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sexta-feira, 28 de abril de 2023

MULHER COM SORVETE (texto modificado)

 


Meio da tarde. Ele estava indo resolver um problema familiar no subúrbio. Foi de ônibus. Poderia ter ido de táxi ou de uber. Mas − como convém aos bons moços, aqueles que se preocupam com o meio ambiente e com o planeta −, preferiu o transporte coletivo. Depois de ter sido extorquido pelo cobrador, encontrou um lugar vazio. Logo depois, sentaram ao seu lado uma mulher e um menino. No colo da mãe (ele imaginou que fosse), a criança manipulava um boneco semelhante a um "transformer". Rapidamente, ele se desligou do mundo objetivo. Esqueceu a falta de conforto e o "tleque, tleque" irritante do brinquedo.


Enquanto as ruas estavam sendo engolidas pela velocidade, olhou pela janela. Foi dessa maneira que percebeu que a cidade está em transformação. Dois anos antes (a última vez que havia feito aquele passeio), as casas dominavam a paisagem. Agora, se tornaram minoria. Envoltos em nuvens de poeira e barulho ensurdecedor, os prédios em construção estão verticalizando a geografia urbana.


O ônibus parou diversas vezes. Passageiros entraram e saíram. Todos pareciam estar com pressa. Em um dos pontos, uma senhora teve dificuldades para pagar a passagem. Como ele sempre foi incapaz de calcular a idade dos outros, concluiu que ela deveria ter uns, sei lá, 55 anos. Com uma elegância peculiar, estava usando um vestido floral (ligeiramente desbotado pelo uso) que provavelmente não faria sucesso em alguma Fashion Week. As suas mãos estavam ocupadas. A mão direita carregava diversas sacolas. Se houvesse algum shopping naquela região, seria fácil especular sobre o que ela estava carregando. Não havia. Mistério.


Na mão esquerda da senhora, sorvete. Daqueles de casquinha. Enquanto o ônibus acelerava e freava na luta contra as loucuras do trânsito, ela se equilibrava. Parecia artista circense, tantos foram os truques que usou para se manter em pé. Seu maior problema estava em ultrapassar a catraca. Um solavanco mais intenso sacudiu o ônibus. A mão que segurava o sorvete construiu uma parábola no ar. Ele, que estava olhando para a cena com curiosidade, imaginou algum desastre. Nada de excepcional aconteceu. A mulher, finalmente, conseguiu ultrapassar a barreira – que fez um ruído metálico. Segurando firmemente as sacolas e o sorvete, avançou para o meio do ônibus.


Ele pensou em se levantar e oferecer o lugar. Não teve tempo para unir pensamento e ação. Alguém foi mais rápido. Em um segundo a mulher estava sentada, devorando alegremente o sorvete.


Algum tempo depois, ele precisou desembarcar. Enquanto o ônibus se perdia na distância, ele foi tratar de seus interesses e − quem sabe? − encontrar outros flagrantes da vida.


sexta-feira, 21 de abril de 2023

TIO ZULMIRO NÃO SE CHAMAVA ASSIM

 


Dizem que é nos momentos de crise que surgem as melhores oportunidades comerciais. Independente da veracidade dessa afirmação, a pandemia despertou o espírito empreendedor de um grupo de amigos. Sem dinheiro para a sagrada cerveja de todo dia e impedidos de fazer fiado no Bar do Portuga, precisavam encontrar um fonte de renda que, na pior das hipóteses, minimizasse a situação. Foi, talvez como uma prova de desespero, que resolveram montar uma empresa fantasma para vender um produto de boa aceitação no mercado naquele momento.

Como não possuíam o conhecimento necessário para ter êxito nesse tipo de atividade mercantil, precisaram agregar novos sócios. E, claro, repartir os lucros. Perder os anéis e conservar os dedos – eis a primeira lição prática do mundo dos negócios. No entanto, como acontece com aqueles que acreditam no poder das ideias, essa sensação desapareceu quando perceberam que a proposta era lucrativa, teriam bons dividendos e ninguém ficaria à míngua.

