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quinta-feira, 30 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XXXIX)




Nos últimos anos, salvo exceções, costumávamos almoçar juntos nas quintas-feiras. No princípio, éramos três. Os agregados, muitos. Em alguns momentos, quando se multiplicavam os convivas, a mesa ficava mais festiva. O restaurante invadido, juntar as mesas, a conversa desencontrada instituindo a bagunça. A anarquia como sinônimo do afeto.

Sempre houve a possibilidade de alguém nos comparar com os três mosqueteiros (que eram quatro), porque o que nos une é um esgrimir (metafórico) contra os soldados do Cardeal Richelieu. Tolice. Somos os três patetas. Comédia pastelão é a nossa especialidade. 

Esse fato se comprovava em mesa de bar, a enésima garrafa de cerveja como pilar de alguma discussão maluca. A existência dos discos voadores, as preferências futebolísticas, as belezas dos países de língua espanhola, a MPB, os tropeços e trapaças governamentais – o catálogo nunca foi escasso. A exposição de motivos nessas conversas costumava se pautar pela ausência de substância e de agilidade intelectual (como é de praxe em conversas de bar). No auge da argumentação, talvez em razão de algum surto de lucidez, tudo desmoronava como se alguém tivesse assoprado o castelo de cartas. Rir se apresenta como o melhor remédio, o sinal inequívoco para mudar de assunto e reiniciar a encenação.   

Bife à milanesa era o cardápio principal das quintas-feiras. Claro, comia quem tinha vontade ou fome, existem outros pratos no cardápio, gosto não se discute, etc. e tal. O importante era estarmos juntos, alimentar a alegria, ampliar a algaravia, deixar na rua os problemas que se recusam a ser domesticados.  

Indeterminados são os motivos que fortalecem uma amizade. Somos de diferentes origens geográficas e profissionais. Melhor assim. Salve as afinidades eletivas, que sempre produzem bons frutos! E isso, trocando em miúdos, significa que ninguém se importa (muito!) com o fato de estarmos morando (por um desses acasos da sorte ou do azar) nessa terra ignorada pelos deuses do Olimpo e habitada pela aristocracia bovina falida (como diria o Rogério Castro, de saudosa memória). Em Roças Novas (Minas Gerais) ou San José (Uruguai) talvez fosse melhor, mas o destino raramente colabora.

Foi o Covid-19 que causou a mudança de hábitos. Recolhidos ao isolamento social, todos enquadrados nos grupos de risco, diariamente mandamos mensagens pelo whatsapp ou, esporadicamente, fazemos chamadas de vídeo. Desculpas para ficamos tagarelando sobre as trapalhadas políticas, sobre alguma bobagem praticada pelos outros amigos. Assunto não falta. Mas,... Não é a mesma coisa.


Em algum momento, mais tarde, provavelmente bem mais tarde, quando a crise viral se transformar em assunto para inúmeras conversas no botequim, entre uma batatinha frita e um gole de chope, alguém perguntará: você se recorda da época em que ficamos presos em casa? Uma breve nuvem de melancolia passará pelos nossos olhos e diremos que foram tempos difíceis. Essa resposta automática, protocolar, esconderá que estaremos pensando em outra coisa: que há perdas que não podem ser compensadas pelo presente e pelo futuro. E lembraremos dos bifes à milanesa que deixamos de comer, das bobagens que orientavam as nossas conversas e da falta que se materializa no não poder desfrutar da companhia uns dos outros.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XXXVIII)



A quarentena, que limitou os deslocamentos no espaço físico, permitiu que o mundo virtual ganhasse um espaço que, durante muito tempo, era reservado apenas aos nerds e geeks. O que antes era nicho de uns poucos “escolhidos” está se transformando em uma espécie de ágora pós-moderna – onde os mais diversos tipos de manifestações e discursos encontram lugar de existência. Todo dia há lives, shows, encontros de discussão, manifestos, etc. Basta ligar o computador e procurar por assuntos e grupos de interesse. Nos últimos dias, foi possível participar de alguns desses eventos.


Guilherme Terreri Lima Pereira ou Rita Von Hunty

O grande momento da tarde de 27/04 foi protagonizado por Guilherme Terreri Lima Pereira. Sem economizar críticas sobre a política social vigente no Brasil, durante uma hora, de maneira objetiva e com incrível didática, Guilherme mostrou os desníveis socioeconômicos que caracterizam um país que não consegue superar o preconceito contra os pobres, os negros, os índios, as mulheres e os homossexuais. Foi uma aula. Assistiram ao evento um pouco mais de 950 pessoas (no encerramento eram 1050). Isso significa que foi um estrondoso sucesso. Ah, Guilherme também é conhecido como Rita Von Hunty.

Ontem (28/04), o convidado da editora Aleph era “apenas” John Scalzi, uma das estrelas, digo, uma das constelações do gênero literário que – para o bem ou para o mal – reflete o momento histórico que estamos vivendo: a ficção científica. Bebendo Coca-Cola e respondendo as perguntas óbvias com bom humor, ele vendeu o peixe com relativa competência. O público oscilou entre 100 e 130 pessoas.

