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sexta-feira, 23 de julho de 2021

O PASSADO, PELOS OLHOS DO MENINO

 

Praça Waldo da Costa Ávila, no Bairro da Brusque. Início dos anos 1970.







 

O menino, caminhando por cima da mureta que existe na parte de baixo da pracinha, olhava para a imensidão da Rua Cruz e Souza. O morro forte na sua frente acenava com as lonjuras que ultrapassavam a Pratense. Era proibido ir naquela direção da cidade. A mãe sempre lhe recomendava cuidado. Longe da proteção familiar, poderia ser raptado por ciganos ou, talvez pior, encontrar o Homem da Capa Preta. Então, quando precisava sair de casa, o menino encontrava refúgio na praça, lugar onde poderia se reunir com outros meninos ou então ficar esperando o tempo passar.

Ele morava na Carlos Vidal Ramos, a primeira rua à direita, e que, passado tantos anos depois, suspeita tivesse outro nome, talvez Princesa Isabel, mas os mapas insistem em dizer que essa rua é outra, embora transversal, aquela em que abrigava o Armazém São Pedro (de propriedade de um dos seus tios), na esquina com a Rua Rui Barbosa. Não importa. Essa precisão de detalhes não pode mais ser estabelecida, aqueles que eram capazes de esclarecer a dúvida estão, nas palavras de Manuel Bandeira, dormindo profundamente

Foi na pracinha que uma das irmãs do menino caiu do balanço e bateu a cabeça. Levada ao hospital, envolta em sangue e dor, alimentou o folclore familiar - sempre que possível, os irmãos costumam dizer que foi nesse momento que ela se tornou... Na falta de palavra melhor, excêntrica. Ela contesta, diz que nasceu assim. E que o que aconteceu na praça foi apenas um acidente. Há controvérsias...   

Na metade dos anos 60, início dos 70, a gurizada ia jogar bola (e roubar frutas) no campinho dos padres - uma espécie de área florestal no centro da cidade. O perigo era ser mordido pelos cachorros ou algum dos padres perder a paciência e chamar os pais dos meninos que não respeitavam a propriedade alheia para uma conversa “séria”. Quando isso acontecia, o castigo costumava doer bastante.  

O bairro da Brusque era uma das áreas mais sossegadas da cidade. Apesar dos meninos que treinavam pontaria com funda (estilingue, atiradeira). Nenhum alvo estava a salvo, muitas vidraças estilhaçadas, todos eram campeões de tiro. Também construíam carrinhos de rolimã e brincavam de faroeste (imitando o mocinho dos filmes que eram exibidos nas matinês de domingo, no Cine Tamoio). A algazarra era constante. 

No início do inverno, alguns moradores se organizavam para os festejos de São João. No terreno baldio, ao lado da casa do seu Lotar, erguiam fogueira. As labaredas avermelhadas lambiam a noite e a criançada se divertia comendo doces, soltando rojões ou infernizando a vida dos adultos.

O menino enfrentava as manhãs frias para ir para a escola. Com o passo apressado de que quem estava sempre atrasado, corria o risco de chegar ao Colégio Estadual de Lages (CEL) depois do horário de início das aulas. Não era algo ruim. Quando isso acontecia, e não foram poucas vezes, esperava a próxima aula em qualquer lugar, sempre havia algo para ler ou uma tarefa para ser terminada. Nessa jornada, escolhia contornar a praça, não gostava de passar na frente da delegacia. Também não gostava de caminhar pela calçada do necrotério. Procurava atravessar a rua pelo lado do King’s Sauna. Depois, descia a Jorge Lacerda até o fim. Acreditando que tudo era aventura, ele não percebia que o mundo seguro e confortável estava ficando para trás. 

Às vezes, o menino que fui se senta na mureta da pracinha. Não para olhar o que se perdeu. Para olhar o que viveu.  

 

(P. S: Foto cedida gentilmente por Almirante Soares Filho) 

quarta-feira, 21 de julho de 2021

DIÁRIO DA QUARENTENA (CCV)

 


João conhece a cidade pela janela do ônibus. Aposentado, morando sozinho, todas as manhãs embarca no primeiro veículo que encontra no terminal de passageiros próximo de sua residência. O destino não faz diferença. O importante é se deslocar pela imensidão urbana.

Na janela, fica vendo o mundo passar – como se o mundo só existisse encapsulado nas imagens que surgem e desaparecem diante do olhar. Coleciona histórias que nunca poderiam ser suas. Miudezas que anestesiam a perda irreparável de cada dia. Uma forma de medir a escuridão, de conversar com o invisível.  

A cidade vai adquirindo contornos surpreendentes. Mudanças que indicam movimento, mas que são realizadas de maneira imperceptível. Como se fossem varridas pelo vento, as casas de madeira, heranças de outros tempos, foram substituídas por prédios com vidros espelhados – habitados por pessoas que sequer se cumprimentam no elevador. A expansão incontrolável da cidade em direções que antes eram consideradas como inabitáveis estabelece uma nova geografia urbana.

Pela janela do ônibus, as placas dos estabelecimentos comerciais se transformam em borrões que ficam para trás. Essa velocidade contrasta com o tempo que emoldura o passado, momento em que era necessário arar a terra, preparar o campo antes da semeadura. Infelizmente, pensa João, a estação de colheita passou, a lavoura perdeu a fertilidade, as árvores foram abatidas.