O que eles estavam vendendo? Nada muito refinado. Apesar de ser bastante perigoso. Com auxílio de uma gráfica (que imprimiu alguns formulários) e de um funcionário do hospital (que forneceu máscaras, álcool gel e aventais), a firma anunciou (pela Internet) que estava recolhendo (em domicílio) material para testes de Covid-19. O que não contaram para as vítimas, digo, para os clientes, é que tudo era encenação. Não havia a mínima possibilidade de fornecer diagnóstico – ou salvar vidas.

O medo da doença fez parceria com a falsa sensação de segurança. Essa era a mola-mestra do negócio. Mas, como tudo possui prazo de validade, a mina de ouro secou depois de algum tempo. E foi substituída por outra, menos perigosa, menos rentável, e que comprova a força do misticismo em situações-limite. Passaram a vender pulseiras abençoadas por um guru (inexistente). Diziam que o uso do amuleto protegia contra o vírus. O produto obteve sucesso com o público-alvo.   

O desastre surgiu na forma do Covid-19. Alguns dos empresários ficaram doentes. O vírus cobrou caro o que eles ganharam em dinheiro. Como tinham decidido correr o risco, então não foi nada inesperado – mesmo assim, o susto foi grande (para os poucos que sobreviveram).  

Com capítulos curtos, duas, três páginas, Tio Zulmiro não se chamava assim (publicado pela Editora Reformatório) foi construído com uma linguagem leve, repleta de humor. Mesmo nos trechos finais, quando acontece o inevitável, a narrativa foge do melodrama barato. Outra característica positiva está no uso contínuo de diálogos – acelerando a fluidez do texto e permitindo que o leitor se divirta com o amadorismo do grupo.

Com sabor de crônica, sem perder o registro documental de um momento histórico, e tomando o cuidado de indicar que a lei de Gerson (levar vantagem em tudo) não funciona em algumas situações, o romance produz uma instigante reflexão sobre a ambição. Simultaneamente, como se fossem questões igualmente importantes, aparecem no texto alguns comentários críticos sobre o governo e a religião.      

No parágrafo final do capítulo XVII, o narrador, que até então se mantinha distante (como convém aos observadores da trama), revela que é sobrinho de Zulmiro – talvez o personagem mais divertido da narrativa e que perdeu a identidade, ou melhor, o direito de usar o seu nome verdadeiro, Reynaldo, porque passou toda a sua existência adulta dependendo econômica e emocionalmente de Zulmira, a esposa. Cabe ao sobrinho, honrando a memoria de Zulmiro, digo, Reynaldo, transcrever os acontecimentos que lhe foram narrados pelo tio e dar alguma consistência para o homem que, nitidamente, tinha dificuldades no transitar pela vida.

Tio Zulmiro não se chamava assim é divertido e trágico. Uma metáfora sobre o horror que o capitalismo predatório produz.

 

TRECHO ESCOLHIDO

– Pessoal, essa boca acho que acabou, mas continuo achando oportunidades nessa desgraça do Covid. Andei acompanhando as redes sociais e tem gente vendendo remédios homeopáticos e herbopáticos para prevenir a doença. Isso acho que não dá para a gente fazer, precisa ter pelo menos uma horta ou uma floresta ou sei lá de onde os caras tiram essas coisas. E precisa embalar e tal, e arriscar dar a cara para bater de novo, a polícia pode ir atrás...

Elias não concordou:

– Esse pessoal que vende remédios, digamos, alternativos está na praça há séculos, e nunca soube de algum preso ou até incomodado. Tem até farmácia homeopática por aí, vendendo ao público... Mas, concordo com o Eduardo que a gente não tem, ainda mais agora, como entrar no mercado, não temos insumos, é uma boa ideia desperdiçada.

Eduardo não se deu por achado. Deu um sorriso misterioso:

– Não senhor, você não pegou o pulo do gato. Vamos mudar o foco. Vamos vender pulseiras milagrosas benzidas – tipo João de Deus?

– Não, esse cara não pega mais. Parece até que tá em cana.

– Mas podemos inventar um guru parecido. Não tem gente que toma água milagrosa sei lá de onde? Entendam, está um monte de gente angustiada, sem entender muito bem porque tem que ficar em casa, marido e mulher que nunca se deram bem estão se dando cada vez pior, e ainda por cima aguentando os moleques: se a gente colocar num site que a pulseira de pano milagrosa protege você do Covid com emanações magnéticas a partir da costura azul, e que com ela você pode sair na rua, olha o grande mercado que temos – e sem risco, afinal milagre é religião e religião é livre no Brasil, o presidente até autorizou abrir os templos.


sexta-feira, 14 de abril de 2023

CADA UM NO SEU QUADRADO

 

 


Quaisquer eventos humanos projetam uma espécie de sinuca de bico. Ou seja, uma situação difícil, dessas que exigem alguma habilidade especial ou, em caso de desespero, tirar coelho da cartola.