John Scalzi

Lilian Moritz Schwarcz explicou os fundamentos do autoritarismo brasileiro, em vários momentos nos últimos dias. Baseada em pesquisas históricas, discorreu sobre alguns dos mais significativos temas da historiografia nacional.

A grande decepção ficou por conta de Conceição Evaristo. Por três vezes tentei ver essa força da natureza literária brasileira. Com visíveis problemas de conexão, ela precisou cancelar os eventos. Se houver outra oportunidade... estarei na primeira fila, ansioso por vê-la!

Luisa Geisler, Ana Paula Maia, Jarid Arraes, Natália Borges Polesso e Carol Bensimon deram um colorido especial ao Festival de Literatura Brasileira Na Janela, promovido pela Companhia das Letras, nos dias 24, 25 e 26 de maio. Foi impactante a forma como descreveram, cada uma a sua maneira, o universo da criação literária. E comprovaram – mais uma vez – que são as mulheres que conseguem interpretar com mais acuidade os problemas da contemporaneidade.  


José Ribamar Coelho Santos ou Zéca Baleiro

A música também tem se mostrado um fator agregador. Sucesso de público e crítica foram os shows de Zeca Baleiro, João Bosco e Zélia Duncan. Nando Reis também “deu o ar da graça”, mas em situação diferenciada: foi financiado e pediu doações para compra de equipamentos médicos para combater o Covid-19. Aconteceram outras apresentações: algumas – infelizmente – não consegui assistir; outras (sertanojo e dor-de-corno) – felizmente – não vi e ouvi.

Cada um enfrenta o confinamento da melhor maneira possível. Entre os que entram em depressão e aqueles que abrem a janela e – de uma forma ou de outra – participam das atividades que se desenvolvem lá fora, me parece mais salutar (mentalmente) a segunda opção. Open the windows surge como um conselho sensato e um trocadilho irônico.  

terça-feira, 28 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XXXVII)




A vantagem das lives é que podem ser vistas post mortem. A taxidermização do mundo virtual transformou-se em algo natural. Há quem diga que a imortalidade está (ou estará) ao alcance dos recursos tecnológicos.     

Por diversos motivos perdi parte do festival de literatura brasileira Na Janela, promovido pela Companhia das Letras, nos dias 24, 25 e 26 de maio. Bastou ir ao canal da editora, no YouTube, e rever as entrevistas perdidas. Lá estavam os escritores e os mediadores com o frescor do dia da realização da live.  

No Instagram, os eventos podem ser vistos  no máximo  por vinte e quatro horas. Isso não é obstáculo. Quase todas as lives são salvas e exibidas, ad æternum, em outros canais.

O que chama a atenção na frase anterior é que o uso das palavras live, salvas e ad æternum na mesma frase possibilita um choque linguístico e semântico. Mas poucas pessoas percebem isso. Baseadas na proposição de que a comunicação precede às normas gramaticais, essa mistura de inglês, português e latim não desperta a mínima curiosidade no dia a dia. Vivemos um samba do crioulo doido de original sabor.
  
Não bastasse isso, alguém pode alegar que – etimologicamente – não há nenhuma confusão, o inglês também possui fortes raízes latinas. Somos primos, se é que se pode dizer. Então, se estamos em família, que mal pode haver?



Quanto a xenofobia se manifesta e faz discursos histéricos contra o uso descontrolado de expressões alienígenas, cabe recordar que o português falado no Brasil (em Portugal não é muito diferente) é um dialeto vivo, híbrido, e que sempre se mostrou receptiva aos acréscimos. Impossível esquecer as inúmeras contribuições do árabe, das línguas e dialetos africanos (iorubá ou nagô, quimbundo, banto), dos idiomas e dialetos indígenas (os mais importantes agrupados nos troncos linguísticos tupi-guarani e macro-jê), do francês (que era très chic na corte imperial), etc. Em menor escala, e regionalizadas, encontramos palavras de origem alemã, italiana, japonesa, polonesa e holandesa.

Policarpo Quaresma, o divertido personagem criado por Lima Barreto, morreu sem entender o básico. Esporadicamente, o seu fantasma reaparece e, no Congresso Nacional, propõe algum projeto para restaurar a “pureza” da língua. Acaba “dando com os burros n’água”, mas isso não é impedimento para que, em outra oportunidade, nova tentativa seja feita.

Duas questões incomodam bastante. O uso da palavra live em substituição da expressão ao vivo (que mostra a influência do colonialismo cultural) e o uso de salvar nesse contexto. Independente do preciosismo, salvar se refere a algo que se livra do perigo, da ruína ou da perda total. Também pode significar, segundo o Aurelião, conservar, guardar, manter. Não estou convencido que o termo seja o adequado em relação às lives, porque confere aos eventos uma estrutura física que obviamente não possuem. Mas, como se sabe, o uso consagra o significado. O que hoje parece anacrônico, amanhã pode ser apropriado. E segue o baile, como se diz no sul no Brasil.

