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terça-feira, 22 de junho de 2021

DIÁRIO DA QUARENTENA (CCIII)

 


Entre o bélico meu reino por um cavalo (Shakespeare) e o lírico meu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá (Manuel Bandeira), cabe incluir o prosaico meu reino por um Sonho de Valsa. Nunca consegui esquecer as matinês de domingo no Cine Tamoio. Enquanto, na tela, o bandido e o mocinho duelavam ao pôr do sol, eu sentia na boca o derreter da crosta de chocolate amalgamada no recheio de amendoim e castanha de caju, entre outras misturas.   

Sem entrar em detalhes fesceninos de um tempo que foi engolido pelo passado cada vez mais distante, sinto particular atração por esse bombom. No supermercado preciso olhar para o lado oposto da gôndola em que estão alojados os chocolates, na tentativa inócua de evitar o acréscimo de inúmeras unidades na cestinha de compras.

A última aventura aconteceu na semana passada. Ao pão, queijo, iogurte, chá, frutas, e outros produtos saudáveis (ou quase), acrescentei várias mercadorias repletas de conservantes, estabilizantes, aromatizantes, açúcares, agrotóxicos. Nada muito bizarro, apenas o básico para poder sobreviver no dia a dia.

Também adicionei quatro Sonho de Valsa. Sim, fui parcimonioso, que os tempos em que estamos vivendo se caracterizam pela crise econômica, contar os tostões se tornou um imperativo categórico, como dizia aquele filósofo chatíssimo que esqueci o nome.

O que foi que aconteceu?, pergunta o leitor apressado, sem saber para onde essa lenga-lenga o conduzirá. Calma, respondo, não é fácil escrever cerca de 500 palavras sem um pouco de enrolação.

Depois de uns dez minutos na fila, o rapaz que estava trabalhando no caixa começou a registrar as minhas compras. Tudo parecia transcorrer de forma monótona. No entanto, como dizem as pessoas mais experientes, é nas águas calmas que se escondem os maiores perigos. Quando me foi apresentado o valor total, paguei com cartão de crédito, sem conferir se havia algum erro ou equívoco. Não tenho o costume de fazer esse controle. Prefiro conduzir a vida de forma preguiçosa.

Com as sacolas na mão, fui me afastando. Mas não fui longe. A intuição me alertou que alguma coisa estava irregular. Procurei pela nota fiscal e, depois de breve análise, localizei o problema. Os quatro bombons tinham se transformado em quarenta e seis. Ou seja, tinha financiado (sem perceber) o equivalente a um pacote de 1 kg (aproximadamente quarenta e cinco unidades). Mas estava levando para casa apenas quatro chocolates.

Voltei. Reclamei em alto e bom som. Fui informado que havia ocorrido um erro de digitação e que deveria conversar com alguém na área da gerência. Foi o que fiz. Depois de escutar a minha queixa, onde ressaltei (com alguma ironia) que o acaso costuma acontecer com irritante frequência, a pessoa responsável rapidamente tomou as providências necessárias (certamente não era a primeira vez que precisou resolver esse tipo de situação). Ou seja, estornou o pagamento. Depois, solicitou que as compras fossem registradas outra vez. Comprovou-se uma economia de quase R$ 40,00.

Mil pedidos de desculpas foram feitos. Como estava em dia de bom humor, aceitei todos. E fui embora, prometendo (para mim mesmo) que iria conferir (a partir daquele momento) as notas de compras. Mas, no intimo, sei que isso não passa de uma mentira (mais uma). Não faz parte da minha índole se preocupar com certo tipo de coisas.


segunda-feira, 14 de junho de 2021

DIÁRIO DA QUARENTENA (CCII)


Cassandra, filha de Príamo e Hercuba (reis de Troia)


Cassandra (Κασσάνδρα), pitonisa grega que tinha o poder de escutar as vozes dos deuses, foi amaldiçoada por Apolo (Ἀπόλλων) – após rechaçar uma proposta amorosa. Considerada louca, ninguém acreditava em suas profecias.