A bagunça produzida por algumas crianças, estudantes que estão indo para a escola, quebra o silêncio. Ou melhor, atraem a atenção de João. Algum tempo depois, elas desembarcam diante do colégio e isso produz o vazio. Aquele mesmo que João sentiu quando viu o homem que chorava compulsivamente – como se estivesse sendo atravessado por uma dor intensa. Nesse momento, a tristeza foi compartilhada. Um era o outro e nada poderia ser feito para eliminar o sentimento de perda.

João queria ter o estoicismo filosófico do gato que dorme na varanda da casa amarela. Queria esquecer que a virtude, assim como o fio da navalha, pode machucar. Para afastar pensamentos ruins, se distrai com a conversa das mulheres que estão sentadas no banco da frente. Falam, em tom de malícia, sobre os casos amorosos de uma terceira pessoa. Trivialidades ressentidas.   

Algumas vezes, João troca de ônibus aleatoriamente, deixa que a roda da fortuna escolha uma nova direção. Qualquer coisa que o afaste da angústia é bem-vinda. Qualquer coisa que impeça as manifestações do coração áspero. Sempre há regiões desconhecidas, espaços oníricos, lugares em que o horizonte anuncia promessas e chuva.   

Ao final da manhã, João volta lentamente para casa. Depois do almoço, talvez vá caminhar um pouco, o médico o alertou sobre alguns cuidados básicos com a saúde. Talvez apenas espere por um novo dia, quando tudo recomeçará. 

 

terça-feira, 6 de julho de 2021

DIÁRIO DA QUARENTENA (CCIV)

 

 

As baixas temperaturas que estão ocorrendo no sul do Brasil promoveram o recordar de uma história que li em tempo distante, provavelmente nas reminiscências de algum brasileiro exilado em Europa no período da ditadura militar (Alfredo Sirkis, Fernando Gabeira, Herbert Daniel ou algum outro personagem envolto na névoa da memória).

Morando em Paris, ou em alguma cidadezinha próxima, o sujeito recebeu a visita da concierge, que estava furiosa. O motivo da admoestação soou surrealista: ele estava tomando banho duas vezes ao dia. E isso era um absurdo. Será que estava querendo produzir uma infiltração no prédio? Diante da negativa, foi advertido para parar com esse desperdício.

A ablutofobia (aversão ao banho) costuma acompanhar o folclore. Dizem que os franceses incentivaram o desenvolvimento da indústria que mascara os odores do corpo. Penso que isso não deve ser muito verossímil, embora os estudiosos da Idade Média não reportem aos seus leitores fragrâncias de rosas e flores silvestres. Ao contrário, há descrições de dejetos lançados em vias públicas, além de cadáveres que apodrecem em ar livre. Alguém, com espírito civilizatório, decidiu que o mundo em decomposição necessitava ser atenuado. Esse é o objetivo do uso indiscriminado de aromatizantes, cosméticos e perfumes. No romance alemão O Perfume (Patrick Süsskind) esse universo está razoavelmente representado. 

Em sentido contrário, o imaginário de alguns segmentos europeus está escorado na ideia de que, a cada onda de calor, os brasileiros mergulham no rio mais próximo. Talvez essa fosse uma possibilidade real no tempo da colonização, com as populações originárias. Com os atuais índices de poluição produzidos pelo homem branco, não se pode desprezar o risco de contrair algum tipo de doença de pele (no mínimo). Aliás, essa imagem aquática se comprova equivocada quando contrastada com a evidente falta de campeões de natação.

Recentemente, um amigo declarou ter diminuído os cuidados com a limpeza corporal. Disse que o frio e o aumento da tarifa de energia elétrica o obrigaram a tomar tal atitude. E que lavar apenas os pés muitas vezes equivale a um banho completo. Sem saber se essa declaração era uma piada ou uma confissão de culpa, preferi fingir que a versão modernosa do Sujismundo (personagem televisivo muito popular nos anos 70) não me causou a necessidade urgente de tapar o nariz.

Simultaneamente, lembrei-me daqueles que moram no interior do município e que não dispõem de água encanada. No máximo, um poço artesiano, muitas vezes centenas de metros distante da casa. A solução é banho de bacia, a água aquecida no fogão de lenha, e que precisa ser aproveitada com rapidez e eficiência antes que esfrie, antes que cause um resfriado. Creio que chamavam isso de banho tcheco, mas não sei o porquê dessa denominação. Em paralelo, há uma variante que é chamada, pavorosamente, de banho feijoada (pés, orelha e rabo). Por algum motivo que foge ao entendimento, inexiste nesses lugares o uso de similares ao ofurô, que é uma espécie de banheira japonesa, e que parece ser  um recurso adequado para os momentos de limpeza geral.  

Enfim, o Brasil convive com muitos problemas de asseio (de vários tipos, matizes e odores). E, infelizmente, muitas sujeiras costumam ser escondidas embaixo do tapete, talvez para que o poder possa fingir que tudo está bem, que tudo está controlado.

De minha parte, sigo, por enquanto, cantando no chuveiro. Duas vezes por dia. Desafinado, como corresponde aos bons selvagens.