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sexta-feira, 22 de setembro de 2023

A NOITE DAS BRUXAS

 


Em que momento foi possível reunir William Shakespeare e Agatha Christie? Embora isso pareça improvável, a triste resposta está em alguns dos filmes do inglês Kenneth Branagh. Mas não se trata de um episódio isolado. O crime já foi cometido três vezes. E, se o sujeito (que, atualmente, salvo engano, está com 62 anos) tiver vida longa, e ninguém o impedir, provavelmente filmará, no mínimo, outras três versões pavorosas dos livros de uma das principais escritoras para leitores adolescentes.

Assassinato no Expresso do Oriente (Murder on the Orient Express, 2017), Morte no Nilo (Death on the Nile, 2022) e A Noite das Bruxas (Haunting in Venice, 2023) estão inscritos na ficha corrida do Kenneth Branagh. Assisti os três no cinema (porque a conexão com alguns filmes só se estabelece na tela grande). Infelizmente, a decepção se fez presente em todos os momentos. A tentativa grandiloquente de transformar Hercule Poirot em algo que foge da imagem que projetamos do personagem literário lembra o maneirismo teatral – e que, obviamente, é incompatível com a estética cinematográfica. Talvez Kenneth Branagh ainda esteja contaminado pelas versões de clássicos shakespearianos que interpretou e/ou dirigiu: Henry V, Much Ado About Nothing, Looking for Richard, Othello, entre outros. Talvez seja a hora dele se livrar desses fantasmas, abrir as janelas do castelo e deixar o sol entrar.  

A Noite das Bruxas beira o patético porque é, antes de tudo, uma narrativa de mistério. Mistério gótico, mas ainda assim mistério. Infelizmente, Branagh se desviou desse caminho e, usando de alguns truques teatrais, empurrou a narrativa na perigosa direção do terror clássico. Para que isso se concretizasse não economizou no uso de alguns elementos de carpintaria cênica. Por exemplo, os efeitos sonoros (gritos do pássaro, xícaras que caem, telefone que toca em momento complicado). Soma-se a isso o cenário: um pallazzo em Veneza, halloween, uma noite de tempestade, muito vento, o barulho das ondas, a angústia crescente. Assustar o espectador parece ser o propósito – e o filme apenas um pretexto.

A alta voltagem narrativa desvia a atenção da trama de tal forma que, quando é anunciada a solução dos crimes (que ocorre da forma mais rápida possível), ninguém tem tempo para reagir. O brilhantismo do detetive que tudo observa e, por dedução aritmética, vai encaixando o quebra-cabeça desaparece em uma nuvem de tensões que somente estão em cena para confundir o espectador (supondo que ninguém tenha lido o texto original). O único momento razoável surge em uma das últimas cenas, quando Poirot confronta o menino e esclarece o detalhe que serviu de gatilho para as três mortes.

É pouco, muito pouco. Inclusive porque a interpretação de Kenneth Branagh aterroriza. Hercule Poirot parece ser um boneco de pano fazendo pose e dizendo as suas falas de forma compulsiva, como se tudo fosse fruto de uma obrigação. Em sentido oposto, o detetive se transforma em uma marionete – que é manipulada pela escritora Ariadne Oliver (interpretada por Tina Fey).

Em A Noite das Bruxas, além de beirar o artificialismo, tudo parece estar fora do lugar. E o filme deve ter o destino reservado às outras duas adaptações dos livros de Agatha Christie feitas por Branagh: o esquecimento. Shakespeare agradecerá. Quem gosta de cinema e de literatura policial, também. 


terça-feira, 12 de setembro de 2023

VÁ PARA.... AQUELE LUGAR!

 


Nos últimos anos, seja em conversas amenas, seja em discussões ásperas, muitas pessoas me recomendaram ir para aquele lugar. A ideia era me mandar para outro destino. Muito pior. Todo mundo sabe qual. No entanto, a educação inglesa das classes econômicas superiores aconselha o uso de moderação e de eufemismos. Então, adotando uma forma quase suave de estabelecer quem estava de lado de quem, citavam (como se estivessem mastigando o ódio) o nome do país que imaginavam ser uma espécie de inferno terrestre. Um conhecido, no auge da histeria, sugeriu várias vezes pagar a passagem. Somente a ida. Aceitei. Ele não honrou a promessa. Nenhuma novidade.  

No início do mês de agosto, por um desses acasos que a vida nos presenteia, fui para Cuba. E, para desagrado geral, voltei. Cansado. E ciente de que fiz uma excelente viagem, conheci gente interessante, comi como um frade franciscano (de onde tirei isso?), bebi hectolitros de mojito, daiquiri, cerveja e limonada. Trouxe, na bagagem, alguns livros, uma sandália nova e várias histórias. Ah, antes que me esqueça, também comprei uma caixa de charutos. Como não fumo, distribui o tabaco entre amigos e inimigos. Foi uma forma de dizer para todos que, apesar dos pesares, a vida continua sendo um prazer inenarrável (como diria outro conhecido).

O calor de Cuba enlouquece os turistas – em vários sentidos. As pessoas que conhecemos eram todas calorosas, amistosas (mesmo aquelas que queriam vender alguma coisa – e todos pareciam ter vocação para fazer algum tipo de negócio). Para desespero dos que estão “do outro lado”, nos cinco dias que passei pela ilha, ninguém tentou me envelopar em questões políticas. Fiquei com a impressão que passei impune, se é que a ilha está envolta por algum tipo de tentação política indecorosa.  Provavelmente fui imunizado pela vacina contra a febre amarela.