(P.S.: Pretendia comentar algumas lives que assisti nos últimos dias. O texto acabou tomando rumo inesperado e, quando percebi, estava longe do destino inicial. Acontece.)  


segunda-feira, 27 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XXXVI)




O primeiro prato quebrado ninguém esquece.

Aconteceu. Finalmente. Mais de 30 dias lavando louça (pratos, copos, travessas) e ainda não tinha protagonizado nenhum acidente. Fui limpar uma crosta de queijo que estava grudada no fundo do prato e fiz algum movimento inadequado, não sei exatamente o quê, ele escapou da mão e, depois de ter efetuado uma elegante parábola no ar, se espatifou em incontáveis pedaços no chão da cozinha.

Para não perder o costume e aproveitar o momento patético, emiti vários palavrões. Em alto e bom tom, como recomenta o manual de bons modos que regula o comportamento social da minha família. Não sei se algum vizinho escutou o desabafo. Se isso aconteceu, não recebi manifestações públicas de desagravo – ou elogio.  

Nada mais restou senão ir buscar a vassoura e a pá de lixo. Não fiz isso com boa vontade. Não tenho as habilidades necessárias para ser um bom dono de casa. Em situação normal, provavelmente varreria os fragmentos maiores e, depois de amontoá-los em um canto, chamaria a minha Assistente para Assuntos de Limpeza Doméstica (AALD).

O Covid-19 e a quarentena mudaram hábitos, criaram obrigações. A bagunça que faço perdeu a rede de segurança. Isso serviu para me mostrar que sou apenas um palhaço incompetente em picadeiro sem plateia. E que procura, na medida do possível, administrar as coisas miúdas que constituem o dia a dia.


Tentei recolher todos os pedaços do prato. Para não desperdiçar a oportunidade, resolvi passar um pano molhado no chão da cozinha. Novas manchas tinham surgido não sei de onde. Na minha vã imaginação, tudo estava bem, estava me cuidando para não derramar nada no chão. As aparências enganam. Nisso e nos cacos de porcelana. Encontrei alguns em lugar insuspeito. Outros, abusando da minha miopia, estavam bem na minha frente. O inferno é aqui, disse para mim mesmo, e emendei mais uma fieira de nomes feios, alguns que fariam corar as estátuas da praça. Que praça? Qualquer uma.

Em determinado instante, foi necessário parar com a limpeza. Estava suando. Sempre fui inimigo de exercícios físicos. Gosto de caminhar, mas estabeleço um ritmo lento – como compete ao “flâneur”, que se interessa mais pela paisagem do que pelo percurso.

Abri a geladeira, enchi um copo com água mineral. Encostado no balcão da pia, saciei a sede. Se fosse personagem de algum romance, essa seria a cena ideal para surpreender o leitor com algum pensamento profundo, alguma frase de impacto. Lamentavelmente, desperdicei a ocasião. Só consegui pensar banalidades.

Algumas frações do prato ainda estão espalhados pela cozinha. Cansei de brincar de esconde-esconde. Vou recolhê-las na medida em que elas permitirem ser encontrados. Para evitar acidentes, continuo usando chinelos. 

A parte boa é que não me cortei. São muitas as possibilidades de machucar a mão ou o pé. Algumas gotas de sangue ampliariam o efeito teatral. Seria o ápice da comédia. Não foi. Escapei são e salvo. Cansado, mas inteiro.

A primeira perda serviu de alerta. Algumas medidas de prevenção são necessárias. Vou comprar pratos novos.


domingo, 26 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XXXV)




Alguns dos episódios mais significativos da minha vida pessoal estão relacionados com bibliotecas, livrarias, livros. Uma ligação umbilical. Talvez uma maldição. Sei lá. Muitas pessoas não entendem os sentimentos que envolvem as pessoas que acumulam livros. Esporadicamente alguém sugere os benefícios dos e-books, a praticidade do mundo virtual, as bibliotecas portáteis, uma nova era se desenhando no horizonte. Trato-os com cordialidade, embora, muitas vezes, não consiga evitar o uso do sarcasmo – que, infelizmente, passa despercebido pela vítima.  

Fui alfabetizado quando tinha seis anos. Algum tempo depois, em função da orientação católica apostólica romana de minha avó, ganhei umas duas ou três hagiografias (edições Paulinas) – esses volumes, que se perderam no tempo, constituem a gênese da minha biblioteca atual.

Não havia livros na casa de meus pais. Compreensível. A escolaridade dos dois era precária. Em compensação, lembro-me de vários exemplares dos almanaques Biotônico Fontoura, Sadol e Renascim. Muitas revistas: Sétimo Céu, Capricho, InTerValo, Burda. O verso do calendário descartável (folhinha) também oferecia material variado de entretenimento: tempo de plantio, orações, charadas, curiosidades.

