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segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

SOBRE O OFÍCIO

 


Nenhuma palavra encontrou caminho para formar um novo texto. O teclado do computador continua esperando por algum tema, coisa pouca, talvez uma história sobre o amor ou a guerra conjugal (que se não é mesma coisa, muito se aproxima), quiçá um pouco de humor sobre as trapalhadas que mostram as diferenças entre as vidas urbana e rural, talvez fornecer uma opinião sobre a situação catastrófica dos indígenas da tribo Yanomani ou comentar as mais recentes monstruosidades cometidas por alguns jogadores de futebol; em momento de desespero poderia cometer a homenagem a alguém ilustre. A sensação angustiante de ter muitas coisas a dizer e nenhuma parecer suficiente para cumprir com a obrigação constitui um dos grandes problemas a ser superado por quem (escritor, jornalista, redator) precisa viver do que escreve.

Uma das lendas gregas mais impressionantes se refere ao Sísifo, um sujeito que foi condenado pelos deuses a carregar uma pedra até o cume de uma montanha. Toda vez que ele estava prestes a atingir o objetivo, a pedra rolava montanha abaixo e ele precisava recomeçar a tarefa. Escrever se aproxima desse castigo.

Cada texto precisa ser revisado a todo instante, a constante sensação de que falta ou está sobrando alguma coisa paira no ar, a ideia inicial raramente se completa, perder o fio da meada costuma ser a regra, enveredar pelo desconhecido e descobrir, depois de algumas horas de esforço, que não há alternativa senão reiniciar o trabalho – todo o esforço foi em vão. Não bastasse essa aflição, até chegar ao leitor o texto sofre mil adaptações, palavras são substituídas, informações são acrescentadas ou suprimidas, pontos de vista são alterados. Esse trabalho invisível garante a inteligibilidade do que será publicado. E desmistifica duas das principais versões sobre a facilidade de escrever.

A primeira, e mais simples, refere-se ao fato de que não se deve confundir alfabetização com técnica narrativa.  Saber ler e escrever, além de construir uma frase ou duas, não significa que haja domínio da escrita (embora os cursos de redação criativa digam o contrário). A segunda, fruto do misticismo, confunde trabalho com genialidade. Inspiração, dom e bênção divina não existem. O texto surge em consequência do esforço, do suor, muitas vezes de horas em que a mente está trabalhando para transformar uma ideia em algo que supera o imaginário e se concretiza no papel ou na tela do computador. Acreditar em algo contrário significa apenas falta de entendimento sobre como a escrita funciona.

Um terceiro item (e que costuma ser esquecido) refere-se à intimidade com as palavras – mais do que necessário, o uso competente do vocabulário possibilita a transmissão do conhecimento, faz com que o leitor mantenha o interesse no que está sendo narrado. O que muitas pessoas esquecem é que ninguém consegue construir um texto sem ser um bom leitor.

No entanto, o conceito de leitor ultrapassa o significado mais óbvio – livros, jornais, redes sociais. Ler o mundo talvez seja mais importante. De nada adiante ter o domínio técnico e não saber utilizar essa qualidade na interpretação das coisas que acontecem ao seu redor. De forma complementar, necessário se faz entender o Outro, aquele que está ao lado – aquele que muitos costumam negar.

Escrever implica em estabelecer um compromisso político. Ou melhor, torna-se imprescindível deixar claro de que lado se está nas estruturas de poder. Sem esquecer que tudo o que é publicado, de uma forma ou de outra, modifica o leitor. Muitos interesses estão em jogo quando o texto se torna público – nem sempre são coisas boas. 

 

sábado, 21 de janeiro de 2023

2023, O ANO DO COELHO

 


Cada cultura celebra a passagem do tempo de maneira especial. Para contar os dias, os meses e os anos (ou o equivalente), os chineses utilizam um sistema que considera tanto a lua como o sol. Como os 12 ciclos lunares anuais somam 354 dias, eles acrescentam um mês a cada três anos – mantendo a sincronia com o ciclo solar, que é de 365,25 dias. Desta forma, existem variações no início, fim e duração de cada ano lunissolar.


