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sexta-feira, 28 de julho de 2023

CANSEI DE HARUKI MURAKAMI

 


Não sei como aconteceu. Talvez seja apenas um fenômeno passageiro. Uma espécie de ressaca literária, causada pelo excesso. De qualquer forma, estou com dificuldades para ler os últimos textos de Haruki Murakami. Não encontro novidades em narrativas obsessivas, povoadas por mulheres estranhas com quem o autor ou o narrador (não) teve casos amorosos, gatos fugidios, baseball, jazz e Beatles. Tudo me parece raso, sem substância. Ou melhor, uma repetição sem fim.

Em que buraco negro desapareceu o escritor de Norwegian wood, Kafka a beira-mar, O elefante desaparece e Homens sem mulheres? Talvez essa pergunta seja retórica, porque para algumas questões jamais haverá explicação razoável.

Alguns dos livros de Murakami, todos publicados no Brasil pelo selo Alfaguara, parecem atender prioritariamente o interesse comercial – as questões literárias se tornaram secundárias. E isso, de certa forma, está explícito em Romancista como vocação, um conjunto de lugares comuns com pretensões de refletir o itinerário literário do escritor. Falta sabor, falta humor, falta esforço para produzir uma narrativa interessante. Parece um livro de encomenda.

Quem está interessado em estudar o metaverso na literatura, não deve comparar a trilogia 1Q84 com o excelente A cidade & a cidade, de China Mieville (São Paulo: Boitempo, 2014).  No contraste entre um e outro, o livro de Murakami parece rabiscos de criança – embora não possa negar que a criança tenha algum talento (que talvez se desenvolva em algum momento, só deus sabe quando).

Ouça a canção do vento, Sono, O incolor Tsukuru Tazaki e os seus anos de peregrinação e Após o anoitecer são livros descartáveis, aborrecidos. Você lê e depois esquece, porque não agregam valor.

Os editores capricharam na edição de Abandonar um gato – o que falo quando falo do meu pai (capa dura, papel de qualidade, ilustrações de Adriana Komura). Bonito. Mas, isso é tudo. Os textos são simplórios, umas crônicas sem sal. Trezentos escritores escreveram sobre a paternidade com mais emoção, com mais afeto (ou ódio) e de forma mais interessante.

Primeira pessoa do singular (o último livro lançado no Brasil) mostra contos desiguais, discursivos e pouco atraentes.  Há pouco proveito em Sobre um travesseiro de pedra e Nata, dois textos que se perdem no meio de uma tempestade que não acontece. A parte discursiva sobre as mulheres feias em Carnaval beira o ridículo (por que tantas explicações?). Charlie Parker plays bossa nova tem algum charme, mas poderia ter sofrido um processo de enxugamento textual – o que lhe daria mais agilidade. Os outros contos são praticamente irrelevantes.

Depois de ler essas minhas observações, alguém pode alegar que estou sendo intolerante com um escritor que, amanhã ou depois, poderá ser premiado com o Prêmio Nobel de Literatura. É possível. Em todo caso, faz bastante tempo que não me alegro com o nome de algum ganhador. Aliás, nem lembro a última vez que isso aconteceu.   

P.S.: O outro Murakami, Ryu, quase desconhecido no Brasil, propõe um mundo diverso, menos edulcorado, mais agressivo e inconfundivelmente japonês. Quem quiser conferir, procure por Azul quase transparente (São Paulo: Brasiliense, 1986) e Miso Soup (São Paulo: Companhia das Letras, 2005). Estão à venda nas melhores casas do ramo, digo, em sebos.


terça-feira, 25 de julho de 2023

SAIA DA FRENTE DO MEU SOL

 


Alguns livros não precisam estar amarrados na tradição da linearidade. Transgredir se mostra, em várias ocasiões, interessante – porque quebra os padrões e produz uma linguagem (pele que envolve o texto) que causa o estranhamento, induz à reflexão e, sobretudo, permite o exercício da criatividade.

Transitando entre a biografia ficcionalizada, o ensaio literário e a autoficção, Saia da frente do meu sol se concentra em um tempo familiar em que as relações de afeto tinham um significado diferente daquele que vigora atualmente: Já fomos uma família imensa, dessas que se reúnem toda semana para comer, beber e bater boca. Hoje somos poucos, e não nos damos bem. O tempo muda a percepção das coisas e dos sentimentos. 