Como a vida não se resume em prazeres e felicidade, ao longo dos séculos da história humana muitos mensageiros foram desacreditados ou mortos porque não conduziam bons presságios. O objeto do desejo costuma trafegar pelos devaneios produzidos pelo imaginário. O usual é inventar o inimigo, ou seja, reagir agressivamente diante de qualquer bloqueio à produção do gozo.

Em cena de Rei Lear (William Shakespeare), o Bobo da Corte adverte ao governante que Não devias ter ficado velho antes de ter ficado sábio. Esse é um dos maiores impasses que emolduram a vida social contemporânea. Envelhecer não significa adquirir – de forma automática – a sabedoria. Muitas vezes é o contrário. Principalmente quando os indivíduos, no processo de decisão, abandonam a leveza, a delicadeza e o bom senso.

Os troianos, depois de resistirem durante dez anos às investidas gregas, foram destruídos por uma trapaça. Poderiam ter aprendido alguma coisa com o cerco promovido pelos habitantes da península helênica e, de certa forma, se preparado para resistir outra década. Não foi isso o que aconteceu.

Cassandra previu que as muralhas da cidade jamais seriam ultrapassadas. Consequentemente, Ílion (um dos nomes de Troia) poderia ser invadida de outra forma.  Estava com a razão – mas nenhum troiano confiou nesse vaticínio. Os gregos, cansados de uma luta que parecia não ter fim, resolveram a questão com um golpe tático. Ou melhor, encontraram um ponto fraco do esquema defensivo. Homero conta que um enorme cavalo de madeira foi deixado na porta da cidade. Acreditando que era uma homenagem à deusa Atena (Αθηνά) e que, de certa maneira, isso constituía um gesto de rendição, os troianos levaram o troféu para dentro da cidade. 

Foi Odisseu (Οδυσσεύς) quem sugeriu a armadilha. Ao anoitecer, as portas da cidade foram abertas pelo grupo de soldados que estava escondido dentro do cavalo de madeira. 

A astúcia venceu. Como costuma acontecer diariamente poucos indivíduos conseguem entender a obviedade, o que está ao alcance dos olhos. O horizonte, com suas promessas e delírios, tem um poder de sedução difícil de ser evitado. Nesse universo, que nega as questões mais elementares, Cassandra constitui uma ameaça. Ao avisar sobre o perigo iminente e que é preciso tomar cuidado com o que aparenta ser tranquilidade, rompeu a redoma de ingenuidade que os troianos construíram em torno de si mesmos. Causou desconforto e repulsa.  

O tempo produz acomodação. Os indivíduos envelhecem, não adquirem discernimento do que é essencial e, paradoxalmente, passam a acreditar que ficarão impunes. Esquecem que Tisifone (Castigo), Megera (Rancor) e Alecto (Inominável) – as  Erínias (Ἐρινύες) – personificam a vingança, não tiram férias e estão sedentas de sangue. 

O mito de Cassandra não perdeu a atualidade, embora o exercício das profecias esteja com baixa cotação na bolsa de valores das ilusões descartáveis. O autoengano (que paga bons dividendos ao acionista) nega o desastre e prefere se deslocar pela estrada pavimentada pela cultura narcísica. Sem tomar conhecimento de que o Outro também está agindo, e consequentemente, mudando o cenário em que os fatos ocorrem, os mal-informados provavelmente se transformarão em vítimas do cavalo de Troia.

 



sexta-feira, 4 de junho de 2021

DIÁRIO DA QUARENTENA (CCI)

 


Há uma palavra em japonês que me assusta. Olho para a biblioteca e a vejo – como se fosse um aviso imaginário – escrita nas lombadas dos livros. Em uma tradução ligeira, tsundoku (積ん読) identifica o comprar livros para não lê-los. É uma variação erudita da síndrome de acumulação.