Segundo uma lenda oriental, Buda convidou todos os animais para uma festa de Ano Novo. Apenas 12 compareceram. Cada um deles recebeu como presente um ano, de acordo com a ordem de chegada: rato (ou camundongo), boi (ou búfalo – vaca, na Tailândia), tigre (pantera, na Mongólia), coelho (gato, na Tailândia), dragão (crocodilo, na Pérsia), cobra (ou serpente – pequeno dragão, na Tailândia), cavalo, cabra (ou bode ou carneiro), galo (ou galinha), macaco, cão, porco (ou javali). Desta forma, a cada 12 anos, repete-se o ciclo.


O Ano-Novo Chinês começa na noite da lua nova mais próxima do dia em que o sol passa pelo décimo quinto grau de Aquário. Em 2023, essa particularidade astronômica e astrológica ocorre no dia 22 de janeiro.

 


O ano chinês número 4721 se estenderá de 22/01/2023 até 09/02/2024 e é consagrado ao coelho. Na China, o ano novo é um período de festas, com direito a feriado de sete dias, alegria nas ruas, jantares familiares, visita aos tempos religiosos, feiras e festas de lanternas, dragões de papel machê, fogos de artifício.

 


De acordo com os especialistas em horóscopo chinês (sim, essa turma existe!), o coelho é um dos signos mais afortunados, pois possui graciosidade na conduta cotidiana, espiritualidade intensa (tendência ao misticismo e à mediunidade) e são exigentes com a ética e a justiça. Quem nasceu no ano do coelho (os últimos são 1951, 1963, 1975, 1987, 1999, 2011, 2023) é uma pessoa calma, responsável e usufrui da longevidade.


As previsões para 2023/2024 indicam esperança, beleza e boas energias. Os relacionamentos poderão ser favorecidos. Muitas pessoas desfrutarão da simplicidade (sem abrir mão do conforto e do autocuidado). O ponto fraco está na questão emocional, que precisa ser observada com cuidado, pois a posse, o ciúme e a carência afetiva são defeitos – principalmente nos relacionamentos entre os casais.

 


Como a vida está repleta de surpresas, convém não confundir coelho com lebre. Embora os dois animais sejam parentes (ordem dos lagomorfos, família dos leporídeos), há diferenças substancias entre eles (curiosos devem consultar o Google). O importante é lembrar que os coelhos são animais herbívoros e que os humanos costumam transformá-los em alimento. Também gostam de usá-los como cobaias em experiências científicas. Da pele fazem casacos, chapéus, botas, etc. No Brasil, a espécie Oryctolagus cuniculus (coelho europeu) é a mais frequente.

 


Na área das superstições, um pé de coelho (assim como as ferraduras penduradas atrás das portas e os trevos de quatro folhas) pode ser a diferença entre a sorte e o azar. Como os coelhos procriam com facilidade e em quantidade, alguns povos da antiguidade relacionavam o amuleto com a possibilidade de multiplicar os bens econômicos.

 


No hemisfério norte, a religião cristã identifica o coelho (e o fim do inverno e o começo da primavera) como uma representação da ressurreição de Jesus Cristo. Em outras palavras, celebram o renascimento da vida.

 


Enfim, 2023 (se depender das bênçãos do coelho) será um excelente ano. Resta saber se todos aqueles que podem contribuir para que isso aconteça irão colaborar. Mas ai são outros quinhentos mil-réis.





terça-feira, 17 de janeiro de 2023

SHAKIRA ATUALIZOU DOM CASMURRO

 

Piqué e Shakira

O diabo se esconde nos detalhes, deve ter pensado o ex-jogador de futebol espanhol Gerard Piqué Bernabéu (35 anos, campeão mundial em 2010). De acordo com os tabloides de fofocas, a cantora colombiana Shakira Isabel Mebarak Ripoll (45 anos), ao chegar de uma viagem de trabalho, percebeu que um pote de geleia de morango estava aberto. Como o marido não gosta desse sabor, quem poderia ter desfrutado do doce? Somando dois mais dois, Shakira percebeu que o desfrute estava além do doce. Havia uma comborça na jogada.

