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quarta-feira, 31 de maio de 2023

TCHAU!

 


Terminei a tarefa na Prefeitura do Município de Lages, SC. Foi (mais ou menos) bom enquanto durou. Depois de trinta e oito longos e intermináveis anos de serviço público, estou me aposentando. Mas, antes que alguém comece a soltar fogos de artifício, iluminando o céu plúmbeo da aldeia, aviso que a aposentadoria só vale para o funcionalismo. Ainda não encontrei um antídoto para essa maldição que chamam escrever. Então, para suplício de meia dúzia de inimigos, continuarei maltratando a língua portuguesa e a literatura.


O exercício da escrita não é exatamente tomar café com bolinho frito no meio da tarde.  A vida está repleta de episódios emocionantes com grandes intervalos de tédio. A função do escritor oscila entre uma circunstância e outra. Ou seja, é preciso desatar (ou inventar) esses nós que fornecem substância ao existir. Além do senso de observação sobre o que está acontecendo ao redor (e alhures), faz-se necessário aproveitar o momento. O que hoje parece ser uma boa história, amanhã não servirá sequer para embrulhar o peixe. Claro, se tiver peixe. E, como se sabe, nem tudo que cai na rede é peixe. Muitas vezes, se obtém muito... ah, deixe para lá, que do desastre devemos manter distância, inclusive para evitar o uso da palavra peixe quatro vezes no mesmo parágrafo.


Mas, em algumas oportunidades, por mais que o escritor se esforce, nada se consegue de bom (ou, vá lá, de razoável). Por isso, urge encontrar o socorro nos arquivos implacáveis. Reciclar um texto antigo (quanto mais antigo, melhor) é uma forma desesperada de tirar coelho da cartola. Ou seja, aquele que possui um arquivo com publicações de outras épocas jamais passará pelo vexame de ter que enfrentar o exercício de criatividade impulsionado pelo desespero. O dead line (data da entrega do texto) é o principal inimigo dos fracos. E, preciso confessar, jamais fui forte. O que me salva aprendi com o teatro, aquela coisa de interpretar um personagem, tentar fingir que estamos destinados à superação, à redenção, ao negar a rendição. Isso não tem preço. Mas se mostra extremamente valioso para quem quer sobreviver na selva onde brotam invejosos e incompetentes a todo instante.


Alguém assumirá a função de cronista da Prefeitura (e da cidade) e continuará na tarefa de entreter o distinto público. Ou não. Talvez a solução seja outra: adotar os serviços do ChatGPT, esse Frankenstein pós-moderno que deve, mais cedo ou mais tarde, substituir aqueles que escrevem. De minha parte, quero limpar as gavetas e ir embora. Para onde? Não sei. O que sei é que me perguntaram sobre o que farei quando não mais precisar levantar antes das seis horas da manhã. Para isso tenho resposta. Provavelmente vou dormir um pouco mais. Quer dizer, nos momentos intermediários continuarei lendo e escrevendo. Tenho dívidas e dúvidas – e acredito que a literatura é um portal que leva ao lugar onde todos os mistérios são revelados. Em caso de engano, cabe corrigir a rota e seguir na procura.


Imagino-me nos próximos meses, no período da manhã, caneca de chá na mão, sentado no sofá, olhando para os livros presos nas estantes do escritório. Entre um gole e outro do líquido morno, sonharei. Com quê? Isso não tem a mínima importância – exceto se for um bom palpite para jogar no bicho.


É isso. Tchau!



domingo, 28 de maio de 2023

MOÇAMBIQUE COM Z DE ZAROLHO

 


Uma das síndromes mais complicadas da modernidade surge quando o colonizado deseja estar em igualdade de condições com o colonizador. Ele sabe que isso é impossível. No entanto, através de simulacros, aqueles que são saudosos da opressão não perdem a oportunidade para tentar reproduzir a estrutura social, econômica e cultural do inimigo. Um dos sintomas mais característicos dessas situações surge com o processo de apropriação da linguagem, que toma emprestado palavras e expressões da língua estrangeira e as incorpora ao vocabulário cotidiano. Essa contaminação costuma gerar complicações dramáticas.