Foi o ingresso na escola pública que abriu espaço para os livros começarem a ter visibilidade na história familiar. Fiz centenas de empréstimos na biblioteca do Centro Educacional Vidal Ramos Júnior. Esgotado o acervo, migrei para a Biblioteca Pública, que ficava na Rua Nereu Ramos (em um sobrado que não existe mais). Foi lá que conheci Arthur Conan Doyle, Karl May e Emílio Salgari, talvez os escritores mais importantes da minha adolescência. Mais tarde a Biblioteca Pública mudou de endereço – eu fui junto.


Nos anos 80, a situação econômica familiar se modificou e aquelas edições da Tecnoprint e da Abril Cultural, que formaram os primeiros itens da minha biblioteca pessoal, começaram a ganhar a companhia de livros de melhor qualidade. A pessoa mais importante desse período foi dona Maria Josefina Rath de Oliveira, proprietária de A Sua Livraria, que me garantiu crédito ilimitado – essa relação perdurou até o dia que a livraria fechou as portas, em 2009. Qualquer agradecimento por tamanha generosidade nunca será suficiente.

Nessas memórias desencontradas cabe destacar um dos espantos que tive em São Paulo (1980 ou 1981): um sebo vendia livros por quilo! Comprei algumas caixas e as despachei pelo correio. Nunca mais encontrei algo parecido.

Outro episódio interessante ocorreu no final dos anos 90, quando morei por um período nos Ingleses, norte de Florianópolis. Ao ver uma citação do Raymond Williams, imaginei que precisava acrescentar aquele texto à bibliografia da Dissertação que estava escrevendo. Não tinha exemplar do livro na biblioteca da UFSC. Procurei por Marxismo e Literatura por toda a cidade. Em determinado momento, alguma alma bondosa me disse que deveria procurar na Livraria Lunardelli. Argumentei que isso era impossível, a livraria não existia mais. Esqueça isso, bata na porta, sempre tem alguém trabalhando, foi o que ouvi. Em um final de tarde de janeiro, atravessei a cidade e fui “campear” o livro. Fui recebido de forma pouco amigável, a pessoa que me atendeu não era um exemplo de simpatia e pediu para que voltasse uma semana depois, quem sabe tivessem, iria verificar. Apesar das dificuldades e das distâncias, voltei na data acordada. O livro estava lá, mas... envolto em camadas de pó e... a lombada não estava intacta. Perguntei o preço. Uma fortuna – para a época, para um estudante que vivia de bolsa do CAPES. Paguei, sabendo que estava sacrificando alguns almoços. Ainda o tenho.


Há outras histórias, há outras confusões. Do período em que fui estudante da UFSC, dois livros se destacam. O exemplar de Nação e Consciência Social, do Benedict Anderson, que emprestei para não sei quem e nunca mais vi, e a edição comentada de Alice no País das Maravilhas, do Lewis Carroll, que está aqui na minha frente e que sempre releio.

Com e-books jamais teria histórias para contar, para me lembrar daquele que fui e que agora olha para um tempo que não se esgotou – porque está vivo na memória.

sábado, 25 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XXXIV)




Durante muitos anos estive jornalista. Minha graduação foi no curso de letras, especialização em literatura. Ou seja, minha bagagem intelectual se situa em outros referenciais, muitas vezes distantes do profissional “raiz”. Isso é bom e é ruim. Bom porque me colocou em vantagem quando o material a ser trabalhado se referia ao jornalismo cultural. Ruim porque me obrigou a escrever sobre assuntos outros que não são os do meu agrado ou domínio. Tudo bem, uma das regras de ouro da profissão afirma que o jornalista é uma pessoa que sabe de tudo, mas não entende de nada.

Comecei escrevendo crônicas, resenhas de livros e artigos de opinião. Foi divertido – enquanto durou. Isso significa um período de uns 20 anos. Exerci a atividade, basicamente, em três veículos de comunicação: A Notícia (Joinville, SC), O Momento (Lages, SC) e O Escrivão da Serra (Lages, SC). Nesses três empregos o trabalho era remunerado. Esporadicamente, publiquei no Correio Lageano e no Diário Catarinense (o que me causa arrependimento até hoje). A proposição desses dois jornais é simples: a honra de ser publicado constitui pagamento suficiente.

Em determinado momento passei para o lado de dentro do balcão e comecei a viver o "sofrimento" na redação. Não sei se fiz boa troca. A necessidade de pagar as contas me deixou sem alternativas. É um serviço insano e que envolve mil complicações. Reescrever texto de analfabeto funcional é atividade trivial perto do olhar para o outro lado e ignorar que existem – a cada instante – interesses diversos em jogo. O jornalismo é um empreendimento tão desonesto quanto outro qualquer.