Comborço(a) é uma palavra pouco conhecida e foi utilizada duas ou três vezes em Dom Casmurro, de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908). O seu significado é muito específico: o(a) amante da pessoa com quem se está casado(a). No livro, Bento de Albuquerque Santiago (Bentinho) se surpreende com o choro compulsivo da esposa no funeral de Escobar. Depois, ao olhar para o filho (Ezequiel), só consegue enxergar os traços do comborço. Não importa se essa suspeita é verdadeira ou ilusória, a traição se desenha na tessitura narrativa. O resto do romance se resume no interminável desfile de mesquinharias e vinganças do macho traído.

No caso da colombiana, as dúvidas deixaram de existir quando, logo após a separação (junho de 2022), Piqué encontrou acalanto nos braços de Clara Chía Martí (22 anos). Quer dizer, o caso dos dois já tinha certa quilometragem, o que mudou foi a oficialização do casal. A consequência imediata foi a publicação de centenas de fotos dos pombinhos nos jornais e nas redes sociais. Além disso, os tabloides começaram a publicar detalhes da vida intima de Piqué  ele possivelmente traiu Shakira umas 50 vezes (!!) nos últimos 12 anos.  

A geleia ficou amarga quando Shakira, em conjunto com o DJ argentino Bizarrap (Gonzalo Julián Conde), gravou BRZP Music Sessions #53. Sucesso instantâneo. Abusando dos trocadilhos e de palavras agressivas (sem deixar de lado o humor), a música conta um pouco do rompimento. Um pouco é minimizar os incontáveis mísseis nucleares que a colombiana disparou contra o ex-marido e a comborça (Tiene nombre de persona buena / claramente, no és como suena).

Ao se referir à idade da companheira de Piqué, Shakira canta Yo valgo por dos de 22 / Cambiaste un Ferrari por un Twingo / cambiaste un Rolex por un Casio. A comparação se completa como se fosse um soco na masculinidade frágil: Y una loba como yo no está pa’ tipos como tu  

Piqué, fingindo que não foi afetado pelas provocações, tentou levar a situação na esportiva e apareceu dirigindo um Twingo (fabricado pela Renault); em outra ocasião, disse ter obtido patrocínio dos relógios Casio. Foi como jogar gasolina no incêndio. As visualização da música no Youtube (e nas diversas plataformas virtuais), que já eram imensas, ultrapassaram a casa dos milhões. A fama e o capitalismo costumam andar de mãos dadas.

O que ele não pode corrigir são algumas acusações mais graves: Me dejaste de vecina a la suegra / Com la prensa en la puerta y la deuda en Hacienda. A vizinhança da sogra, o assedio dos jornalistas e a dívida com o Tesouro de Espanha (cerca de 14,5 milhões de euros) são  questões que não podem (nem devem) ser perdoadas. No primeiro caso, o mais fácil de resolver, a cantora mandou instalar um boneco horroroso na varanda da casa onde mora e que está voltado para a residência da mãe de Piqué. Talvez seja alguma mandinga de Colômbia, talvez seja apenas uma representação da bruxa que Shakira idealizou na figura da sogra (que ficou ao lado do filho quando a traição foi descoberta).