Manuel Mutimucuio faz um recorte dessa movimentação em Moçambique com Z de Zarolho – texto que oscila entre a comédia e a tragédia. O país africano, preocupado com a inserção no mundo globalizado, resolve trocar a língua oficial. Ou seja, adota o inglês no lugar do português e das estruturas de comunicação do povo que mora no interior de Moçambique. A ideia básica dessa mudança está escorada na criação de facilidades para o ambiente comercial. Imaginam que as restrições para conseguir investimentos internacionais diminuirão quando forem eliminadas as barreiras linguísticas.

As consequências são imediatas para os dois personagens principais do romance.

Hohlo, empregado doméstico do deputado Djassi Costa, está estudando a língua portuguesa para tentar conseguir um emprego melhor – talvez em Portugal. Diante das circunstâncias, aquilo que, em determinado momento, consistia em um projeto de vida, resulta na perda das referências. Além disso, vítima de vários mal-entendidos, Hohlo é despedido e quase linchado. Sem emprego, sem possibilidade de obter algum benefício socioeconômico, vítima de diversas violências físicas, raciais e emocionais, ele representa o indivíduo que, em luta exaustiva contra o sistema – e sem perspectiva de obter um resultado favorável –, é impedido de mudar de classe social.

Em paralelo, o deputado Djassi Costa, que votou contra o Renascimento Moçambicano (o projeto que resultou na adoção do inglês), precisa enfrentar um dilema familiar. Além de ter colocado em risco o seu futuro como congressista, imagina que prejudicou o filho mais velho. Com a ascensão do inglês, o objetivo mudou. Mandar o rapaz para pátria colonizadora está fora de questão. A solução está em conseguir uma bolsa de estudo na Inglaterra. Antes de qualquer coisa, ele precisa descobrir qual é o preço político que terá que pagar.

 Com a desculpa de que age em nome da população e almeja o seu bem (seja lá o que isso for), o Estado subverte a máxima de que todo o poder emana do povo e, em determinado momento, sem qualquer tipo de consulta, determina um conjunto de proposições autoritárias. A vida dos indivíduos não constitui empecilho diante das necessidades do poder tentacular do sistema político. Eles são apenas massa de manobra.

Moçambique com Z de Zarolho, sátira cruel dos processos de contaminação cultural, espelha acontecimentos frequentes nos países de Terceiro Mundo – embora, na prática, ocorram de maneira lenta e insidiosa. Diante do abismo cultural, alguns grupos sociais e econômicos sofrem menos com a mudança; ou melhor, se adaptam com maior facilidade ao novo cenário. Inclusive porque, por diversos motivos (principalmente os financeiros), possuem as ferramentas adequadas para efetuar a transição sem grandes traumas. Os representantes do capitalismo desconhecem as surpresas – são eles que as promovem.

 

TRECHO ESCOLHIDO

O que começara como uma conversa quase romântica resvalou para uma briga de casal. Cada um parecia levantar a voz mais do que o outro.

– Deixa o meu filho ir a Portugal. Eu conheço muitas pessoas que estudaram na Rússia, no Vietname e agora estão de volta ao país e têm bons empregos. A língua do país onde a pessoa estuda não é nada, mas estudar no estrangeiro, aqui em Moçambique, é ouro.

Sem resposta imediata, Paloma reforçou o seu argumento.

– No mínimo, Quest terá emprego numa empresa portuguesa. Quem pensas que tem posições proeminentes em empresas portuguesas aqui em Moçambique?

Agora ela não esperava qualquer resposta do marido, porque a pergunta era retórica. Continuou o seu discurso como que a dizer “é assim que se faz. Eu no teu lugar teria ganho o argumento no Parlamento”.

– São portugueses ou moçambicanos que estudaram em Portugal. O mesmo acontece com os americanos, chineses, indianos. Isso não vai mudar porque Moçambique mandou passear a língua portuguesa. Pelo contrário, os tugas vão proteger os seus interesses, e isso inclui dar abrigo aos que entendem os seus interesses, e isso inclui dar abrigo aos que entendem a sua língua e cultura.

Depois de se certificar que o monólogo tinha chegado ao fim, o marido contra-argumentou:

– Paloma, escuta – tentou fazer-se ouvir –. Ao aceitarmos esta bolsa, estamos a prejudicar uma outra pessoa, que realmente tirará partido desta oportunidade. Nós temos capacidade de encontrar outra bolsa para o nosso filho num país de expressão inglesa.