Um dos momentos mais interessantes desse percurso foi os 30 dias em que “estagiei” na redação do Anexo (suplemento cultural de A Notícia), no final do século XX. Estava morando em Meia Praia (Itapema, SC) e esperando o fim de uma greve na UFSC. Para garantir alguns trocados, escrevia artigos e resenhas e os enviava por fax.  Muitas vezes ocorreram problemas de transmissão – originando erros ou interpretações distantes do propósito inicial. No meio do caos, perguntaram-me se queria substituir alguém que estava saindo em férias. Aceitei. Valeu por uns três cursos universitários, mestrado e doutorado – tudo junto e misturado. Embora eu tenha sido um aluno indisciplinado (e isso faz parte da minha natureza), o aprendizado rende até hoje.

Tenho cópia física de algumas “matérias” que escrevi nesse período, muitas vezes página inteira, reflexo de um tempo em que o texto era valorizado e as imagens eram apenas complemento. A pasteurização da notícia, promovida por um conglomerado que comprou os mais importantes jornais de SC, não só implodiu a atividade profissional como contribuiu para o empobrecimento do leitor (de várias maneiras).



Com a popularização da Internet, os jornais físicos começaram a desaparecer. Além da competição quase que massacrante dos jornais televisivos, que abocanharam parte substancial dos anúncios, faltou perceber que o mundo estava em transformação. A recusa por criar edições dinâmicas on line permitiu que muitos profissionais capacitados migrassem para o formato de blog – onde podem negociar com o patrocinador sem a intermediação de terceiros. Como afirmou, em outro contexto, Ryszard Kapuscinski, quando se descobriu que a informação era um negócio, a verdade deixou de ser importante.

Escrever em jornal significa “comprar briga” (com a fonte da informação, com o texto, com os editores, com o departamento comercial e – por que não? – com os leitores). Somatório de derrotas é a minha sugestão de título para algum artigo que enfocar essa travessia do mar da intranquilidade. Esclareço que isso não é blague de alguém que prefere, neste instante, ficar longe do olho do furacão.
   
Por fim, quando se fala em jornalismo, é necessário ter em mente duas versões da mesma tragicomédia: As pessoas não param de confundir com notícias o que leem nos jornais (A. J. Liebling) e Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados (Millôr Fernandes).

sexta-feira, 24 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XXXIII)


Encontro na Internet um post muito interessante:



É um desses momentos em que o leitor não sabe se deve entender a publicação como uma piada ou uma reflexão profunda do momento em que estamos vivendo. Estou inclinado a considerar a segunda opção como a mais adequada.

Uma das questões mais problemáticas do advento do Covid-19 é a interrupção do afeto. O distanciamento social se tornou uma norma de segurança. Poucas pessoas possuem estabilidade emocional para viver sem abraços, beijos, namoros, sexo (principalmente o recreativo). O mesmo raciocínio vale para a sensação de aprisionamento que costuma atormentar aqueles que precisam ficar isolados em casa. O deslocamento da redoma de segurança que construímos ao redor de nós mesmos produz algum tipo de saudosismo difícil de ser conceituado. Sair de casa acena para a possibilidade de procurar – lá fora – por uma vida “normal”. Difícil resistir ao canto da sereia.

Olhando pela janela do apartamento, vejo muitas pessoas se deslocando na avenida. Algumas estão se dirigindo para o trabalho (ou voltando); outras, sozinhas ou na companhia de cães, fazem exercícios físicos (caminhar, correr, andar de bicicleta). Poucas usam máscaras e/ou luvas. O perigo é uma variável que não as preocupa.

O trafego de veículos também não diminuiu. Parece sugerir que há a possibilidade de evitar o vírus através da velocidade. Parar o carro no semáforo não agrada os motoristas – que buzinam, dizem palavrões, se mostram impacientes. Essa conduta indócil não é dirigida para alguma coisa específica. No máximo, manifesta o descontrole diante do incompreensível.

No supermercado, há outro tipo de comportamento. São poucos os conhecidos que encontro nos corredores, todos com pressa, todos mascarados. Acenam ao longe, o medo impedindo qualquer tipo de intimidade. Ao passar as compras no caixa, descubro que não há mais espaço para “bater papo” – tudo se tornou frio, eficiente, mecânico. Conversar se tornou tabu – a fala foi substituída pelos espaços virtuais das redes sociais (todos estão conectados).

Volto ao post acima. A sensação de estranhamento por um mundo que perdeu o sentido fez com que aquilo que antes considerávamos horrível se transforme em saudade. Ir ao bar – em princípio – é um exercício terapêutico. Encontrar os amigos, beber cerveja, comer alguma coisa, contar causos e mentiras, pedir conselhos – são muitas as alegrias que conduzem para esse tipo de socialização. Ao mesmo tempo, há o garçom chato, os fanáticos por futebol, os “enganos” na conta, o péssimo atendimento, etc. 

Com o Covid-19 o bom e o ruim se igualaram. Ou melhor, deixaram de existir.