Assim como Bentinho, no melhor estilo diss track (canção de insatisfação), Shakira remói as mágoas (Yo, contigo, yo no regresso / Ni que me llores ni me suplique). O tempo em que se apresentava como felicidade (provavelmente imaginária) se transformou em nostalgia e animosidade. Isso permite incluir na letra da música um pequeno deslize emocional (Cero rencor, bebé / Yo te deseo que te vaya bien con mi supuesto reemplazo). Seria melhor que a colombiana cantasse que está com índices estratosféricos de rancor e que deseja a pior das infelicidades para o casal. Porque é isso que a canção exprime – e com todas as letras do alfabeto e todos os (maus) sentimentos.

Em Dom Casmuro, Bentinho não diz Y cuando te necesitaba / Diste tu peor versión, porque a pior versão é a dele, um homem que nunca soube ultrapassar as debilidades, as fantasias persecutórias. Shakira, ao contrário, construiu um castelo musical e usou de todas as armas possíveis para mostrar ao mundo (em geral) e para Piqué (em particular) que hasteou a bandeira do feminismo no território inimigo: Te creíste que me heriste y me volvieste más dura / Las mujeres ya no lloran, las mujeres facturam. Em português o verbo faturar pode acrescentar um significado a mais.

Ninguém sabe qual será o fim dessa história. O fato é que a loba está clara/mente devorando a gatinha (Clara está deprimida e com medo de sair de casa) e mandando recados ácidos ao ex-marido: Entendi que no és culpa mia que te critiquen / Yo solo hago música / Perdón que te salpique

 

Clara Chía e Piqué

Ps) Uma curiosidade astrológica (e que não explica nada): Shakira e Piqué são aquarianos e fazem aniversário no mesmo dia, 2 de fevereiro, mas com dez anos de diferença (nasceram em 1977 e 1987, respectivamente).

Ps 2) a música BRZP Music Sessions #53 tem cerca de 150 milhões de acessos no Youtube. Como diz a letra da música, diante de alguns infortúnios amorosos, Las mujeres ya no lloran, las mujeres facturam.


terça-feira, 10 de janeiro de 2023

O CÉU DE LIMA

 


Lima, 1904. Os amigos Carlos e José, por imposição familiar, estão matriculados no curso de direito da Universidade San Marcos. Mas raramente frequentam as aulas. O que desejam da vida é ser aclamados como bons poetas. No entanto, falta-lhes talento. As musas parecem ignorar a existência desses dois pobres rapazes ricos. Então, enquanto a inspiração não aparece, eles gastam o tempo e o dinheiro dos pais com pisco, partidas de bilhar, ópio, prostíbulos e conversas sobre literatura.

Um dia, à beira do tédio, resolvem escrever ao Juan Ramón Jiménez (1881-1958. Prêmio Nobel de Literatura em 1956). Querem uma cópia de um dos livros do poeta espanhol e que não está disponível nas livrarias da capital peruana. Depois de deliberarem sobre o assunto, tomam uma decisão peculiar: as cartas terão a voz de uma personagem feminina, Georgina.

Com o desenrolar dos acontecimentos e a troca de epistolas – que demoram uma eternidade, pois dependem do transporte marítimo –, a linguagem vai se modificando, adquirindo substância, alguns segredos são trocados, sutilmente instala-se um clima de sedução. O poeta espanhol começa a imaginar a possibilidade de navegar por dois oceanos e conhecer a sua correspondente. Evidentemente, diante dessa ameaça, para evitar que o vexame se instale, uma providência enérgica se faz necessária.  

Carlos (que muitas vezes se mostrou submisso às vontades do amigo) se impõe dizendo que é preciso matar os amigos imaginários. Nada mais resta aos dois senão dar o passo necessário para ingressar na vida adulta. A fantasia se desfez, acabou o brinquedo. Não existe mais espaço para a poesia e os sonhos da juventude. Simultaneamente, a amizade perde o sentido, o elo que existia entre os dois se rompe. O passado é apenas um conjunto de lembranças que vai se desfazendo lentamente, como se fosse areia levada pelo vento.