Paloma não se deixou convencer.   

– Por que não encontramos até hoje? Quest anda como um marginal já faz oito meses e agora me vens dizer que consegues bolsas quando e onde quiseres? Por favor, manda o  miúdo para Portugal. Depois, quando conseguires a tua bolsa de Oxford ou Harvard, faremos a transferência.

Sem qualquer margem para consenso, Djassi saiu do quarto abruptamente, pegou nas chaves do carro e decidiu ir apanhar ar. Foi muito devagar, sem destino aparente, mas, quando deu pelos seus sentidos, estava na Avenida Friedrich Engels, com vista privilegiada para a baia de Maputo. Desligou o motor do carro e teve uma enorme explosão de emoção. Apesar de todo o esforço, não conseguiu impedir que se lhe caíssem lágrimas. Sem se importar se passava alguém, baixou o vidro e gritou para o silêncio da noite:

– De que serve a política se um indivíduo não pode ajudar a própria família?


quinta-feira, 25 de maio de 2023

ALGUMA COISA ACONTECEU, TUDO ESTÁ DIFERENTE (texto modificado)

 


No campo de futebol da escola, as duas equipes pareciam estar lutando pela vida. O placar do jogo estava igualado até o momento em que um dos zagueiros cometeu um erro grosseiro. O gol se revelou mero detalhe na tragédia esportiva. Além da pressão emocional, o relógio anunciava que o fim da partida estava próximo.


 

Um dos jogadores, aluno esforçado, desses que passam horas diante dos livros, não se conformou com o que o destino estava reservando para o seu time. Com a bola embaixo do braço, providenciou a nova saída do jogo e pediu que lhe passassem a bola. Com uma habilidade que (até então) era desconhecida, foi driblando os adversários. Um por um. Abriu uma avenida no campo do adversário. Quando se aproximou da grande área, tendo somente o goleiro na sua frente, chutou forte no ângulo direito.


 

Com a mão erguida, o goleiro projetou o corpo na direção da bola. Esforço inútil. A bola passou por entre os seus dedos e somente diminuiu a velocidade quando se chocou contra a rede. Empate. Foi desta maneira que tudo terminou. O autor do gol salvador foi considerado um herói pelo resto do ano.


 

O passado é como vestir um casaco velho – roupa puída que projeta alguma luz sobre o que imaginamos ter existido em algum momento. Imerso na névoa onírica, aquele que relata uma história vai preenchendo as lacunas que surgem na narrativa. Assim, a história que é contada nem sempre corresponde ao que aconteceu, embora esse tangenciar seja uma forma de se aproximar dos fatos. 


 

Quase cinquenta anos depois daquele jogo de futebol, o menino que reagiu contra uma possível derrota está muito diferente. Ficou conservador. Não consegue conviver com as diferenças ou com as mudanças socioeconômicas. Alguma coisa aconteceu com ele. Preferiu construir uma verdade particular – desprezando o que lhe desagrada.


 

O tempora, o mores, alertava o filósofo Marcus Tullius Cicero (106 – 43 a. C), ciente de que os modos e as modas são frutos da vivência dos indivíduos. Ou seja, os acertos e as distorções estão relacionados com o processo histórico que cada pessoa precisa enfrentar durante a vida. Nem sempre essa transição ocorre de maneira pacífica.


 

Mais tarde, bem mais tarde, Sigismund Schlomo Freud (1856 – 1939) acrescentou outro elemento à equação: a construção emocional dos indivíduos está relacionada com a fragilidade (ou não) do ego. O narcisismo costuma ser mais forte que a racionalidade e muitas ações são consequência de uma necessidade compensatória para algum desgosto ou desacerto.


 

Na atualidade, não há surpresa quando a ilusão surge no horizonte. Esse proceder sebastianista de salvação, que se espelha na figura do herói (aquele que sacrifica a própria vida pela humanidade), almeja ignorar que as ações de transformação do espaço social precisam ser planejadas como um ato coletivo, como uma forma de integrar os diversos agentes em uma proposta para promover o bem comum. 