Em algum momento de sua vida, Ricardo morou no quartinho dos fundos da irmã mais nova. Quando ela faleceu, ele se desentendeu com o viúvo. Então, reivindicando os vínculos de sangue, se mudou para a casa da outra irmã – mãe de Felipe Charbel. Doente, vivendo com uma aposentadoria insignificante, era um estorvo.   

Vinte anos depois da morte do tio-avô, Felipe, ao encontrar algumas fotografias que estavam dentro de uma caixa de sapatos, reconstrói o percurso do personagem – com quem conviveu durante cinco anos. Ele quer pagar uma dívida com o passado. Mas não sabe o que ficou devendo, nem como isso será possível. Quer desvendar o mistério que todos evitam mencionar. Por isso, escreve.

No entanto, esse reencontro com o passado não se dá como soma de alguns episódios das histórias familiares. Felipe, na tentativa de entender as pegadas do tio, mergulha no chiaroscuro das imagens fotográficas, como se isso fosse suficiente para indicar uma rota de compreensão. Encontra um beco sem saída. Os episódios que imagina estarem por trás das imagens são apenas suposições, formas de preencher os espaços vazios de uma biografia destinada ao esquecimento.

Então, ao perceber que o real está distante (e talvez não possa mais ser alcançado), Felipe, de certa forma, rompe com os limites da tessitura biográfica e usa o livro de Pierre Michon (Vidas minúsculas) como um suporte para o que supõe ser uma alternativa textual. Mais uma impossibilidade. O que produz é um texto fragmentário, descosturado – fios soltos que parecem não ter outro objetivo senão dar conta de que escrever sobre o tio é uma forma de escrever sobre si mesmo. Então, no intervalo entre um palpite e outro sobre a vida que pode ter sido (ou que ele gostaria que tivesse sido), entre os olhares e os comentários que dirige às fotografias, faz menção ao próprio casamento (que não deu certo), discursa sobre a angústia de tentar encontrar um lugar no mundo, lamenta a morte do pai e a briga com a mãe (por questões políticas), comenta um conto inconcluso que escreveu, revê as anotações no diário, lamenta as mesquinharias do cotidiano – um imenso tagarelar. Talvez seja uma forma de dizer (sem dizer) que as palavras são insuficientes para dar conta de tudo o que o aflige – e, por extensão, o que desejaria encontrar na vida do tio morto.

Ao final do livro, Felipe nada conclui – porque não há o que concluir. É como se ouvisse a voz do tio: Que papo torto, Banguense. As pessoas são o que elas são.


domingo, 23 de julho de 2023

LUA DE SANGUE / SOMBRAS DO SOL

 


N(ora) K(eita) Jemisin, vencedora dos prêmios Hugo (2016, 2017, 2018, 2020), Nebula (2017) e Locus (2017), escreve ficção especulativa. Ou seja, consegue unir fantasia, ficção científica e terror. Esse hibridismo de acontecimentos fictícios em um determinado contexto histórico – mas que nunca aconteceram – flerta com o "e se....". Em outras palavras, os fatos narrativos refletem eventos que poderiam ter acontecido ou, em circunstâncias especiais, podem acontecer. Robert Anson Heinlein (1907 – 1988), Philip K(indred) Dick (1928 – 1982) e Margaret Eleanor Atwood (n. 1939) são alguns dos expoentes desse gênero literário.

No Brasil, os livros mais conhecidos de Jemisin são Nós Somos a Cidade (Suma das Letras, 2021) e a trilogia apocalíptica A Terra Partida, composta por A Quinta Estação, O Portão do Obelisco e O Céu de Pedra, todos publicados pela Editora Morro Branco em 2017, 2018 e 2019, respectivamente.

Recentemente, a Morro Branco publicou a série Dreamblood, composta por dois volumes: Lua de Sangue (2022) e Sombras do Sol (2023). São livros com capa dura, projeto gráfico e papel de qualidade.

Um resumo básico do enredo dos dois livros (que podem ser lidos isoladamente) precisa contextualizar a cidade-estado Gujaareh, que está localizada na foz do rio Sangue da Deusa e ao longo do Mar da Glória, próxima de Mil Vazios, uma região desértica, e está cercada por tribos pouco amistosas (que só se unem quando estão em guerra contra um inimigo comum). É nesse espaço geográfico que a narrativa está situada.

(Qualquer associação com a série Duna, seja pelo deserto, seja pelos povos bárbaros, não deve ser desprezada, inclusive porque existem muitos pontos de contato entre as duas propostas: sistema político autoritário, intrigas palacianas, mundo feudal, cenários áridos, poderes extraordinários, questões sexuais, armamentos rudimentares, etc.)