Com o passar do tempo e a aquisição da maturidade, José e Carlos continuam se encontrando, mas apenas socialmente – casados, com filhos, administrando os negócios familiares, repetindo a uma vida que, de certa forma, imita a de seus pais.   

O Céu de Lima, romance escrito pelo espanhol Juan Gómes Bárcena (baseado em episódio retratado no livro Labirinto, de Juan Ramón Jiménez, publicado em 1913) é uma narrativa em que as questões psicológicas e sexuais estão à flor da pele (ou da página).

José Gálvez Barranechea se destaca (sem o mínimo escrúpulo) por sua posição social (descendente de heróis da história peruana), por suas conquistas amorosas, por ser um protótipo de macho alfa (aquele que manifesta, a todo instante, a posição dominante). Carlos Rodriguez, ao contrário, filho de novos ricos, costuma ser passivo, muitas vezes discutindo a masculinidade (na medida em que admite que seus relacionamentos com prostitutas beiram o superficial e se mostram incapazes de produzir o gozo). Parte desse proceder está relacionado com as muitas lutas que precisa superar: o preconceito (no colégio muito zombaram da sua caligrafia de mulher, com letras redondas e suaves como uma carícia), o bullying (frequentemente José o chama de Carlota) e a violência intrafamiliar (o medo paterno de que o filho seja homossexual). No mundo provinciano em que vivem a heteronormalidade não pode e nem deve ser transgredida. Não há espaço para a alteridade.

Contra todas as probabilidades, o curto-circuito se mostra inevitável. A masculinidade entra em colapso quando os rapazes (em um dos muitos encontros no sótão de um dos edifícios de propriedade do pai de Carlos) concordam em usar um nome feminino para a personagem que criam. A complementaridade não se dá no contato físico, mas através da fantasia de que Georgina é parte de cada um deles, os dois unidos pelo corpo da personagem. Nesse embaralhar dos gêneros sexuais, em que eles se travestem imaginariamente, os dois homens parecem dizer o que não diriam de outra maneira.

O desejo interdito costuma negar a sua natureza e a potência que o acompanha. Somente a ação externa (a possibilidade de estarem frente a frente com Juan Ramón Jiménez) fornece válvula de escape para o que estava se tornando uma situação sem retorno. Salvos (ou condenados) pelo gongo! 

  

Juan Ramón Jimenez (1881-1958)


terça-feira, 3 de janeiro de 2023

O HUMOR FERINO DE AGRIPPINO GRIECO EM QUARENTA E CINCO FRASES

 


– A burrice é contagiosa; o talento, não.

– No dia que tiver uma ideia, morrerá de apoplexia fulminante.

– Passou a vida correndo atrás de uma ideia, mas não conseguiu alcançá-la.

– No dia que tiver uma frase de espírito, despedem-no.

– Há sujeitos muito burros que às vezes conseguem fazer uma coisa boa. É a faísca da ferradura na calçada. 

– Esse político queria estabelecer um acordo entre os brasileiros, quando não era capaz de estabelecer um acordo do sujeito com o predicado, numa oração.

– Sempre votou ódio de morte a uma sisuda senhora chamada Gramática.

– Era um deputado conservador. Seu único programa político era conservar a sua cadeira na Câmara.

– Cobriram-no de adjetivos poéticos, mas ele queria apenas um substantivo prosaico: dinheiro.

– Um fauno carecendo de afrodisíaco.

– Inútil como um tenor resfriado.

– Era um pêndulo, oscilando entre a ignorância e a má fé.

– Sempre indeciso entre o preciosismo e a vulgaridade.

– Os caminhos da literatura sempre estiveram cheios de perigosos salteadores.

– Ruminava frases pastando em livros alheios.

– Há nele um canário e um gato. O gato sempre querendo comer o canário.

– Fulano nunca esteve nos seus melhores dias.

– Insultavam-se mutuamente, e ambos tinham razão.

– Ele era mais preocupado com o estilo dos móveis que com o estilo de Flaubert.

