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domingo, 31 de dezembro de 2023

O ANO NOVO ANTECIPA O SURGIMENTO DO DRAGÃO



 

O primeiro de janeiro deveria ser proibido, e o dois de janeiro também. O ano deveria começar em vinte e um de março. Não haveria surpresa se fosse um brasileiro o autor dessas três frases. No imaginário popular, o país só começa a funcionar depois do Carnaval. No entanto, a declaração é do Pepe Carvalho, personagem de vários romances policiais do espanhol Manuel Vásquez Montalbán. Evidentemente, ele se expressa para caracterizar uma situação particular: a enorme ressaca alcoólica decorrente da mudança de calendário no longínquo ano de 1984.

Trazendo esse pensamento para o momento atual – em que a Terra efetuou mais uma rotação em torno do Sol –, podemos dizer que, apesar de todas as tragédias (guerras, crise climática, preconceitos diversos, fanatismo religioso,...), ainda estamos vivos. Não sei se isso justifica pular sete ondas no mar, beber inúmeras taças de vinho, vestir roupa branca, fingir afeto, comer lentilhas, romãs, uvas,... Tampouco é possível encontrar motivos para suportar as previsões sobre o futuro, as listas dos melhores e dos piores, e as retrospectivas – momentos que tentam transformar o processo histórico em faits divers.

Viver não é preciso, navegar é preciso, diria o poeta português, aquele que sobreviveu a inúmeras noites festivas em completa solidão. No outro extremo da corda encontramos Guimarães Rosa, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e dai afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem...

No filme A Encruzilhada (Crossroads. Dir. Walter Hill, 1986), um estudante de guitarra procura por uma canção perdida de Robert Johnson. A metáfora musical propõe um dilema: será que o preço a pagar vale o que se recebe em troca? Só encontra a resposta quem escolhe trilhar um dos caminhos da bifurcação. Essa atitude determina os acontecimentos futuros. Por isso (e mais algumas coisas) cabe seguir na procura. Sem expectativas ou ilusões, misturando alegria e medo. E com as armas que estão à disposição, sejam elas o tacape ou o míssil nuclear.   

Comprei espumantes, cervejas, refrigerantes, isotônicos, garrafas de água mineral. Tudo no plural. O excesso é um dos sinônimos do viver. Se não for, deveria ser. Salvo engano, estou tentando consumir todas essas bebidas sem grandes preocupações hepáticas ou diabéticas. Quase escrevi diabólicas – tenho dificuldades para fugir dos trocadilhos ruins. Aliás, não é só nessa questão que encontro complicações. No tropeçar diário, a serenidade parece estar se distanciando a cada segundo. Nasci com pouca paciência.

O início do ano é uma convenção. Não tem o mínimo significado para algumas culturas. Pelo calendário lunar chinês, o ano 4722 começa em 10 de fevereiro.  Será conhecido como o ano do dragão (do tipo madeira yang, uma dessas classificações complicadas do povo asiático). Previsões astronômicas e astrológicas indicam que haverá o cuspir de fogo em pessoas e cidades que negarem as qualidades mágicas (ou ilusórias) do animal mitológico. Vou perguntar a Daenerys Targaryen, Harry Potter, Lisbeth Salander, Lui Nakazawa ou para algum monge tibetano o que preciso fazer para conseguir um desses animais de estimação. 

Enquanto isso não acontece, e não for possível acelerar o tempo da imaginação, ciente de que cada história é um acontecimento único, intransferível, e que ninguém herda a sabedoria, resta olhar para os erros cometidos no passado e receber os novos desastres de braços abertos. A vida não se resume em abraços, mas pode ser uma forma de iniciar o ano, qualquer ano – se você for otimista. Não é o meu caso.




sábado, 30 de dezembro de 2023

PROUST, TÂNIA, SALETE, LEANDRO KONDER

 


Estou me organizando para ler os sete livros que compõem À Procura do Tempo Perdido, do Marcel Proust (1871-1922). Comprei os dois primeiros volumes da nova edição brasileira (Companhia das Letras), mas eles estão intocados na estante. É que não quero mergulhar no abismo sem alguma rede de proteção. Ou seja, vou ler, antes de tudo, alguns ensaios críticos e biográficos (Roberto Machado, Samuel Beckett, Vladimir Nabokov, Alain de Botton, Joseph Czapski, Celéste Albaret, Edmund White e outros). Depois é que iniciarei a aventura.

Talvez isso seja um preciosismo. Mas, alguns leitores possuem baixo nível de compreensão de certas coisas (ou das coisas certas). Não me considero enquadrado em um desses casos em que é difícil distinguir a loucura da lucidez, até porque conheço situações piores. No entanto, como é de conhecimento amplo, geral e irrestrito, a literatura produzida por Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust (nome completo do escritor) não é exatamente chá com bolinhos (embora... chás e bolinhos façam parte do cenário).