 

O menino que acreditou que poderia mudar – sozinho – o rumo de uma partida de futebol (ou, por extensão, do mundo) ficou preso no passado. E, se tudo correr bem, deve ficar lá por toda a eternidade. 

quarta-feira, 17 de maio de 2023

A NOBRE ARTE DE VIAJAR EM FAMÍLIA

 


Cansado de sobreviver aos finais de semana em família − no aconchego do lar, sufocado pelo carinho da esposa e dos filhos −, uma mudança de ares nunca é má ideia. Contra os mil e um desaforos domésticos ou essa tolice que é o contar moedinhas, a nobre arte de viajar surge no horizonte doméstico (raras vezes domesticado) como um antídoto contra a monotonia.

O ideal seria fornecer um descanso para a esposa e, ao mesmo tempo, cansar até não poder mais os filhos.

No sítio da família as crianças não querem ir. Todo ano é a mesma coisa: cavalgadas, pescaria, muita comida e... tédio. Depois de cinco dias nada mais é novo, as brigas começam a se tornar uma constante e não há quem consiga suportar os mosquitos.

Tudo bem, inferno basta o ano todo – em casa. Então, é hora de colocar a cabeça para funcionar e fazer uma lista das possíveis alternativas para que o pesadelo do descanso se transforme em um doce e lindo sonho.

Uma possibilidade está em visitar algum parente distante. Distante geograficamente, é claro. Que tal aquele tio milionário que mora no interior do Mato Grosso? Dizem que o pantanal é inesquecível. Eis a solução! Quer dizer,... depois de uns vinte telefonemas, a frustração: o tio amado, que poderia melhorar a tua vida, está em férias! Foi para o nordeste. E ninguém sabe quando voltará!

Estações de água, a casa da irmã em São Paulo (o cunhado é muito chato!), uma viagem pela Europa — cartas fora do baralho. Nada é possível. Ou falta dinheiro ou falta paciência.

O litoral surge como alternativa. É pouco, mas fazer o que? Então, o primeiro passo é alugar casa ou um mísero apartamento de quarto-e-sala. Supondo que, por um milagre, tudo transcorra como planejado, e, depois de muito pesquisar, você consiga uma casinha, pequena, porém honesta, lá no fim do mundo, ainda é cedo para pensar que tudo está resolvido.

Infelizmente, não está. Essa história de ficar bebendo cerveja, na beira do mar, olhando platonicamente os corpos que passam, tudo muito bonito, muito glamoroso, mas... antes do paraíso, urge ultrapassar o purgatório.

O início da festa começa com a revisão do carro (que serve também para mostrar que parte do teu dinheiro vai ser gasto antes da viagem). Depois, as compras imprescindíveis: cerveja, roupas de banho, camisetas, mais algumas cervejas...

Superada essa fase, cabe encontrar uma “vítima” para ficar com o cachorro. E que o trate bem. Inevitavelmente, as crianças vão exigir garantias, senão... o cão vai ter que ir junto. E isso é pior do que o mar virar sertão.

Depois de arrebanhar “as crias”, fazê-las entrar no carro, conferir se alguma coisa não ficou para trás — e não dá outra, sempre há esquecimentos (alguns, propositais!) —, a sorte está lançada!

Por fim, vem o translado. BR-282. Os buracos da estrada, os filhos gritando, “paiêêêê, tô com sede!”, a mulher a beira de um ataque de nervos, as manobras para desviar dos kamikazes (que, na direção contrária, tentam a todo custo causar um acidente), “paiêêêê, tô cum fomi!”, o pneu furado, as cinco mil paradas em todos os postos de gasolina na beira da estrada, a garrafa de água mineral que um dos meninos derramou no banco traseiro, o caos a desafiar os poucos cabelos que te restam na cabeça. E, por fim, para coroar o evento com fecho de ouro, a multa por excesso de velocidade. Essa ele não cobram na hora. Você nem fica sabendo da infração. Ou se a cometeu, realmente. Depois, uns quinze dias depois, a multa chega pelo correio, airosa e com o prazo de contestação vencido. Não existe outro remédio senão pagar. Afinal, se as contas forem feitas na ponta do lápis, é apenas mais um monte de dinheiro, e como você já está falido... não custa mergulhar no abismo.

No meio da confusão aparece a dúvida cruel: será que todo esse esforço vale a pena? Afinal, mesmo antes de sair de casa você já está morto de cansaço!