– Cultivava paradoxos e rabanetes.

– Tinha um estilo mais engomado que irmãs de caridade.

– Aquele médico, deixando de clinicar, passou a escrever. Lucraram os doentes, perdeu a literatura.

– Na praia das virtudes, a água é muito suja.

– A obra é ilustrada; o autor, não.

– Seu livro deveria ser encadernado em pele de jumento. Coerência com o conteúdo.

– Era um livro raro. Mais raro, entretanto, era quem o procurasse.

– Dele, só lerei as obras póstumas.

– Irá longe! Foi para Montes Claros.

– Defendia a Polônia nos botequins e esbordoava a esposa em casa.

– A principal personagem daquele romance era mesmo o tédio.

– Seu estilo tinha a elegância das burguesas endomingadas.

– Ele inventou que era inventor.

– Suas estreias eram espetáculos de despedida.

– Aplaudem porque acabou.

– Era um camelo no Saara das ideias.

– Quanta gente influiu na originalidade de F.!

– A seca é terrível; mas, pior é certa literatura provocada pela seca.

– Sarna: uma das poucas distrações que restam aos pobres.

– Menotti del Picchia, parnasiano, querendo passar por modernista, lembra atrizes de 70 anos a se fazerem de ingênuas.

– Ele é mais mentiroso que epitáfio de cemitério.

– Em 1960, eu era funcionário do Ministério da Viação e ia ser promovido. O decreto estava lavrado. Mas fui fazer um discurso para o Aarão Reis, meu chefe, e não me contive. Disse que ele era “o primeiro dos nossos engenheiros, em ordem alfabética”. Ganhei a frase e perdi o cargo. 

– Tenho uma memória trágica, recordo tudo. Se houvesse fosfato para diminuir memória, tomava. Às vezes ela dói.

– O Jorge Amado trocou a Gabriela pela Tereza Batista. É o lenocínio literário.

– O Carneiro Leão entrou para a Academia. Estranhei: – Até agora os animais tinham entrado de um a um. Dois de uma vez é demais.

– Não tenho balança de justiça. Tenho amores e rancores. Tudo em mim é gratidão e vingança.

 

Foto que está na capa do livro Gralhas e Pavões, lançado em1988. Em pé (da esquerda para a direita): Jaime de Altavilla. Romeu de Avelar,
Jorge de Lima e Osman Loureiro. Sentados: Pontes de Miranda, Vinicio da Veiga,
Agrippino Grieco e Theo Filho. 


Agrippino Grieco (1888-1973) foi um importante crítico literário brasileiro, editor da revista Boletim de Ariel. Com um estilo virulento, muitas vezes próximo da agressão, demoliu com algumas pretensões literárias do século XX. Publicou muito, mas o livro que causou maior escândalo foi aquele em que esculhambou com a obra de Machado de Assis – o que deu motivos para uma interessante polêmica, através dos jornais, com Afrânio Coutinho e Augusto Meyer.


segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

PELÉ

 


O filme Fuga para a Vitória (Escape to Victory. Dir. John Houston, 1982) talvez seja a melhor (ou será a pior?) lembrança que tenho de Pelé, quer dizer, de Edson Arantes do Nascimento (1940-2022). Não lembro se o assisti no Cine Marrocos, uns dois ou três anos depois do lançamento oficial, ou se foi na televisão – muito mais tarde. Não guardei os detalhes desse episódio.

Meu interesse no filme não estava voltado aos clichês que são oferecidos ao espectador: um jogo de futebol como forma de distrair os guardas do presídio nazista e proporcionar a fuga dos ianques. Queria ver Michael Caine e Max von Sydow,  atores “de verdade”. A participação de Sylvester Stallone, Bobby Moore e Pelé era acessória (e, de certa forma, pirotécnica). O gol de bicicleta (tão artificial quando pode ser qualquer coreografia) vale o preço do ingresso. De resto, o filme é ruim.