No meio de um dos livros do Roberto Machado, Proust e as artes (Editora Todavia, 2022), encontrei menção ao Bergotte (um personagem proustiano importante). Nesse momento, alguma gaveta da memória se abriu. Junto trouxe a dúvida. Onde foi que li esse nome? Interrompi a leitura e fiquei a pensar nesse mar de papel e tinta que compõe a biblioteca (ou melhor, todas as bibliotecas do mundo). Em algum lugar, qual?, encontrei Bergotte – e não foi nos livros de Proust.

Duas da manhã. A intuição me dizia que a solução estava escondida em algum lugar das estantes que abrigam a literatura brasileira. Bastava procurar. De repente, tudo se esclareceu. Poderia chamar esse momento de insight, epifania, revelação, satori, estalo de Vieira, sei eu lá o quê. Poderia.

Foi em 2000 ou 2001. Aluno do mestrado em literatura na Universidade Federal de Santa Catarina. Aula da Tânia Regina Ramos. Trabalho de grupo. Salete Lopes fazia parte da minha equipe – desculpem-me, não me lembro das outras pessoas que estavam conosco. A proposta era ler um dos livros da coleção Literatura ou Morte (Companhia das Letras) – e escrever um texto sobre a experiência. A nós coube Medo de Sade, do Bernardo Carvalho. Creio que completamos a tarefa com eficiência.

Embora (naquele tempo) estivesse próximo da falência, aos poucos fui comprando os outros livros que foram usados na disciplina acadêmica. Foram esses volumes que procurei no meio da madrugada (porque a menção ao Bergotte não está no romance do Bernardo Carvalho). Não sei se encontrei todos. Fui conferir na Internet e pouco ou nada encontrei sobre a coleção. Vinte e poucos anos parecem uma eternidade. Rastros desaparecem na luminosidade de outros acontecimentos.

A referência está em A morte de Rimbaud, do filósofo Leandro Konder (1936-2014). O texto está encharcado de citações proustianas e francesas. Depois que o mistério se esclareceu, lembrei que li o romance com bastante interesse porque Konder escreveu dois textos que, naquela época, me impactaram muito: A Derrota da Dialética (Editora Campus, 1988) e Walter Benjamin: o Marxismo da Melancolia (Editora Campus, 1988). Esporadicamente, releio trechos desses livros – é tão bom quando percebemos que o tempo não dissolveu os ensinamentos do Mestre.

Por algum motivo, e não sei exatamente qual, tudo o que posso dizer sobre essa história é que, sentado no sofá, com os livros da coleção nas mãos (alguns bastante surrados), fiquei com saudades das aulas da Tânia, da generosidade da Salete, da inteligência do Leandro Konder. 

A curiosidade pelas frases intermináveis do Proust aumentou.  


 

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

O REI DA ÁGUA

 


Em um mundo aquático, no futuro distante, as irmãs Andrea e Juana precisam decidir se aceitam receber uma indenização pela morte do pai. Como acontece em muitas relações fraternas, as duas mulheres sentem prazer ao saborear os frutos do antagonismo. Criadas separadas, com interesses (inclusive econômicos) divergentes, olham uma para a outra como se fossem estranhas. E são. Uma foi criada pelo pai (ativista político), a outra pela mãe (atriz). E não se encontram em nenhuma das páginas do texto.   

A narrativa abusa das frases poéticas, compondo um campo onírico e repleto de metáforas que levam a imaginação do leitor para lugares que parecem estar distantes da linha narrativa principal – que talvez não seja de fácil percepção porque O Rei da Água (Editora Peabiru, 2023) integra uma trilogia (Pichonas e El Ojo y la Flor, as duas partes que o circundam não foram traduzidas no Brasil). Em alguns trechos parece estar faltando (ou sobrando) alguma informação. O estranhamento se faz presente.

O mundo está se tornando desertificado, a água potável substituiu o combustível fóssil como a commodity mais importante. A cidade de Tigre (Província de Buenos Aires, Argentina), aproveitando a riqueza líquida que é o Aquífero Guarani, se transforma em uma das principais fornecedoras mundiais. E isso, independente de outras questões, significa que a política, a economia e as ações sociais são administradas pelo Estado (ou por seu representante). O controle do consumo se torna um item essencial para extrair o máximo de lucro de uma atividade que tem vida útil limitada. Água é poder – segundo Tempe, o rei da água.

Como se fosse o abrir das comportas de uma represa, o fluxo narrativo avança na descrição de personagens estranhos, pouco críveis, como Tullio (o advogado) ou Cresta (o palestrante). São objetos (abjetos) que não combinam com a decoração do cenário, que confundem o desenrolar dos acontecimentos, que destoam de Galo e de Dalezio (os companheiros de Andrea e Joana, respectivamente). Esses invasores parecem querer encontrar navios ancorados, destroços suspensos, mas são incapazes de entender a topografia subaquática, e então nada mais lhes resta senão aparecerem e desaparecerem do texto como se fossem barcos à deriva no torvelinho.