Nos dois livros de Jemisin os protagonistas fazem parte de uma seita religiosa (centralizada em Hetawa, o templo da deusa Hananja) que usa a magia, a narcomancia, a fitoterapia e a cirurgia para salvar vidas, curar ferimentos e fornecer alivio espiritual. Os princípios básicos que regem o grupo são o controle da paz e o cumprimento das leis – objetivos impossíveis de serem alcançados em uma sociedade guerreira. Os religiosos se dividem em Professores, Coletores, Compartilhadores e Sentinelas, além de Aprendizes e Acólitos – cada um com tarefas específicas e que, em conjunto, constituem o cerne da organização. Como o imprevisível faz parte do enredo, além dos inimigos naturais (a ambição, a soberba, a corrupção, a ira, a luxúria) completam o enredo os Ceifadores e a Sonhadora Desvairada – forças da destruição e da morte.

A forma com que os dois livros estão ligados com o mundo onírico impressiona, porque contrapõem o sono e o sonho com o acordar (que nunca significa apenas o despertar). O desvelamento do mundo das sombras, das coisas que são encobertas pelo tempo em que o corpo está descansando, muitas vezes servem para iluminar o caminho da vida e permitir que se encontrem soluções para aquilo que parecia não fazer parte do problema.   

Enquanto em Lua de Sangue” o Coletor Ehiru e seu aprendiz, Nijiri, se envolvem em complicações políticas e precisam fugir de Gujaareh, Sombras do Sol relata a retomada da cidade, que foi invadida pelo Protetorado Kisuati. A formação de um exército no oásis Merik-ren-aferu e os dilemas que acompanham esse processo constituem a espinha dorsal do segundo volume, que também conta com uma ameaça mortal ligada ao sono e que ameaça matar milhares de pessoas em Gujaareh.

Entre um volume e outro, acontecem muitas reviravoltas (plot twist), questões políticas, envolvimentos amorosos, violência física e mental e, não menos importante, o desmitificar da potência masculina (principalmente no volume dois).

Mais do que excelente entretenimento, os dois livros propõem uma série de questões filosóficas – que dialogam com a história da humanidade e com o comportamento (nem sempre exemplar) dos humanos.


N. K. Jemesin


sábado, 15 de julho de 2023

INDIANA JONES

 



Nas tardes de domingo, nas décadas de 1970 e 1980, as matinês dominicais dos Cines Tamoio e Marajoara eram mágicas – apesar do desconforto das cadeiras de madeira. Não importava se estava em cartaz algum faroeste espaguete, Tarzan, Bruce Lee, temas bíblicos, Bud Spencer e Terence Hill ou Flash Gordon no Planeta Mongo. Tudo era diversão.

Em um desses dias do passado longínquo, não sei qual, nem em que cinema, talvez em outro, o Marrocos (onde passava os melhores filmes), fui ver Indiana Jones e os Caçadores da Arca Perdida (Raiders of the Lost Ark. Dir. Steve Spielberg, 1981). A sessão aconteceu, provavelmente, uns cinco anos depois do lançamento em terras ianques – naquele tempo era assim, o instantâneo demorava uma eternidade.

O professor (doutor em arqueologia) Henry Walton Jones Júnior (Indiana Jones, Indy, para os amigos) causou espanto. Era um herói diferente. Inclusive no figurino – chapéu, chicote, jaqueta de couro. Sem superpoderes, ele deixava a sala de aula para viver aventuras malucas em lugares misteriosos, cavernas cheias de armadilhas, cobras venenosas e insetos que só deveriam existir em livros de entomologia. Indy, depois de escapar de ameaças terríveis (tiros, socos e outras trivialidades), conseguia impedir que os inimigos se apoderassem de relíquias magníficas (que, depois de recuperadas, eram doadas a museus).

Enquanto devorava uma barra de Diamante Negro ou algumas balas azedinhas, eu me transportava para dentro da tela – como se quisesse participar da trama. Há quem chame isso de encantamento.

Confesso que assisti a todos os filmes da franquia protagonizada por Indiana Jones. O único que me desagradou foi Indiana Jones e o reino da caveira de cristal (Indiana Jones and the kingdom of the crystal skull. Dir. Steven Spielberg, 2008), que é uma bomba (gíria ligeiramente antiga e que, dependendo do contexto e do gosto do freguês, abrange significados diversos: ruim, péssimo, lixo).