A primeira vez que vi Pelé jogar foi pela televisão (em preto e branco), na Copa do Mundo de 1970. Mas, não lhe atribui muita importância. Em minha opinião, aquela equipe tinha jogadores mais talentosos: Rivelino, Tostão, Jairzinho. O Pelé que eu admirava tinha ficado preso ao passado glorioso do Santos Futebol Clube (a soma dos títulos do Campeonato Brasileiro, da Libertadores, dos dois Mundiais contribuíam para essa postura).  

Como todo cinéfilo, esporadicamente via imagens de Pelé no cinejornal Canal 100, que passava antes dos filmes. Ao som de Na Cadência do Samba (que bonito que é), um clássico chicletão da época, lances espetaculares eram repetidos à exaustão. Muitas vezes a programação do cinema mudava, mas o Canal 100 continuava imutável – e ninguém se importava muito sobre isso, porque essa propaganda subliminar (com propósitos ideológicos muito bem definidos) proporcionava euforia, entusiasmo e nos fazia acreditar que o Brasil era o melhor país do mundo (principalmente antes de 1985).

O tempo é um dos melhores métodos de reciclagem. Reavaliei o que pensava sobre Pelé (talvez um pouco tarde demais) quando percebi que existia um toque artístico em cada drible, nas definições das jogadas. Os passes ou gols encontravam equivalência nos versos de um poema (e que ampliava a intensidade em cada jogo). Muitas vezes, a arte não se revela ao primeiro olhar ou então (o que é mais triste) não conseguimos alcançá-la. Essa separação das impurezas só ocorre com a experiência, com o infinito tropeçar da vida. Quando vejo algum vídeo de partidas antigas, muitas vezes para esquecer resultados do clube da Baixada Santista no Campeonato Brasileiro, percebo (descontadas as diferenças temporais e a evolução do jogo) que não há comparação – a ideia de jogar para frente, de levar cinco gols e fazer seis, deixou de existir, foi substituída pela retranca, pelo receio de perder. O Santos dos bons tempos (que não são os de agora) jamais concordaria com isso e Pelé, artilheiro à flor da pele, mostraria aos adversários que o medo é o primeiro passo para a derrota.

Fora do futebol, parte da mitologia desmoronou. O estranho relacionamento com a ditadura militar (muitas vezes negando os abusos que ocorriam na época), o romance com Maria das Graças Xuxa Meneghel (1981-1986), o Ministério dos Esportes no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1998), a acusação de abandono parental, as referências em terceira pessoa – são episódios que, embora não o tivessem “cancelado” (como se diria atualmente), não acrescentaram elogios. Ao contrário, mostraram (como acontece com aqueles que são endeusados) que ele era sujeito a falhas, a equívocos. 

Nos últimos anos, vítima de um câncer de cólon, foi internado em hospitais diversas vezes. Faleceu em 29 de dezembro de 2022. Depois de incontáveis homenagens no Estádio Urbano Caldeira (Vila Belmiro), foi enterrado, no dia 03 de janeiro, no Memorial Necrópole Ecumênica, em Santos (SP).

   


DUAS QUESTÕES ACESSÓRIAS

1) Deve o Santos Futebol Clube impedir que outro jogador utilize a camisa 10, como uma homenagem ao "Rei" Pelé? Existem defensores para qualquer uma das respostas possíveis. Se o bom senso prevalecer, a resposta será um sonoro não (Pelé era contra a aposentadoria da camisa).  

2) A ausência de alguns jogadores (principalmente aqueles que jogaram as últimas Copas do Mundo) e de Adenor Leonardo Bacchi (Tite) no funeral de Pelé causou incontornável constrangimento. A soma dos múltiplos ressentimentos, além da negação da importância dos principais personagens da história do esporte, provavelmente explicaria esse afastamento emocional. Questões financeiras também podem ter contribuído.