O passado costuma nos sinalizar para o autoengano. Temos vontade de voltar a viver o que imaginamos ter existido  mesmo naqueles momentos em que o masoquismo supera o prazer.  

quinta-feira, 23 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XXXII)




Ficar em casa nunca me causou problemas; ao contrário, gosto – e muito! Internet, televisão, livros, CDs, filmes – distração não falta. Posso escrever o que quiser, na hora que quiser, e ninguém vai me atrapalhar. Tenho comida no armário e na geladeira. Não é uma vida ruim. Mas,... Sempre aparece um imprevisto. Desta vez, queimou o chuveiro.

Queimar o chuveiro é expressão errada, me ensina o Assistente para Assuntos Elétricos e Hidráulicos (AAEH). Não existe mais essa história de curto-circuito, estouro, susto, medo de ser eletrocutado. Os chuveiros modernos possuem placas eletrônicas e que – em determinado momento – deixam de funcionar. É, literalmente, uma ducha de água fria.

Digo-lhe que foi isso que aconteceu. Tomei banho pela manhã. Não percebi nada de diferente. No final da tarde, água gelada. Poderia acrescentar que não desejo banho frio nem para o meu pior inimigo, mas isso é mentira, desejo sim – além de suplícios outros.

Relatei para o AAEH que, naquele momento, após exprimir inúmeros palavrões impublicáveis, disse para mim mesmo que era muito azar acabar a luz na hora do meu banho. Enxuguei o corpo e, diante do interruptor, disse: Fiat Lux. Fez-se. O que me levou à conclusão de que a causa da crise era outra. Nada mais me restou senão voltar para debaixo da água gelada. Foi um banho rápido, muito rápido. O mesmo aconteceu na manhã seguinte.   

O AAEH chegou logo depois do almoço, trocou a engenhoca, fez o serviço em menos de 30 minutos. Paguei sem reclamar – e pagaria mais se fosse necessário. Tenho dificuldades psicológicas com qualquer coisa que envolva eletricidade. Por exemplo, trocar lâmpada sempre foi uma tragédia. Preciso desligar o quadro geral de luz do apartamento antes de iniciar a atividade. Quando começaram a comercializar essas lâmpadas que duram quase uma eternidade, minha vontade foi a de ir até a gruta de São Bom Jesus de Iguape, acender vela, e agradecer aos deuses da tecnologia.

O primeiro banho com o chuveiro novo foi catártico. Não pela limpeza dos detritos produzidos pelo corpo. Isso é importante, claro. Ou melhor, imprescindível. Não é disso que estou falando/escrevendo. O que considero significativo é a sensação de bem-estar, o realinhamento com as forças do universo, um conjunto de cânticos e louvores aos atos civilizatórios.
     



Conta a lenda que os franceses não são muito amigos do banho – e que aperfeiçoaram a indústria da perfumaria para mascarar os odores naturais do corpo. Não tenho certeza se isso é verdade ou apenas um boato inconsequente. O que sei é que, em algumas regiões da Europa, o usual é tomar banho de banheira. É o meu sonho de consumo. Se, em futuro próximo, ganhar da loteria (apostas temporariamente suspensas pelo Covid-19), quero uma banheira esmaltada, sais de banho, espumas coloridas. 

É um sonho infantil, talvez uma volta ao líquido amniótico. Não sou psicólogo para fornecer explicações para essas regressões aos primórdios da vida. Também não entendo quando dizem que tomar banho de banheira é uma forma de mergulhar na própria sujeira. Tento lembrar se alguém foi capaz de dizer essa bobagem em relação ao banho em piscina. Nada concluo, porque não há o que se concluir.   

Em hipótese hipster, deve ser interessante experimentar um ofurô. Preciso dessa aventura!  




À elegia do banho (de chuveiro, de banheira) deve-se adicionar três momentos terapêuticos do encontro humano com a natureza: os rios, o mar e a chuva. Mas, devido ao adiantado da hora, isso é assunto para outro momento.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XXXI)




Meu pai nasceu ontem. Por ontem quero dizer 21 de abril de 1932. Faleceu quando tinha 57 anos, em uma dessas manhãs plúmbeas de dezembro, quase garoando, o frio entrando nos ossos. Câncer. Nem morfina conseguia diminuir as dores. Os dois maços diários de Continental sem filtro e as incontáveis doses de conhaque Dreher contribuíram para esse desfecho. 

Eu estava na Prefeitura quando me avisaram. Queria continuar trabalhando – o chefe da repartição impediu, me mandou ir ao velório. Não derramei uma lágrima sequer. Fui ao enterro, no final da tarde, com o propósito de me despedir de um conhecido, alguém com quem não temos muita intimidade. Só percebi a extensão da perda alguns meses depois, quando, para usar uma metáfora fora de moda, encostei em algum fio desencapado. O colapso emocional durou algumas horas. Exercício de contrição tardio. A impossibilidade de recuperar os laços de sangue. Poderia dizer que superei a crise com terapia, remédios, aditivos químicos, exercícios físicos, adesão ao budismo, essas coisas todas que parecem propicias nas horas de desespero, fórmulas mágicas da modernidade, mas a verdade é que nada disso aconteceu. Enxuguei o rosto, deixei os fantasmas na escuridão, segui em frente.

