em outro patamar. É uma unidade ficcional complexa, repleto de nuances e entrelinhas. O leitor precisa ter paciência e respeitar a tessitura narrativa.



O que a pandemia atrapalhou foi outra coisa. Estou com dificuldades para escrever. Tenho dois ensaios pela metade. Não há como avançar na direção do desfecho. As ideias escaparam, fugiram, foram passear em lugar incerto e não identificado. O máximo que consigo escrever são essas 500 palavras diárias – e isso porque impus para mim mesmo uma rotina espartana. Sento diante do computador, todas as tardes, e digo para mim mesmo que é necessário decifrar a Esfinge. Obviamente, relembro causos, aventuras e amigos, elaboro discussões sobre o nada e roubo de mim mesmo ideias antigas. Em último caso, mergulho no ficcional. Por enquanto, como dizem no Planalto Catarinense, não é aquilo tudo, mas está dando para o gasto.