O livro apresenta algumas referências às ditaduras militares, às lutas ecológicas, ao feminismo. Mas, nada se expressa de forma explícita ou panfletária, a fabulação prevalece e a narrativa procura manter uma distância segura de todos esses temas, embora não faça omissão de cada um deles. Exceto no momento mais simbólico. Entre 1976 e 1983, muitos argentinos foram sequestrados pela polícia e o exercito. Depois de muitas sessões de torturas, foram jogados em mar aberto. Calcula-se que cerca de 4.000 pessoas foram vitimas desse método de execução. Os corpos se dissolveram na água e, portanto, nunca foram encontrados.

Juana, que trabalha com internet, navega em outro tipo de águas. No entanto, estar atrás do computador não amplia a sua imunidade aos predadores. A diferença está nos perigos e no medo que precisa contornar. A vida é uma espécie de tsunami – não há diferença se é real, imaginário ou virtual, porque a destruição é incontrolável. Nesse sentido, como afirma o pai das irmãs, Não leve a vida muito a sério; você não vai sair vivo dela.   

 

Foto: Alejandra Lopez

Claudia Aboef (Buenos Aires, Argentina, 1960), mora em Tigre, na Província de Buenos Aires, e publicou Medio Grado de la Libertad (2003), Pichonas (2014), El Rey del Agua (2016), El Ojo y la Flor (2019). Escreve artigos sobre a literatura argentina em diversas revistas. Também se interessa pela astrologia.


segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

A CIDADE E OS SEUS ESPAÇOS VAZIOS




A decomposição arquitetônica da cidade ocorre todos os dias. Pontos de referência somem. Árvores continuam sendo cortadas. Ruas e avenidas surgem e desaparecem com rapidez. Todos os dias, demolição. 

O novo sempre vence. A nossa herança são os escombros – que raramente são recicláveis. Através dos espaços vazios que são abertos no cenário urbano, o progresso (insaciável) avança – sem compromissos com o passado, sem interesse no inventário das perdas. 

O mercadinho de bairro, onde comprávamos “de caderneta”, agora é um prédio de vários andares. As livrarias deixaram de existir e, em seu lugar, inauguraram lojas que vendem mercadorias que ninguém quer adquirir. Os cinemas foram substituídos por templos religiosos. As farmácias se multiplicaram. As bancas de revistas oferecem milhares de produtos, exceto revistas e jornais. Os supermercados ignoram as fronteiras nacionais e anunciam produtos de todas as partes do mundo. O mundo “gourmet” invadiu a vida de todos.

Esses empreendimentos, seguindo a ordem geral das coisas, possuem vida efêmera – existem no intervalo temporal entre duas crises econômicas. Nada é permanente – exceto a memória, esse lapso melancólico de quem se apega ao passado e, teimosamente, recusa se adaptar ao presente.  

A selvageria se tornou norma, ou melhor, normal. Seguindo a cartilha dos novos bárbaros, não existe interesse nas histórias que deixaram de serem contadas, nas pessoas que são expulsas diariamente dos locais onde depositaram as raízes familiares, no patrimônio cultural que vai sendo soterrado lentamente, nos deuses domésticos que foram abandonados. Tudo é mutável, porque o escambo silencioso tomou conta da paisagem e a transformou em mercadoria.

Os espaços vazios de afeto dominam a existência urbana. Os sentimentos não possuem valor comercial, não possibilitam lucro ou acumulação. O mesmo se pode dizer das praças, desses locais onde as pessoas param para descansar ou apenas respirar o ar da cidade onde moram. As praças são lugares onde o choque e a resistência se encontram, separando a inocência e a brutalidade de um mundo em transformação.

Os profetas do apocalipse detestam as praças e afirmam que a imobilidade está na contramão do empreendimento. Discursam no púlpito mercantil que o canto das sereias deve ser entendido como um mantra religioso – as divindades monetárias acima de todas as coisas. Por isso, multiplicam as vias expressas, os carros velozes e furiosos, e elegem a rapidez como sinônimo de trabalho. Em nenhum momento conseguem perceber que esse tipo de ação está envolto na tristeza.  

Não há o mínimo sentido em acreditar que a tristeza é o preço que devemos pagar pelo amor. A cidade precisa de alegria, de luz, de parques, de esperanças, de políticas sociais, de moradias para todos. A cidade precisa de pessoas que gostem dela e que estejam distantes dos vendilhões do templo. Ninguém pode impedir as mudanças, mas o futuro não precisa estar ligado aos que fazem da ambição uma profissão de fé.

Viver em sociedade difere de estar preocupado com o preenchimento dos espaços. É algo diferente. É se sentir acolhido pela beleza, ampliar o horizonte, impedir o isolamento. É desconfiar das certezas e acreditar no humano. É ver o mundo com os olhos da poesia.