Apesar de tudo, a solução é arriscar. Alguma coisa do tipo “relaxar e gozar”. Pois, se pensarmos bem, descanso é descanso, a praia vai ser demais e ninguém é de ferro.

Por fim, há uma recompensa: voltar ao trabalho! Depois desses desastres todos, oito horas de serviço diário podem, inclusive, ter algum charme — tudo depende apenas das provações que você tiver que superar nesses fantásticos dias de sol (e chuva!) que algum louco convencionou chamar de descanso.

Boa viagem!

 


sexta-feira, 12 de maio de 2023

A INEVITÁVEL FRAQUEZA DA CARNE

 



Dois temas são assíduos na literatura brasileira: os conflitos familiares (pai, mãe, irmãos) e o adultério. Nem mesmo Machado de Assis conseguiu escapar desses terrenos pantanosos. Usualmente, eles estão entrelaçados – em maior ou menor grau, dependendo da abordagem e do peso que o narrador atribuir a cada um deles.

O enredo de A inevitável fraqueza da carneprimeiro romance Wilson Gorj, editor da Penaluxnão apresenta grandes surpresas: pai ausente deixa um sítio como herança, esposa insensível quer gastar o dinheiro da venda do imóvel, a imaginação se solta quando o narrador encontra a filha jovem do caseiro. Forma-se o eterno triângulo amoroso (e pouco importa o aspecto platônico da situação).

Será que alguém nunca contou uma história parecida com essa? Ora, ora. Esse tipo de conversa é irrelevante. A literatura não deve perder tempo com enredos originais (se é que existem). A maneira de contar a história é que importa, é o que sempre importou. 

Utilizando um artifício interessante, uma narrativa dentro de outra narrativa, o narrador (que se esconde atrás de outro narrador) relata a história de Carlos – aquele que não possui aptidão para ser gauche na vida. Entremeada pela primeira e a terceira pessoa, a narrativa escorre pelas páginas do livro, embora aborde temas complexos. O estilo leve, que evita a abordagem direta das questões mais espinhosas, ajuda muito para que o texto não resulte em discurso panfletário.

Carlos leva uma vida sossegada como contador. Enquanto confere a correção das colunas de débitos e créditos, ele se esforça para engravidar a esposa. O legado econômico que recebe introduz algum movimento nessa pasmaceira. Depois de viajar várias vezes para o interior e conhecer outras pessoas, Carlos percebe que muitas coisas não podem ser avaliadas como se fossem certezas. Por exemplo, a imagem da figura paterna sofre algumas mudanças, não o suficiente para atenuar a separação, embora contribua para diminuir o rancor.

Outra revelação surge quando abre o envelope com o resultado do exame laboratorial. Desaparece a possibilidade de ser pai, mas também destrói o seu casamento. Esse curto-circuito emocional causa danos irreversíveis – e que se completam em outro esclarecimento, igualmente traumático, transcrito na carta que a madrasta lhe entrega, ao se despedir, depois de breve visita.

Em ritmo de alegoria, no meio da noite, desamparado, sem ilusões, Carlos encontra no olhar da jaguatirica (que ronda o galinheiro do sítio) uma espécie não verbal de cumplicidade. A solidão atinge o homem e o animal com a mesma intensidade. Ao mesmo tempo, induz a percepção de que a existência estabelece formas particulares de lamber as próprias feridas. Tentar sobreviver no mundo que, por diversos motivos, perdeu a objetividade significa entender que segredos e traições não podem ser empilhados em uma planilha contábil.

Talvez a carne (nos seus diversos sentidos) seja um estorvo, ao fim de tudo o que sobra é apenas a pele secando ao sol.       

Da mesma forma, como se fosse um item de testamento, faz parte da travessia completar o texto que o amigo escreveu. É isso que o narrador secundário (aquele que aparece nas páginas iniciais e finais do livro) parece querer dizer.

 

TRECHOS ESCOLHIDOS

O facho da lanterna enquadrou um montículo de terra escavada perto da tela lateral. Projetei a lanterna para o muro do fundo e – bingo! – lá estava ela. A luz, como nas ocasiões anteriores, tinha o efeito de inibir os seus movimentos, deixando-a sem ação imediata: as patas dianteiras já tocavam o grosso galho que se projetava sobre o muro. Ela virou a cabeça um pouco para trás e deu para ver uma ave presa pelo pescoço entre suas mandíbulas; por certo, um pequeno frango cujo corpo se pôs a balançar assim que a jaguatirica saiu do seu torpor e, saltando sobre o galho, avançou para dentro da árvore engolida pela escuridão.