Como assim, alguém compra livros e não os lê? Essa pergunta utilitarista, proferida por quem somente percebe o imediato, costuma ocorrer com bastante frequência. Normalmente está acompanhada pelo espanto. Em um mundo onde há preferência por comprar comida, pagar o aluguel e obter algum conforto, adquirir alguns livros e não os ler pode parecer desperdício. Livros não enchem a barriga de ninguém, como costumava dizer meu pai toda vez que queria diminuir emocionalmente o seu primogênito.

Mesmo assim,... Para algumas pessoas, acumular livros se faz necessário – independente de qualquer explicação racional. Estar em contato com o objeto do prazer se torna imperativo. Não satisfazer esse desejo significa alimentar uma dor insuportável. Significa um interdito ao gozo.

Ter livros é um exercício voyeurístico. Para poder fruir da potência que está presente em centenas de páginas de papel pintadas com tinta preta (ou de outra cor), urge desfrutar da estética da capa e da encadernação, além dos inúmeros elementos paratextuais que compõem o volume (a textura do papel, o cheiro, o peso). Muitas vezes, o texto em si adquire valor secundário.

Anne Fadiman, em Ex-Libris – confissões de uma leitora comum (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002), dedicou um capítulo para contar algumas histórias monstruosas: seu pai, a fim de reduzir o peso das brochuras que lia nos aviões, rasgava os capítulos terminados e os jogava no lixo; seu marido costuma ler na sauna, sem se preocupar com as páginas fendidas pelo calor [e que] caem como pétalas numa tempestade; Thomas Jefferson retalhou uma primeira edição de 1572, em grego, das obras de Plutarco para intercalar entre as páginas uma tradução em inglês. Saber que existe pessoas que praticam esse tipo de mutilação quase me fez procurar por um psicanalista. Prefiro ver os livros intactos, mesmo quando estão intocados. Não ler os livros muitas vezes evoca um respeito que muitos leitores desconhecem.

Existem razões para não ler alguns livros. Ou partes deles. Dicionários e manuais técnicos são ferramentas de consultas. Basta tê-los por perto. Quando se faz necessário, procura-se pelo trecho específico e, depois que se obtém a informação, coloca-se o volume de volta na estante, onde ficará até o momento em que a sua ajuda for imprescindível outra vez.     

Ninguém está imune ao que há de nefasto na moda e no marketing. Engana-se quem pensa que somente os clássicos (esse território confuso) possuem lugar privilegiado na vida dos leitores. Ficção científica, tramas policiais, thrillers, pornografia, história em quadrinho (mangás), histórias com final feliz (ou, vá lá, infeliz), todos esses livros merecem alguma atenção. Não há limites para a voracidade de quem procura por algum tipo de entretenimento. Então, se não houver autocontrole, um passeio pelas livrarias (ou pelos sebos) pode resultar em compras compulsivas. E que ficarão intocadas em algum canto da estante.

Não li cerca de 40% dos livros que compõem a biblioteca. Não vou verificar se esse número é maior ou menor – não gosto de reduzir a paixão ao racionalismo da quantidade. Muitos títulos foram adquiridos em função de projetos acadêmicos que não puderam ter continuidade. Algumas ideias se tornaram inviáveis, mas isso só percebi depois de ter comprado 20 ou 30 livros sobre o tema. Em dado momento, resolvi ter um acervo de literatura brasileira – especialmente, a contemporânea. Continuo seguindo esse caminho com dedicação, embora saiba que o labirinto termina em abismo.   

Por fim, alguns livros estão presentes na biblioteca pelo capricho de tê-los. Provavelmente nunca os vou ler. Ou reler. Mas, sem eles a minha vida de leitor seria mais triste.  


quinta-feira, 3 de junho de 2021

DIÁRIO DA QUARENTENA (CC)

 


Os depoimentos das médicas Nise Yamaguchi (oncologista) e Luana Araújo (infectologista) na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado Federal, nos primeiros dias de junho, deram vazão a um conjunto de emoções que trafegam pelo mundo binário (bem e mal, certo e errado, inteligente e ignorante, hesitante e convicta). Mas, antes que alguém se apresse em cravar algum juízo de valor, convém lembrar os versos de uma canção antiga do Tunai, as aparências enganam / aos que odeiam e aos que amam.

