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segunda-feira, 27 de abril de 2015

DOIS OU TRÊS PALPITES SOBRE A LEITURA

Cena do filme O Leitor, baseado no 
romance Der Vorleser, de Bernhard Schlink
Esporadicamente alguém se manifesta em jornais, revistas e internet sobre os péssimos índices de leitura no Brasil. São opiniões divergentes, repletas de preconceitos e sem muita substância. Em muitos casos, enfocam aspectos principais, secundários e acessórios – sem saber qual é qual e as suas relevâncias. Poucas vezes atingem o ponto nevrálgico. Um desses casos típicos está retratado na pesquisa sobre os hábitos de lazer cultural dos brasileiros, realizada pela Federação do Comércio (Fecomércio) do Rio de Janeiro, em conjunto com o SESC-Rio e o SESI-Rio, e que aponta que, em 2014, sete entre dez brasileiros não leram um único livro.  

Alguns dos indignados comentaristas da pesquisa abordaram o analfabetismo literário como se fosse um fenômeno contemporâneo. Basta olhar nas entrelinhas desses textos para perceber que esses sujeitos fizeram um grande esforço para reprimir o início da análise com um parágrafo encabeçado por alguma frase nostálgica, talvez algo similar ao clichê no meu tempo não era assim. Implicitamente, eles anunciam com grande prazer que, em passado não muito recente, o problema não existia. E o pior é que – em um país que sempre se caracterizou pela ignorância galopante – ninguém diz em voz alta a palavra exata: mentirosos. Qualquer um que conheça um mínimo da história cultural do Brasil necessita admitir o básico: a instrução escolar – ler e escrever – sempre esteve atrelada aos propósitos de dominação sócio-política das classes econômicas mais abastadas. Os colonizadores, os índios e os escravos eram os principais segmentos de uma sociedade ágrafa. Com a Lei Áurea e a proclamação da República, o problema não diminuiu; ao contrário, ficou ainda mais evidente. Foi somente a partir da administração Gustavo Capanema, quando era Ministro da Educação, que ocorreram alterações significativas no sistema de ensino nacional. O analfabetismo começou a diminuir – mas não muito. E isso ratifica que, em um país de dimensões continentais, o poderoso braço do Estado se faz presente a todo instante como agente repressor, jamais como símbolo de liberdade ou avanço educacional.

Contemporaneamente, o analfabetismo está controlado – se as informações divulgadas pelo Ministério da Educação forem confiáveis. No entanto, as políticas de incentivo à leitura são, no mínimo, insuficientes. Muito ainda precisa ser feito nessa área. O número de bibliotecas escolares está aquém do desejado – e muitas delas foram substituídas por salas de informática, na vã pretensão de que o conhecimento superficial, fornecido pela internet (através do Ctrl C + Ctrol V), será capaz de produzir alunos mais inteligentes. Faltam contadores de histórias – profissionais capazes de incentivar novos leitores, através da força da palavra oral. Faltam oficinas de redação criativa – onde o poder da palavra escrita se projeta como criatividade e inventividade. Falta compromisso escolar, visando uma transformação significativa no atual déficit de leitura.

Outros analistas, tomando como base sólida e indiscutível os números da pesquisa, preferem lançar a culpa pelos baixos índices de leitura em questões pontuais como tempo e dinheiro. Ou seja, aquele que precisa sobreviver às dificuldades impostas pelo mercado de trabalho não consegue usufruir continuamente da leitura; além disso, os livros são muito caros para o poder aquisitivo dos brasileiros. Duas bobagens. E das grandes. A primeira pode ser desconstruída facilmente. O tempo é relativo. É um elemento consequente às ações sociais dos indivíduos. Ao lado das oito horas regulamentares de trabalho, onde, “em princípio”, a leitura está excluída, há espaços temporais vagos que podem ser utilizados – e que, na falta de uma melhor explicação, costumam ser desperdiçados. Ou seja, o ato de ler pode ser realizado no banheiro, dentro do transporte coletivo, na fila do banco, depois do almoço, antes de dormir. A segunda, além ser um equívoco, porque o valor de um livro novo está atrelado às demandas do mercado e não ao poder aquisitivo do leitor, ignora a existência de alternativas bastante simples. Além das bibliotecas públicas e institucionais, que emprestam livros para os associados, ainda existem os sebos físicos e virtuais, que vendem livros usados por preços bastante acessíveis. O interesse é condição principal para quem quer gozar dos prazeres da leitura. 