Ao mesmo tempo, pode ser motivo para grandes comemorações, fogos de artifício, garrafas de espumante e bolo de três camadas. Pasteizinhos variados também serão bem recebidos. 

Mas, como nem tudo que reluz é ouro, cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém. As decepções estão incluídas nesse cardápio variado que chamamos de vida e – atenção, senhores passageiros! – a alegria costuma rimar com a ilusão. Criar expectativas é uma das formas mais terríveis de abraçar a frustração.

Deixando de lado as frases de autoajuda e a noção de que estar em contradição faz parte da brincadeira, o dia a dia confirma que a rapadura é doce, mas não é mole. Enfim, devagar se vai ao longe e não se deve cantar de galo no terreiro alheio. Estatisticamente, as chances de dar com os burros n’água supera as probabilidades de ganhar na Mega-Sena.

Nada mais significativo do que um dia depois do outro – com uma noite no meio. De grão em grão, a galinha enche o papo. E fugir de qualquer assunto espinhoso pode ser uma estratégia racional, gato escaldado tem medo de água fria – ou, em outra versão, se for do agrado do freguês, cachorro mordido por cobra foge até de linguiça.

Pois é, encher linguiça é uma arte e o mundo está repleto de arteiros. O que faz falta são os artistas, aqueles que criam tempestades em copos d’água e mostram que, em casa que possui chaminé, há possibilidade de existir fogo. Mesmo que seja fogo-fátuo. Por isso, urge ter cautela quando puxar a brasa para a sua sardinha. É uma das melhores maneiras de ser queimado (cancelado, em linguagem castiça, porém contemporânea).

De qualquer forma, nas palavras de um filósofo que está destinado ao esquecimento, a corda arrebenta do lado mais fraco, águas passadas não movem moinho, a ignorância flerta com a virtude e, quando nevar em janeiro, surgirá nos céus sinais do apocalipse.

A física quântica e o metaverso explicam (ou complicam) muitas coisas, confirmando que os grandes espetáculos não passam de dramas farsescos. Por isso, cuidado, meu bem / Há perigo na esquina / Eles venceram, e o sinal está fechado pra nós.

Há males que vêm para bem, afirmava o vilão, em um daqueles seriados que passavam na televisão nos sábados pela manhã, em tempos idos e vividos – muitas vezes sofridos. A esperança do espectador sempre foi a de que, ao final do episódio, acontecesse algum plot twist, o abracadabra perfeito, a extinção do mal e a vitória do bem. Na ficção, tudo bem. Na vida real, o buraco é mais embaixo. Sem esquecer que esperar milagre rezando para santo de devoção talvez seja um exagero – embora, convenha-se, o que não mata, engorda.

A soma da experiência humana revela que o tempo – compositor de destinos / tambor de todos os ritmos – costuma indicar que não é possível fazer omelete sem quebrar os ovos. A pressa é a inimiga da perfeição. Como ninguém está matando cachorro a grito, querer mais do que isso é colocar a carroça diante dos bois.

domingo, 9 de abril de 2023

A LUZ DO FAROL

 


Declan está doente. E as três mulheres mais importantes de sua vida (avó, mãe, irmã) estão concentradas em brigar umas com as outras. Provavelmente é esse o motivo que o leva a deixar o hospital em Dublin e passar algum tempo na casa da avó, uma antiga pousada, perto do penhasco de Cush (no condado de Wexford). Mas também pode ser que ele tenha escolhido encenar uma espécie de cerimônia do adeus – momento em que as lembranças do passado (principalmente da infância) estão embaralhadas na angústia de viver um presente tempestuoso. O leitor jamais saberá qual é a versão que possui maior substância, pois os acontecimentos são narrados pelo ponto de vista de Helen, sua irmã.