Alguns dias atrás, cheio de expectativas, fui ver Indiana Jones e o Chamado do Destino (Indiana Jones 5 – The Dial of Destiny. Dir. James Mangold, 2023). Salvo engano, o último filme da franquia. Quer dizer, ao longo do tempo, por razões comerciais, pode surgir algum spin off. Ou seja, algum filme derivado. Uma possibilidade seria manter a estrutura básica e transferir as aventuras para Helena Shaw (interpretada por Phoebe Waller-Bridge), que, depois de mil e uma peripécia, praticamente rouba o papel do protagonista no quinto episódio da série. Só o tempo dirá se isso será possível. 

Aos 80 anos, Harrison Ford não deveria ter fôlego para lutas corporais em cima de trens em movimento, perseguições automobilísticas, tiroteios ou voltar ao passado histórico (encontrar Arquimedes durante o cerco de Siracusa). Mas o velhinho é duro na queda e, obviamente, conta com a ajuda de alguns truques cinematográficos – que invariavelmente realizam o excesso como se fosse verdadeiro. É o caso.

Sentado nas poltronas confortáveis de um cinema que se caracteriza pela péssima programação, me diverti com o filme (legendado, é claro). Antes de comprar o ingresso, fiz o dever de casa, isto é, li a crítica especializada – que fez inúmeras restrições ao novo Indiana Jones. Sem qualquer escrúpulo, descartei os defeitos apontados – inclusive o uso dessa coisa que chamam de inteligência artificial (que é artificial e pouco inteligente). Os heróis da nossa juventude estão imunes aos julgamentos pejorativos.  

 

terça-feira, 11 de julho de 2023

A HISTÓRIA DESENHADA NAS PAREDES EXTERNAS DA BIBLIOTECA PÚBLICA




Nos últimos anos, várias manifestações artísticas estiveram presentes nas paredes externas da Biblioteca Pública Carlos Dorval de Macedo (Rua Zéca Neves, s/n, Lages, SC). Muitas delas receberam a reprovação de quem possui pouca tolerância para o poder subversivo do grafite. Para agradar os que esbravejaram contra riscos e rabiscos dos bárbaros que sujaram o patrimônio público, comprovando que gosto se discute, os textos e os desenhos foram sendo apagados na medida em que surgiam.

Como reação contra as formas artísticas contemporâneas de ocupação urbana, o poder público estabeleceu uma estratégia de higienização das paredes da Biblioteca. Ou seja, permitiu alguns murais comportados. A última tentativa está em exibição para o distinto público. Basta ir até o Parque Jonas Ramos (Tanque) e admirar as pinturas.

Usando cores que induzem bons sentimentos (energia, tranquilidade, limpeza, etc.), os murais sao a reprodução de uma interpretação histórica simplificada. Dividido em duas partes, o trabalho segue uma proposta estética conservadora. Na parede direita da Biblioteca está retratada a Catedral e Nossa Senhora dos Prazeres, a padroeira do município. Na parede esquerda, o ambiente rural se apresenta em três partes: tropeiro, estrada de ferro e igreja de madeira (que lembra a igreja de Morrinhos, na Coxilha Rica). São registros clássicos da mitologia que emoldura o Planalto Catarinense – e que ratificam um pensamento estratificado e, para alívio geral, agradável ao olhar.




O visual que não causa discussões ou polêmicas indica o impedimento para quaisquer outras formas de produção gráfica naquelas paredes. Quem vai querer danificar um trabalho tão bonito? Nem mesmo um vândalo profissional seria capaz de tamanha heresia. 

Essa maneira de pensar, em lugar de promover a pluralidade e a diversidade artística, estabelece uma muralha contra tudo o que não obedecer as regras ditadas pela cartilha do bom gosto. Resta saber o que é bom gosto e quem recebeu o certificado de censor oficial das artes plásticas.



Ao adotar a hagiografia, na medida em que impulsiona o triunfalismo daqueles que ocupam posições centrais nos livros de história, a narrativa descarta a possibilidade de fornecer visibilidade para aqueles que não se destacaram no mundo dos homens de bem. E isso significa que existem pessoas que não querem entender que a história não está envolta em sentimentos edulcorados. 

Poucos se lembram que os latifundiários, abastecidos pelos tropeiros que transitavam pelo entreposto comercial (a aldeia em seus primórdios), massacraram índios e negros. Poucos se preocupam com o papel domesticador da igreja católica em favor das elites políticas (da fundação até a atualidade). Poucos são capazes de analisar os crimes ecológicos que resultaram do ciclo da madeira, quando florestas de Araucária angustifolia foram transformadas em dinheiro (que, rapidamente, foi dilapidado, como diziam os antigos, com mulheres ligeiras e cavalos lentos). Consoante com esse tema, não existem estudos significativos sobre as trabalhadoras do sexo nas décadas de 1950 e 1960. 