Nise Yamaguchi e Luana Araújo são água e azeite, não se misturam. Foi essa a impressão geral do público. A primeira (descendente de orientais, voz suave e titubeante, cabelos alvoroçados) está com o pensamento na Idade Média. A segunda (caucasiana, voz firme e assertiva, cabelos que devem custar uma fortuna em salão de beleza) é uma defensora intransigente da ciência. Essa comparação desproporcional (e preconceituosa, por diversos motivos) induz a ilusão de que os apoiadores do governo são pessoas sem grandes atributos intelectuais. 

As duas mulheres resguardaram, cada uma ao seu modo, a neutralidade política da ciência. Disseram que a técnica não possui ideologia e que, nesses termos, tudo o que desejam é servir – da melhor maneira possível – ao país. Uma evidente falacia, típica de quem deseja obter o bônus e fugir do ônus. Contraditoriamente, nenhuma das duas soube explicar porque votou no atual governo, que está sucateando as universidades e, consequentemente, a pesquisa científica independente. No caso de Nise Yamaguchi, que continua acreditando no uso de medicamentos preventivos contra o vírus pandêmico (Hidroxicloroquina, Ivermectina, Nitazoxanida, Dexametasona, REGN-COV2, etc.), não há porque duvidar de sua escolha na hora do voto. Segue uma linha de ação coerente com o seu pensamento reacionário e confuso. O que parece estar fora de tom é a posição de Luana Araújo, que, depois de ter sido rejeitada pelo governo, adotou (adorou?) a estratégia de disparar uma saraivada de argumentos muito bem embasados contra a maneira com que o Ministério da Saúde está conduzindo as medidas sanitárias de combate ao coronavírus.

O massacre promovido pelo Senador Otto Alencar (PSD-BA) no dia anterior não se repetiu no depoimento de Luana Araújo. Ou seja, houve uma diferença de tratamento em relação aos dois testemunhos. E isso é constrangedor. Inúmeros ruídos adquirem relevo no discurso que aclama o que interessa ao ouvinte e repudia – violentamente – o que não agrada. Pouco importa a fraqueza dos argumentos de Nise Yamaguchi ou a sua visível debilidade no domínio dos conceitos elementares de infectologia, o que precisa ser destacado é que a coerência raramente adquire consistência na retórica daqueles que detém o poder (mesmo quando momentâneo).

O intelecto costuma se enganar com as questões estéticas. Uma mulher bonita, com grande conhecimento na sua área de atuação, que sabe cativar o público, costuma ser aplaudida pelo público masculino. E a política, por centenas de razões, é um terreno dominado por homens. Não foi surpresa o alijamento feminino na escolha dos titulares da CPI – uma forma simbólica de dizer que as questões de Estado precisam ser tratadas por quem "conhece o assunto".

A voz de Luana Araújo foi convincente. Disse o que deveria dizer e que todos queriam que alguém dissesse. No entanto, ao dizer o que disse, encobriu as lacunas, escondeu o que queria esconder, e camuflou o que, psicologicamente, lhe obrigou a agir como agiu. Foi performática. Ou melhor, teatral. Sem perceber o poder anestésico do canto da sereia, os espectadores aceitaram com alegria o que lhes foi apresentado.  

A presença das duas mulheres na CPI lembrou um clássico literário que anda esquecido pelos leitores, O médico e o monstro, do Robert Louis Stevenson. Os senadores, entretidos pelos fogos de artifício, não conseguiram distinguir as diferenças (e as semelhanças) que existem entre Henry Jekyll e Edward Hyde. ´