Julguei que fosse nosso último encontro e acenei um adeus em direção ao ponto em que ela sumiu.

(...)

– Suba de novo e olhe para o outro muro, onde antes ficava escorada a antiga pilha de telhas.

Obedeci. Passei a vista de novo e vi algo diferente: assemelhava-se a um pequeno tapete pregado no muro.

– Parece um capacho.

– Não, patrão. Force um pouco mais a vista. É outra coisa.

Minha visão já dava sinais de cansaço. Mais do que na hora de adotar os óculos fora da rotina do meu escritório.

Ciente disso, usei a mão como aba na testa, para bloquear a claridade do sol e ver melhor aquele falso tapete.

– Que filho da puta – exclamei, assim que me dei conta do que era aquilo.

Sim, lá estava a jaguatirica, ou melhor, o que restou dela: apenas sua pele pregada no muro pelas quatro patas.


terça-feira, 9 de maio de 2023

O TRAFICANTE DE MISTÉRIOS

 


Contar uma história é uma técnica que não está ao alcance de todos. Não basta ter um bom enredo, curso completo de alfabetização e disposição para ficar algumas horas diante do computador ou da folha de papel. É preciso algo além. O quê? Essa é a pergunta que vale um milhão de dólares – ou mais. De qualquer forma, a explicação para o sucesso (ou o fracasso) de um livro (ou de um conto, de um poema, de uma crônica) não está na inspiração divina, nas receitas de bolo ou nos cursos de escrita criativa.

Poucos conseguem executar o truque de mágica com perfeição. Talvez porque estão cientes de que o segredo da prestidigitação está em promover alguma forma de distração para o espectador. Enquanto a vítima olha para um lado, o outro lado executa a ilusão. No fundo, como em tantas coisas da vida social, a escrita apenas fornece uma estrutura artística ao logro.

A história de qualquer um (vivo ou fictício) daria um romance. É o que se imagina. Ou o que sugerem aquelas séries televisivas que prendem as pessoas em maratonas intermináveis. Isso talvez seja um engano. O exercício da banalidade não é matéria literária (ou melhor, não deveria ser). Infelizmente, o distinto público parece estar em outra sintonia, quer diversão, mas não quer arte. Faz parte. Talvez em Marte.

Considerando que a literatura grega (tantas vezes glosada pelos romanos) abordou todos os temas possíveis, a escrita contemporânea precisa encontrar uma maneira diferenciada de contar algumas das histórias que se repetem incansavelmente. A morte, as relações familiares, o poder político, a ganância, a maldade, a interpretação equivocada do destino – são muitas as formas (fórmulas) de construir a aventura literária. E isso não depende da narrativa terminar em tragédia ou em comédia. Ou de não terminar, porque a vida (frequentemente) passa mansa como as águas de algum riacho.

Evidentemente, o mar revolto também recebe as boas-vindas – embora (incontáveis vezes) seja difícil distinguir entre o cais, a tábua de salvação e o naufrágio. O que parece estar parado talvez esconda a turbulência e o que está em movimento, talvez seja calmaria. Complicações não faltam.

Sentimentos são artefatos pessoais, intransferíveis. E, portanto, manipuláveis. Cenário perfeito para que a literatura capture a atenção do leitor e, na velha brincadeira de cabra-cega, o conduza até o bosque encantado, lugar onde tudo é possível, mas nada é real. Não faltará narrador a comentar, como se isso fosse coisa sem importância, que aquilo que foi contado aconteceu, mas de outra maneira. E que ele somente teve o trabalho de preencher os espaços vagos com algumas mentiras e muita imaginação. Nada demais, como ensina a eterna lição escolar: entre os fatos e a lenda, a publicidade direciona os holofotes para o que possibilitar o maior ganho econômico.

Enfim, para simplificar o imbróglio, quem decide mergulhar no abismo não está preocupado com dilemas filosóficos. A empatia e a repulsa são questões supérfluas, não servem sequer para garantir uns trocados em direitos autorais. O que quer garantir é que, na queda, o pouso não cause muitas fraturas. Raramente isso se torna possível. 