Outras questões importantes para quem quiser entender a formação histórico-cultural da região também foram esquecidas. Em algum momento impreciso, alguém (quem?) decidiu que a cultura do município deveria ser submetida ao poder anestésico da publicidade. Nessa linha, o uso de alguns símbolos (cristalizados pela tradição) constitui uma forma dissimulada de enaltecer esse projeto alienado. Turistas e ingênuos são o público-alvo.

Os murais nas paredes externas da Biblioteca Pública são esteticamente interessantes  – mas isso não é o suficiente. A beleza muitas vezes se parece com um nevoeiro – encoberta a paisagem, o horizonte desaparece, e tudo se transforma em outra coisa, muito diferente do real. 





quinta-feira, 6 de julho de 2023

HERDEIROS DO TEMPO

 


Alguns livros deveriam incluir uma cinta de advertência aos leitores. Por exemplo: este texto pode causar efeitos desagradáveis em pessoas que possuem... (e se completaria a frase com o medo ou o trauma correspondente). Claro, isso parece ser anticomercial, mas evitaria sustos e abandonos da leitura.  

Um exemplo singular dessa proposta encontra-se na ficção científica Herdeiros do tempo, de Adrian Tchaikovski (São Paulo: Morro Branco, 2022). O livro está dividido em dois planos narrativos. O primeiro, do subgênero space opera, relata uma série de acontecimentos que ocorrem dentro de uma nave espacial – que está procurando por um planeta que possa abrigar os últimos sobreviventes da Terra (que foi destruída por alguma catástrofe).

O planeta ideal para os humanos colonizar está descrito no segundo plano narrativo. No entanto, esse novo Éden é habitado... por aranhas, formigas, pulgões e alguns seres aquáticos de pouca relevância (estomatópodes). As aranhas são grandes e, digamos assim, antropomorfizadas. Descontadas pequenas diferenças, o mundo dos aracnídeos pouco difere do mundo terráqueo. As aranhas possuem uma linguagem própria, acumulam conhecimento científico (teia em expansão do progresso), estão sempre em guerra (contra formigas, contra outras aranhas) e acreditam em um deus onipotente, onipresente e onisciente. Nesse mundo, governado pelas fêmeas, os machos são indivíduos de pouca utilidade – serviços braçais, reprodução, submissão.

Enquanto as aranhas devoram outras aranhas, aqueles que estão na órbita do planeta lutam pelo controle da nave espacial (Gilgamesh). Imagem refletida no espelho narrativo, os dois mundos compartilham da febre do poder – sem se importar com qualquer alternativa que não seja o projeto de dominação. Milhares de indivíduos são descartados nas duas situações e isso parece não ter a mínima importância para aqueles que sobrevivem. Aos vencedores, os despojos.

Depois de muitas complicações narrativas, cada um dos lados se prepara para o inevitável. Ou seja, os humanos invadem o território alheio. A construção do novo paraíso exige destruir quaisquer obstáculos que surjam no horizonte, confirmando o enredo de outras narrativas com temas similares – exaltação do colonialismo, do armamentismo, do fascismo e de uma suposta superioridade humana.

Um tema muito comum na ficção científica, a possibilidade de controlar o tempo, também está presente no livro. Os habitantes da nave podem entrar em uma espécie de hibernação e despertar alguns anos (décadas) depois – como se nada tivesse acontecido no intervalo. Embora a imortalidade não seja possível, a velhice pode ser adiada por prazo indefinido. O mesmo não acontece com as aranhas, que precisam transmitir o conhecimento (entendimento) para as gerações seguintes – o que ocasiona algumas perdas, mas também envolve acréscimos.   

Nessa narrativa não há final feliz – a derrota atinge a todos. E o que se inicia como uma espécie de construção da esperança para os humanos vai, aos poucos, se transformando em terror. Como sói acontecer nesse tipo de situação tudo se liquefaz em caos. 

Por fim, não se deve recomendar a leitura das 517 páginas de Herdeiros do tempo para aqueles que sofrem de aracnofobia (medo de aranhas) e/ou mirmecofobia (aversão doentia às formigas). Isso, provavelmente, evitará sessões intermináveis de terapia e o uso compulsivo de antidepressivos. No entanto, além do desconforto, a narrativa avança na direção da transgressão e do estranhamento – e isso deve ser entendido como uma qualidade, aquela condição que fornece distinção ao texto, afastando-o da vala comum.