Escritor de outra têmpera, desses que temperam a vida com o sal da terra, o cearense colocou no mundo mais um livro, como que a querer se livrar das obsessões que cutucam a cachola daqueles que são capazes de virar de pernas pro ar toda e qualquer estrutura, enredo, narrativa, conto, causo, dedo de prosa, glosa do viver.
O romance Big Jato celebra, em 182 páginas, o inevitável de inflexão do homem maduro que olha para trás e vê como foram árduos os rituais de passagem, a história do menino que precisa deixar de ser menino diante de um mundo assustador.
Longe de fazer desse trauma tragédia ou ópera bufa, Xico Sá articula o confuso discurso com que gosta de confundir a plebe ignara e, entre episódios pouco ortodoxos, raras vezes conectados com a limpidez (em diversos sentidos), vai descarregando figuras de linguagem, citações literárias e musicais, ensinamentos populares, divagações cheias de graça.
Incont(rol)áveis gargalhadas acometem os leitores, comprovando que a vida conjuga uma festa interminável.
Em selvagem ordem cronológica, um acontecimento empilhado depois do outro, o ocre do sertão vai desbotando os protagonistas dessa farsa narrativa. Em 1970, entre o fenemê e seu motorista (o homem que atende pelo título de pai), o menino, fazendo companhia na boleia do caminhão, vai descobrindo as verdades e as mentiras que envolvem o existir.
Unidos pelo desacerto de limpar as fossas da cidade de Peixe de Pedra (ex-Desterro, ex-Santana de não sei quantas), provavelmente localizada no Vale do Cariri, os dois estão impregnados de merda até os últimos fios de cabelo.
Entre o ganhar o pão de cada dia e limpar a sujeira do mundo, Beatles. Mas somente fora do perímetro urbano, lugares ermos onde a antena do rádio do caminhão (para os íntimos, Big Jato) consegue captar o ritmo chicletão das músicas dos cabelim pastinha.
Foi assim que aprendi a gostar dos Beatles, sem o velho dizer nada, sem eu entender uma palavra de inglês, mas sacando tudo, um certo estado de espírito, como diz meu tio, o meu tio Nelson que tanta falta nos faz no serviço de alto-falante, com suas traduções, loas e mentiras. Um sertanejo ou um esquimó se emocionam do mesmo jeito, dizia ele, quando ouvem os rapazes de Liverpool.
Enquanto a fedentina se espalha pelo mundo, o menino vai obtendo outros entendimentos da vida: o colégio, a escola de datilografia (que o encaminhará para o reino literário), as punhetas (– Meu filho, você está entrando no maravilhoso e viciante reino da boceta – berra, inconveniente, o velho), as aulas de filosofia existencial do tio Nelson (O trabalho danifica o homem), a primeira trepada na zona, a primeira vez que olhou com interesse para uma mulher – e, como poderia ser diferente?, o primeiro pontapé do amor na bunda. Para quem lidava com merda todos os dias, um pouco mais não fez muita diferença, apesar do choro, dos esforços desesperados, do orgulho ferido e da falta de orgulho.
Foi quando o pai ficou doente que o ordenamento mudou. Outro caminhão, mais moderno, mais eficiente, invadiu a área e tomou os clientes do Big Jato. Depois de ouvir o noticiário econômico no rádio, o pai saltou da cama e, mostrando um tino empresarial inusitado, mudou de ramo comercial. Investiu o dinheiro familiar em porcos. A mãe, ao ver o marido que estava desaparecido há vários dias, não o poupou: – Por que esse miserável volta mais sujo ainda, é? É sina?
Sina, sinal, farol aberto para novas aventuras. Nada é mais inevitável do que desentendimento com o pai. Uma surra de relho de couro cru para aprender a ser homem, e o Guia Kerouac de cair na vida, o fizeram ver o horizonte.
Muitos anos depois, o menino narrador se transforma em escritor, tornando realidade a profecia do pai: Livro é para quem precisa inventar a vida que nunca teve.
Muito bom! Dá gosto de ler, Raul!
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