Leitor da alguns escritores cubanos – Nicolás Cristóbal Guillén Batista (1902-1989), Alejo Carpentier y Valmont (1904-1980), José Lezama Lima (1910-1976), Virgílio Piñera Llera (1912-1979), Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), Pedro Juan Gutiérrez (n. 1950), Leonardo Padura Fuentes (n.1955), entre outros – foi nas ruas de Habana Vieja que entendi a alegria que move os habitantes da ilha. Em qualquer bar, ou nas ruas, os ritmos caribenhos se misturam com o jazz e a música brasileira (adoram Djavan!!). Algumas vezes, a necessidade de contornar as altas temperaturas nos atraia para dentro de locais onde grupos musicais, ventiladores e cerveja (quase todas espanholas) constituíam o necessário refresco para quem queria continuar o passeio. E sempre era bom e trazia contentamento e conforto e felicidade.



Antes de viajar, um dos objetivos traçados era visitar La Bodeguita del Medio (Calle Empedrado), o bar/restaurante preferido de Ernest Miller Hemingway (1899-1961), que viveu na ilha por muitos anos. Um de seus livros mais famosos, O velho e o mar, foi escrito na Finca Vigia, propriedade localizada a 15 km de La Habana, e inspirado na história de Santiago, um pescador cubano. La Bodeguita é um lugar peculiar e qualquer tentativa de descrever o ambiente parecerá insuficiente. Lá comi excelente pescado, bebi mojitos (conta a lenda que Hemingway inventou a bebida naquele lugar), olhei as centenas de fotografias de personalidades que estão penduradas nas paredes, devorei “helados”.



Outro lugar de que guardei boas recordações foi o bar/restaurante Dos Hermanos, perto do Mercado San Francisco (Avenida del Puerto). O garçom me contou a história do estabelecimento (que remonta ao fim do século XIX e se chamava originalmente Two Brothers). Também relatou como Hemingway se tornou amigo de Santiago. Lá bebi os melhores mojitos de Cuba – um alívio para o calor, um contentamento para o corpo. 

Depois de La Habana, fomos para Varadero – mas isso é outra história e o que lá aconteceu tentarei contar em outro dia.


terça-feira, 5 de setembro de 2023

AQUILO QUE NOS FAZ PERCEBER QUE AINDA SOMOS HUMANOS

 


Um conhecido declarou que ninguém, nos dias atuais, consegue ler um romance com mais de 400 páginas.

Famoso escritor brasileiro propôs, através de uma crônica, a extinção da crônica (seguindo um comportamento niilista que, em outro momento, havia decretado o fim do romance).

São dois exemplos recentes de que existe um pensamento próximo na negação da leitura. Mas, provavelmente, fazer esse tipo de comentário implica em um erro. Ou em vários. O que predomina não são os baixos níveis de escolaridade (e, consequentemente, de leitura) entre os brasileiros. É a falta de paciência para estruturar a reflexão crítica (que demanda tempo e silêncio – artigos escassos em um mundo que se move mais rápido do que o necessário).   

De qualquer forma, algumas perguntas precisam ser formuladas. Livros como A procura do tempo perdido (Marcel Proust), A montanha mágica (Thomas Mann) e Os irmãos Karamazov (Fiódor Dostoiévski), para citar três clássicos, estão destinados a se transformar em peças de museu? Ou melhor, ficarão emparedados eternamente nas estantes das bibliotecas públicas e somente serão lidos por malucos ou por estudiosos da pré-história literária? Quem os substituirá? Memes e vídeos das redes sociais? Independente da resposta (ou da rota de fuga que implica em dizer que as imagens também são formas de leitura), a proposição catastrófica de Fahrenheit 451 (Ray Bradbury), que antecipava a extinção da literatura, parece estar adquirindo substância. Os sistemas políticos autocráticos detestam qualquer atitude que se afaste da submissão ou que proclame a liberdade de pensamento.   

Entre o alfa e o ômega, a realidade contemporânea foi recheada pela distopia. Pelas mãos dos fariseus surgem os tais biscoitos finos – indicados por dez entre dez filósofos e profetas em podcasts antenadíssimos com o que há de mais atual na tecno(bio)logia. Brave new world.

Não adiante dizer: salve-se quem puder. O espaço subitamente vazio será ocupado com algo que está longe de ser a estampa elegante que Gutenberg imprimiu no século XV.

A possibilidade das bibliotecas serem devoradas pelo fogo deixou de ser uma ameaça. As cenas retratada nos romances O nome da rosa (Umberto Eco) e Auto-de-fé (Elias Canetti) não estão restritas ao imaginário. Em agosto de 1992, os soldados sérvios bombardearam a Biblioteca Nacional e Universitária da Bósnia, causando um prejuízo cultural similar ao incêndio da Biblioteca de Alexandria, em 48 a. C.

É o horror, o horror – diria Kurtz ao ver o alcance da maldade humana, ao perceber que o Aleph mimetiza o labirinto que conduz diretamente ao Minotauro. Nem todo leitor consegue se disfarçar de Teseu – ou receber um barbante de Ariadne.

Se a leitura implica em conhecer outros mundos, em viajar através da imaginação, provavelmente será nos livros que se encontram as respostas para as perguntas que ninguém quer formular. Isso trará a felicidade?, manifesta-se o incrédulo. Não. Os livros não são panaceias ou passes de mágica ou soluções para os problemas do mundo. O que se procura (e talvez possa ser encontrado) na leitura é outra coisa (que possivelmente não tem nome), mas que nos faz perceber que ainda somos humanos.