Durante as noites, o farol, em Tuskar Rock (a 11 km da costa), acrescenta uma espécie de chiaroscuro nessa história em que predomina o rancor. A oscilação da luminosidade – metáfora ambiciosa e que fornece uma chave de compreensão sobre o que aconteceu em outro tempo –, não diminui o fardo, não produz alívio. No entanto, acena com a esperança de que é possível romper, em algum momento, um ciclo que se repete interminavelmente desde a morte daquele que garantia a estabilidade no eixo familiar. Helen e Declan eram crianças quando o pai (ou a figura do pai) desaparece. Essa falta (que se une com outras carências) é determinante para que os filhos se afastem do convívio familiar – e que só retornam à casa da infância para se despedir do passado.

No intervalo dos ressentimentos, Helen descreve, com minúcias, a doença que está devastando o corpo do irmão. Dores incontroláveis, diarreias, insônia, cegueira, falta de apetite. A proximidade com a morte não oferece descanso. Essa situação-limite serve de gatilho para que aflorem inúmeras questões que ficaram pendentes no meio do caminho.

Acompanhando Declan estão dois amigos: Paul e Larry. A aspereza de Paul e a alegria de Larry oferecem um pouco de leveza ao texto e (sempre que possível) algum tipo de trégua na tensão familiar. Algumas cenas que protagonizam são divertidas e contém uma espécie de wit, aquele humor perspicaz que só é percebido pelo leitor algumas páginas depois.     

A luz do farol (São Paulo: Companhia das Letras, 2004) é uma narrativa descritiva, do ponto de vista geográfico. O deslocamento dos personagens pela costa da Irlanda, passando por cidades com nomes estranhos (Arklow, Gorey, Enniscorthy), fornece indicações que provocam estranhamento. É quase um livro On the road. Mas, essa paisagem proporciona uma moldura peculiar para o romance, projetando no ir e vir a ideia de que o desaparecimento daqueles que amamos também faz parte da viagem. Se o leitor for curioso, e estiver atento ao que está sendo narrado, provavelmente consultará o Google Maps para descobrir qual é a distância que separa Dublin de Donegal.

Ao abordar temas contemporâneos (Síndrome da imunodeficiência adquirida, amizade, conflitos familiares), o romance mostra que a literatura pode fornecer um olhar detalhado para alguns dos dramas que constituem esse terreno pantanoso que chamamos de vida.         

  

TRECHO ESCOLHIDO

“Eu não estou atrapalhando”, disse Lilly.

“Bom, eu achei que estava”, replicou Paul.

“Eu sou a mãe dele!”, bramiu Lilly.

Paul deu de ombros. “Ele já é adulto, está com uma dor de cabeça horrível, precisa beber alguma coisa e eu não tenho tempo para esse tipo de histeria.”

“Quer dizer que vocês vão embora?”, indagou Lilly.

“Escute, senhora Breen”, disse Paul, “enquanto Declan estiver aqui, eu não arredo o pé desta casa, tome nota disso. Se estou aqui é porque ele me pediu para vir para cá e, quando me pediu isso, o seu filho usou palavras, expressões e frases não muito edificantes a respeito da senhora, as quais prefiro não repetir. É claro que ele se preocupa com a senhora, ama a senhora e quer ter a sua aprovação. Mas também está muito doente. Por isso, é melhor a senhora parar de sentir pena de si mesma. Enquanto o Declan estiver aqui, eu não saio e o Larry também não. Quando um de nós for embora, os outros também irão, e se não acredita em mim, pergunte ao Declan.”

“O que você quer dizer com ‘palavras não muito edificantes’?”, perguntou Lilly.

“Ele está com quase trinta anos, meu Deus, e tem medo de falar certas coisas à senhora”, disse Paul. “Bolas, não tenho tempo para isso. Larry, você não quer tentar ligar o celular? Será que dá para recarregar a bateria?”

Chorando Lilly foi se refugiar no andar de cima. Helen dirigiu-se ao quarto de Declan e sentou-se na beira da cama.

“O que aconteceu?”, indagou ele.

“A mamãe discutiu com o Paul”, respondeu Helen.

“Ela não devia ter feito isso. Ele é imbatível em discussões, sempre adivinha o que a pessoa vai dizer em seguida”. Declan tampou os olhos com as mãos e estremeceu. “A dor vem em ondas”, disse ele e levantou-se para ir novamente ao banheiro. “Estou me sentindo mal de novo”.


sábado, 8 de abril de 2023

O DIA DO PAI (texto modificado)

 


Domingo, seis e meia da manhã. No melhor do sono, ele sentiu uma mão batendo no ombro.


