Mil Rosas Roubadas, romance mezzo
proustiano, mezzo sei-lá-o-quê, escrito por Silviano Santiago, lembra o ritual
de uma cerimônia do adeus particular, embora não consiga afastar a semelhança
com um disco riscado, eternamente condenado a repetir trechos de uma música
composta em 1952, quando dois adolescentes de 16 anos se encontraram em uma
praça de Belo Horizonte. De um lado estava o futuro produtor musical Ezequiel
(Zeca) Neves; do outro, o futuro crítico literário Silviano Santiago.
Cada fragmento dessa história deságua na
imagem do homem que, alimentando temores e medos, sobreviveu aos desacertos da
vida e contemplou com palavras e sons o cadáver do amigo. Na estrada que separa
o estímulo mental e o prazer do sexo, a fim de que cada um tomasse o rumo certo para saciar a libido em alvoroço, muitos anos depois, mais de cinquenta, a
voz do narrador (persona em que se transveste o professor universitário
aposentado), como se mimetizasse o canto das sereias, parece afirmar que o amor,
mais do que a satisfação física, é um conjunto de recordações, um momento interrompido
no tempo. O ato de confessar (com fluência e fruição) desejos, fracassos, gozos
e castrações, se impõe. No entanto, apesar das aparências, ou melhor, ciente de
que as aparências não correspondem ao real, há que se estar ciente que o corpo
textual se alimenta de pistas falsas. É possível perceber indícios de que o
narrador e o personagem estiveram envolvidos em algum tipo de simulacro amoroso.
E pouco importa que essas nuvens sejam dispersas por declarações como Jovens e
aprendizes de boêmio, gostávamos de sentir a volúpia do adeus como se fôssemos
dois amantes – e nunca o fomos. A amizade é uma forma de preencher a ausência,
estabelecer cadência afetiva, estreitar os laços que unem (de diversas
maneiras) um homem a outro homem.
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Silviano Santiago |
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Ezequiel Neves |
Diante de um personagem repleto de
nuances psicológicas, pois prefere incentivar o folclore em lugar de apostar na
simpatia, a retórica se torna uma arma eficiente para fugir de temas
desagradáveis. Somos pessoas que sangramos tinta na folha de papel em branco,
desconversa o narrador, tentando deslocar o olhar do leitor para a brincadeira
que promove: ludicamente mistura os gêneros literários, impedindo de forma
deliberada que o leitor descubra onde começa e termina a ficção, quais são as
diferenças entre biografia e autobiografia. Em determinado momento, talvez
apenas para aumentar a confusão, deixa escapar que Estou a escrever romance,
reconheço. Adeus, biografia. Nenhum leitor calejado pelas deslealdades que
acompanham narradores em primeira pessoa pode considerar seriamente esse tipo
de afirmação. O truque é fornecer uma nova roupagem para o velho clichê: O
poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor /
A dor que deveras sente.
Simultaneamente, o narrador quer passar
despercebido como partícipe da trama. Por isso, prefere anular a si mesmo,
pulando para o outro lado do balcão. Sua tarefa se resume em “apenas” contar a
história do amigo, em espalhar suas palavras em letra de imprensa. O que “esquece” de contar ao leitor é que, através desse
subterfúgio, pode centralizar o relato em si mesmo – sem ter que dar muitas explicações
sobre esse proceder.
Em determinado momento, usando a voz do
Outro, daquele que lhe é antagônico e, ao mesmo tempo, complementar, o narrador
inscreve no texto uma metáfora inusitada: Tudo é natural porque tudo é
artificial. Será que há diferença substantiva entre rosas naturais e rosas
feitas em papel crepom? Independentemente da água que alimenta uma e é
desnecessária à outra, a flor natural e a artificial não são, nas respectivas
jarras, duas e a mesma? E não são ambas belas?
Belas? Sim. Mas, convém não esquecer, são
diferentes. Diferentes formas de beleza. Como comprovam as imagens
produzidas pelos múltiplos espelhos que refletem exponencialmente a poesia
distante (perdida entre as lembranças que insistem em ecoar a todo instante)
como a luz de um farol, tremeluzindo no meio da névoa que fornece densidade
para a vida.
A cama do hospital é um retângulo em
branco – papel Canson ou lençol – onde o corpo que parece respirar e é humano é
só rastro mineral da vida. Depois da morte, o vazio. As lembranças não
constituem compensação suficiente para esse fragmento do discurso amoroso. Mesmo assim, o propósito de Mil Rosas
Roubadas aparece limpidamente, como se fosse apenas um verso perdido no meio de
uma música, Adoro o amor inventado, ou então uma elegia fora de moda: Se ele
já não pode ser mais meu biógrafo, proponho ser eu o biógrafo dele.
que lindo texto...e revela/resvala num lado desconhecido (para mim) de Ezequiel Neves.
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