Tenho poucas lembranças. A maioria da infância e da pré-adolescência. Depois disso, um imenso vazio. Seguimos por caminhos diferentes. Construímos distâncias.

Vejo-o dirigindo o Chevrolet. Vejo-o matando, a tiro de espingarda, o cachorro que contraiu raiva. Uma vez fomos para Morrinhos, lá na Coxilha Rica, e ele reclamou o tempo todo por ter que conduzir o jeep. Não nasci para dirigir caixa de fósforo, dizia com incontrolável repulsa. Vejo-o mil vezes acendendo o cigarro. Vejo-o batendo com cinta nos filhos. Vejo-o trazendo para casa, dentro de uma caixa de sapato, um gato amarelo recém-nascido e que foi batizado com nome enigmático: Babinót. Vejo-o brigando com minha mãe – os vizinhos chamando a polícia para acalmar a situação.

Quando as coisas se esfacelaram totalmente, ele não teve maturidade psíquica de juntar os pedaços que sobraram ou para perceber qual era a sua parcela de culpa naquilo tudo. Preferiu se retrair, fazer pose de marido abandonado. Aumentou as doses de álcool, buscou abrigo com um dos irmãos (que também era alcoólatra). Terminou tendo que viver na companhia da mãe – uma pessoa rancorosa (e que era, na falta de expressão mais adequada, detestada por mim e por meus irmãos).

O resto é decadência. Não vale recordar o horror.

Raramente ia visitá-lo – em casa ou no hospital. Uma das vezes fui a contragosto. Um amigo, médico, estava de plantão e me chamou para resolver detalhes de um projeto que estávamos desenvolvendo. Era uma armadilha. Quando percebi, estava diante daquele que um dia chamei de pai. Deitado em cama da enfermaria, quase irreconhecível, seus olhos anunciavam a morte. Não lembro o que conversamos, foi pouca coisa, nada muito significativo. Sequer houve aperto de mãos. Fugi daquele lugar o mais rápido possível.

Nas fotografias amareladas pelo tempo há outra pessoa. Não é aquele que conheci. 

A vida costuma acenar com possibilidades que nunca se concretizam.   

terça-feira, 21 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XXX)




Quando a quarentena acabar e o mundo voltar ao “normal”, vou ter dificuldades para me adaptar. É que estou ficando viciado em lives literárias. Assisto, todos os dias, uma ou duas. Normalmente as vejo no Facebook, no Instagram e no YouTube.

A vantagem é que todas as tendências, estilos e gêneros literários são contemplados por essa nova maneira de comunicação direta com o público. Não sei se isso é bom ou ruim, mas acena para uma forma de jornalismo cultural que dispensa a intermediação das plataformas formais. Essa ação difusa (algumas vezes, confusa) traz à tona algumas vozes que são silenciadas no dia a dia (negros, índios, mulheres, LGBTQ+, etc.).

Meu interesse têm se mantido restrito em alguns dos grandes temas (literatura, música, história, ações culturais, economia e política). Esporadicamente, outras disciplinas entram nesse balaio de gatos. Não é possível evitar que a razão seja contaminada por outras narrativas, por outros discursos.

As lives das editoras de renome optam por apresentar bom comportamento, tudo sem graça. Provavelmente combinam o roteiro antecipadamente. Só falta aparecer um editor de imagem no meio da conversa para lembrar que os participantes devem fazer merchandising de 15 em 15 minutos, tempo é dinheiro, precisamos faturar. Quando terminam, a impressão que deixam é a de uma salada de chuchu – ricas em fibras, mas insipidas.

As melhores são aquelas em que predomina o (bom) humor, o deboche e a anarquia. Nesse particular aspecto, os bate-papos organizados pelo pessoal do Carnavalhada são excelentes. Assisti alguns em que a intermediação foi realizada pelo Marcelo Labes. Total improviso e fantástica empatia entre os convidados e o mediador.

Algumas lives que vi e que, na minha opinão, merecem destaque:
  
A editora Reformatório (leia-se Marcelo Nocelli) apostou em uma alternativa comercial e cultural. O lançamento virtual de Velhos, contos da Alê Motta (supersimpática!) foi surpreendente. Fiquei interessado no livro.  

O colóquio entre Rafael Araldi Vaz e Rodrigo Diaz de Vivar y Soler, dois estudiosos de Michel Foucault e Giorgio Agamben, abordou questões fundamentais da necropolítica em vigência nestes tempos sombrios de Covid-19.   


O pessoal da página Trocadilhos de Quinta, do Facebook, Leo Cunha e Henrique Rodrigues, guiados pelo André Ricardo, mergulharam na poesia da prosa que não poupa trocadilhos, troca de ilhas, mares nunca antes navegados pelo humor. Foi divertido.       