Simultaneamente, como se fosse o sinal do armagedon, uma voz insistente:


– Pai, você já acordou? Eu já acordei!


– Ah, filho, quero dormir mais um pouquinho, por favor!


Sem esperar pela resposta, o homem virou o corpo para o outro lado, procurando por uma posição melhor. Por um instante, aquela fração de segundo que separa a felicidade do horror, pensou em abraçar o corpo da esposa. Como em todo pesadelo, isso era impossível. Ao seu lado, naquele momento, só existia o vazio e a ausência. Mas isso não era o pior. O menino o estava convidando a abrir os olhos e encarar as crueldades da vida.


– Paiêêêê, já é dia!!! Você precisa levantar!


– Tá!


– Paiê-ê-ê-ê, já é dia!! Tô cum fomi!!!


Armado de toda paciência que conseguiu reunir, ele contou até três mil. Depois, compreendeu a triste sina: sua majestade, “a rainha do lar”, estava em viagem. O palácio, o cetro e o príncipe herdeiro (das dívidas e das dúvidas familiares) tinham ficado sobre a responsabilidade do bobo da corte. Ou seja, ele. Então, só restava relaxar e..., sei lá, não permitir que o circo pegasse fogo – pelo menos até a volta da ilustre consorte (sim, porque naquele instante não havia a menor dúvida de quem era o “com azar”). A “megera”, antes de ganhar a estrada e o bem-bom, o havia atormentado com mil recomendações, uma lista de cuidados com o filho, verdadeiro massacre em forma de ternura. Só de pensar nisso, e nos incômodos que teria se acontecesse alguma coisa com o menino, ele entrou em estado de pânico.


– Pai, tô cum fomi!


Dizendo adeus às ilusões, ele abriu os olhos. Em seguida, quase fulminou o menino com uma paternal dose dupla de rancor. Desistiu no meio do caminho e, da forma mais teatral possível, arriscou a última cartada:


– Você não quer deitar um pouquinho com o pai?


O rapazinho, apesar da pouca idade, não caiu no velho truque do seu “velho” e reagiu em grande estilo; ou seja, gritando:


– Tô cum fomi!!


Naquele momento, precisando manter o controle e a razão, ciente de que nada mais restava senão amaldiçoar a humanidade (em geral) e a esposa (em particular), ele capitulou:


– Tá certo, filho. Já vou levantar.


Sem saber direito o que fazer, armado de coragem, muita coragem, vestiu uma camiseta e uma bermuda. Entre o quarto e o corredor, milhões de bocejos – uns cinco ou seis. Na cozinha, como se fosse um zumbi, não conseguiu encontrar o material básico para poder calar o menino. Sem ter a mínima ideia de onde estava “escondida” a mamadeira, abriu e fechou todos os armários – diversas vezes! Desolado, sentou na cadeira mais próxima e, depois de mais alguns bocejos, disse:


– Meu filho, estamos em apuros!


O menino, sem entender o que isso significava, se aproximou e beijou o rosto do pai. Foi a gota d’água. Então, aquele pirralho, que outro dia fora retirado, pela violência de uma cesariana, da barriga de sua mãe (uma bola de carne roxa, pingando sangue), desprezava as trapalhadas de seu pai e, na maior ousadia, com um simples beijo, transformava em amor todas as tempestades da vida?


Com o orgulho de um atleta que cruza a linha de chegada em primeiro lugar, o pai abraçou o menino. Ficaram unidos uma eternidade (uns dois minutos). Logo depois, ele se levantou, abriu geladeira e, surpresa!, encontrou o leite. Em cima da mesa estavam o achocolatado e a mamadeira. As outras operações (pura alquimia!) foram realizadas no automático. Era como se estivesse pisando em nuvens – e estava!


O resto do dia foi ótimo, apesar do almoço desajeitado em uma churrascaria, do sorvete que melou todo o hemisfério sul, do dinheiro gasto com figurinhas, do passeio no parque, das brigas esporádicas e do afeto explícito. 


Estavam construindo uma educação sentimental muito particular, cheia de cumplicidades.