O escritor é um traficante de mistérios.        


domingo, 7 de maio de 2023

GATO (texto modificado)

 



A vida é transitória. Até as sete vidas dos gatos têm prazo de validade. Foi isso, na falta de argumento melhor, o que disse ao menino – quando ele me comunicou que a eutanásia tinha sido autorizada. Gato deixou de existir. Nenhuma surpresa. Ele estava doente. E o fim do sofrimento foi uma atitude humana – se é que é possível usar essa expressão.


Gato entrou nas nossas vidas de forma ardilosa. Escrevo nossas vidas ciente de que existe uma imprecisão terminológica na frase, já faz bastante tempo que não pertenço à família. De qualquer forma, o que gostaria de esclarecer é que também fui afetado pela existência do gato.


O menino foi passar alguns dias no litoral, durante as férias. Não lembro exatamente da data. O gato vivia por lá, sem domicílio regular. Comia quando havia o que comer, dormia onde era possível. Era, na falta de um conceito melhor, um sem-teto. Por razões que a razão desconhece, em determinado momento, o animal resolveu adotar o turista. Além disso, permitiu que ele fosse contaminado pelo autoengano. Ao imaginar que estava adotando um gato, o menino ignorou que era o felino que detinha o poder sobre ele. Uma nova versão da velha história de vender gato por lebre.


O fato concreto é que, quando as férias terminaram, o bichano subiu a serra. Imediatamente tomou posse do novo lar. Esse gesto de bondade com os humanos lhe custou caro. Foi castrado. Protestei contra, mas – como sempre – fui voto vencido. Aliás, nem eu nem o gato tínhamos direito ao voto.


Pois é, em alguns momentos, comida e proteção equivalem à escravidão. Não sei se Gato chegou a essa conclusão, no instante em que perdeu a virilidade. Eu, testemunha ocular da história, fiquei triste com o desfecho, imaginando que ele, o gato, se transformaria em um bibelô gordo, desses que ornamentam a sala de visitas dos burgueses. Claro que estava enganado. Gato tinha personalidade. Sempre se recusou a ser domesticado. Extremamente curioso, corria para lá e para cá toda vez que havia algum movimento suspeito. Cometia pequenos e grandes delitos. Transformava os humanos em brincadeira de gato e sapato. A verdade é que ele tinha uma péssima personalidade. Somente fazia o que queria. E quando queria.


A escolha do nome de Gato foi outra epopeia. Creio que aqueles que tiveram o prazer de conviver com ele testaram várias alternativas e nenhuma se mostrou satisfatória. Com a altivez de um deus egípcio, Gato fazia questão de descartar as mais óbvias possibilidades. Também recusou algumas tentativas exóticas. Não respondia aos chamados, mostrava cara feia, miava com intensidade. Sem escolhas, o seu dono (dono?) concordou em chamá-lo Gato (assim, com G maiúsculo).


Não é desses fatos corriqueiros que quero lembrar. A imagem que vou guardar é outra. Quando eu ia até o apartamento em que o menino morava, Gato costumava se aproximar de mansinho (aquela velha tática de quem não quer nada e fica feliz quando leva tudo), e subia no meu colo. Se eu não manifestasse contrariedade, ele subia mais um pouco, deitava no meu peito, fechava os olhos e ficava em doce ronronar até que um de nós dois se cansasse e modificasse a situação.


Pensando bem, não era somente comigo. Muitas vezes o vi fazer isso com o menino. Ao transmitir o calor de seu corpo para algum outro corpo, ele estava passando uma mensagem de carinho. Era uma forma de interação social? Não sei. Talvez fosse uma concessão para aqueles que o protegiam. Gato era um enigma. E isso contribuía para que olhássemos para ele com ternura. Com a ternura que merecem os rebeldes.


Apesar de ser um animal independente, egocêntrico e próximo do anarquismo, Gato era simpático – desde que isso lhe fosse conveniente. Sabia conquistar atenção e afeto na mesma proporção com que declarava aversão com aqueles que não se submetiam aos seus caprichos. E não foi para poucos que mostrou alguma hostilidade. 


Agora, que não o temos mais entre nós, percebo que esta elegia fúnebre é uma forma de dizer que Gato deixou uma imensa saudade, dessas que não tem conserto.