No campo das minorias, a editora Malê está se notabilizando por reunir alguns nomes importantes da literatura afro-brasileira: Tom Farias, Elisa Lucinda, Ryane Leão, Simone Ricco, Fernanda Miranda. Com mediação de Wagner Amaro (autor de Eles), a turma não tem poupado críticas contra um sistema que privilegia o homem branco, classe média, heterossexual e fascista.

No último sábado (18/04), entrei na metade de um diálogo entre Ana Zeppa (que eu não conhecia) e Marcelino Freire. Foi uma maravilhosa surpresa. Aula de teoria literária de alto nível. Uma hora depois, na página do Centro Cultural Barco (Facebook), Marcelino conversou com Marcelo Rubens Paiva. Ganhei o dia.

Outros escritores que tive oportunidade de ver: Victor Bonini, Camila Assad, Gustavo Matte, Marcelo Ariel, José Inácio Vieira de Melo, Alexandre Vidal Porto, Luisa Geisler, Natália Borges Polesso, Samir Machado de Machado, Marcelo Ferroni,... são tantos, devo ter esquecido alguém.

Várias editoras e organizações estão promovendo a divulgação de livros e autores: Aleph, Companhia das Letras, Reformatório, Rocco, Record, Malê, Harper Collins, Micronotas, Câmara Brasileira do Livro, etc. Basta acessar as páginas e ver as programações. E, se houver interesse, comprar os livros.   

Para quem gosta de estar informado sobre a literatura brasileira contemporânea (meu caso), as lives são momentos de integração e prazer. Na tela do computador ou do smartphone, a literatura se mostra viva. 

segunda-feira, 20 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (XXIX)




São muitas as minhas dificuldades relacionadas com a vida doméstica. Por exemplo, não tenho fogão. Por quê? Fiz uma escolha. Sou um analfabeto culinário – do tipo que consegue estragar miojo. Habitualmente, antes do Covid-19, almoçava fora todos os dias. À noite, sanduíche ou iogurte. Em casos de fome extrema, há várias pizzarias próximas. Considerando que moro sozinho, por que preciso de um equipamento que praticamente não será usado?

Claro que nem sempre foi assim. No outro apartamento, cozinha minúscula, mal cabia geladeira, fogão e pia. Era difícil se movimentar naquele espaço. A minha claustrofobia inexistente tinha vontade de aparecer e dar um alô para o mundo. O fogão, simulacro de Esfinge grega, ficava abandonado no canto. 

Resolvi a questão eliminando o fogão. Simples e objetivo. No entanto, estou consciente de que esses casos de racionalização pragmática sempre resultam em novas confusões. Há o risco de algum imprevisto. A vida sempre se apresenta como surpresa.

Em um desses dezembros que se perderam na curva do tempo, uma de minhas irmãs resolveu visitar as filhas, a neta e a nossa mãe. Ao telefone, perguntou-me se eu poderia lhe hospedar. Evidentemente, respondi sem pensar. Ela me disse que chegaria dali a tantos dias. Estarei te esperando, confirmei antes de desligar.

E agora, o que fazer? – disse para mim mesmo, logo em seguida. É que me lembrei da ausência do fogão. A isso se somou outro motivo para ficar apavorado: café. Essa bebida não faz parte do meu dia a dia – minha irmã não consegue viver sem.

Quando estou em alguma enrascada, peço socorro. Chamei o ilustre herdeiro de minhas dívidas e dúvidas, expliquei o drama e pedi consultoria. Concluímos que comprar um micro-ondas poderia ser a resposta mais simples para o conflito. Depois de escolher o aparelho adequado para as minhas necessidades, parcelei em inúmeras vezes pelo cartão de crédito. Em seguida, comprei café e açúcar.


Uma das primeiras coisas que minha irmã me disse, logo depois de ter se instalado, foi: onde está o fogão? Expliquei que as minhas necessidades de sobrevivência na selva urbana excluíram esse tipo de utensílio. Em seguida, apresentei o micro-ondas novinho em folha. E completei o raciocínio afirmando que assim é mais prático e você vai poder esquentar, todas as manhãs, a água para o café! O olhar de desdém que recebi equivale ao poder de destruição do iceberg que atropelou o Titanic.

Sou contra micro-ondas. Com essa frase inesperada, minha irmã iniciou um discurso ludista. Ciente que havia me pego desprevenido, ela aproveitou a oportunidade e relatou todos, todos!, os perigos que se escondem por trás de alguns eletrodomésticos. Aparentemente, ela conhece o assunto com profundidade.

Dez minutos mais tarde, atordoado, sem saber o que dizer, nada mais me restou senão convidá-la para ir até a padaria e fazer um lanche. Não consegui ver outra rota de fuga.

Resumo da ópera: foi uma semana longa, a padaria gostou de ter uma cliente assídua, o vidro de café e o pacote de açúcar estão intactos no armário (talvez seja hora de jogá-los fora). O micro-ondas tem se provado útil para aquecer a água para o chá. Algumas vezes o usei para esquentar comida. Não muitas.