The Readers. Pintura de Nikki O'Brien.
Diante das estatísticas, que anunciam um futuro catastrófico para a leitura, inclusive na área dos e-books (que os ingênuos consideram a tábua de salvação da modernidade), sempre surge alguma alma indignada, reclamando por mudanças. Esse esforço, típico de quem gosta de produzir encenações de efeito, procura encobrir o elementar: o Brasil sempre foi, é, será, um país com grandes problemas nas áreas da escrita e da leitura. Em qualquer época – a partir do descobrimento – a relação da população com os livros foi, é, será assustadora. Nesse sentido, convém lembrar, como é de conhecimento geral (embora muitos façam o jogo das aparências e neguem), que a indústria editorial brasileira não pode ser classificada como um caso de sucesso empresarial. As baixas tiragens, raramente superiores a 3.000 exemplares, fornecem uma margem de lucro insignificante. E, em muitos casos, desestimulante.

Uma proposta simples e prática centraliza o problema nos diversos níveis do ensino escolar. E, basicamente, na forma com que o amor pela literatura é transmitido aos alunos. Parte dos professores que trabalham com a língua portuguesa – muitos sem habilitação na área de letras – não considera a literatura como um elemento pedagógico transformador. Caminhando em sentido oposto, concentram a dinâmica de ensino no “decoreba” gramatical e na camisa de força que constitui a “norma culta”. Obviamente, desconhecem (ou negam) que a literatura pode ser utilizada como uma ferramenta para fornecer uma formação mais humanística e menos técnica. Ou seja, ignoram uma das mais importantes possibilidades para incentivar a expansão do conhecimento e da imaginação.

Biblioteca Angélica, Roma, Itália
O estudo da literatura, centralizado nas escolas literárias e em autores e livros que foram descoloridos pelo tempo, não consegue atrair a atenção dos alunos (seja no ensino secundário, seja na licenciatura em Letras). Ao contrário, os afastam. Autores mais modernos, menos “datados”, que utilizam uma linguagem mais próxima da vida “real”, deveriam ser estudados antes dos clássicos. Ou seja, a linha temporal que constitui a historiografia literária deveria ser invertida e os “bons” autores somente deveriam estar ao alcance de quem por eles tivesse interesse. O que estou dizendo é que nenhum individuo contemporâneo possui paciência ou prazer estético com a linguagem rebuscada, por exemplo, de José de Alencar (que é um escritor monumental, mas que não consegue alcançar as inquietações de quem está, atualmente, em sala de aula). Iniciar o estudo com algumas crônicas ou diversos contos provavelmente vai atrair – por mais tempo – mais leitores. É hora de admitir que os alunos não estão (por diversos motivos) preparados para ter contato com livros repletos de palavras e expressões “fora de moda”. O mesmo se pode dizer de temas que lhes parecem inalcançáveis.

Trabalhar com a literatura significa aceitar – constantemente! – a mudança de paradigmas. Significa aceitar que há um mundo repleto de surpresas esperando pelo leitor. E, fundamentalmente, significa que o futuro de cada um de nós (leitores, professores, editores, livreiros) está em jogo na medida em que a barbárie (agressiva e ágrafa) bate nas portas da civilização.

O saber está conectado com o sabor (em múltiplos sentidos, inclusive o etimológico). Negar isso equivale ao admitir que a causa está perdida.

Um comentário:

  1. O autor rem razão, ao afirmar que: "Autores mais modernos, menos “datados”, que utilizam uma linguagem mais próxima da vida “real”, deveriam ser estudados antes dos clássicos."

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