A vida está repleta de surpresas. E todo
ano, em outubro, quando anunciam o nome do vencedor do Nobel de Literatura,
essa tese recebe confirmação. Para algumas pessoas os palpites para 2016 eram iguais
aos de 2015 e 2014: Ismail Kadaré, Philip Roth e Amós Oz (nesta ordem). Haruki
Murakami também estava na lista – um pouco abaixo, na companhia de outros
autores menos cotados. Todos foram preteridos – mais uma vez! No caso de Roth,
considerado como persona non grata pela Real Academia Sueca, as chances, com
o passar do tempo, se tornaram nulas. Para os outros três, cabe esperar pelos
próximos anos – torcendo para que a premiação (se houver) não ocorra tarde
demais.
Robert Allen Zimmerman, Irwin Allen Ginsberg e o túmulo de Jack Kerouac |
A notícia de que o ganhador do Prêmio
Nobel de Literatura de 2016 (e dos oito milhões de coroas suecas, cerca de três
milhões de reais) foi Robert Allen Zimmerman (Duluth, Minnesota, 24/05/1941),
mais conhecido como Bob Dylan, não conseguiu atingir a unanimidade. Protestos foram
realizados nos quatro cantos do mundo. Também aconteceram centenas de
comemorações. Infelizmente, como sói acontecer em situações similares, reflexões mais
significativas não ganharam espaço na linha de frente ou nas manchetes dos
jornais. Críticos e fãs preferiram bombardear os adversários com discussões
estéreis. Letra de música não é literatura, disseram alguns. Outros preferiram
argumentar sobre a necessidade capitalista de promover (e lucrar) com a contracultura
e a cultura pop.
Para os primeiros, cabe lembrar que parte
da teoria da literatura considera – atualmente – que todos os gêneros literários
são fluídos, ou seja, não possuem fronteiras definidas. Alguns textos em prosa
são poéticos, alguns poemas flertam com a prosa, a dramaturgia surge no
inesperado e, em muitos casos, raramente se consegue dizer, com certeza, que
isso é isso e aquilo, aquilo. Normalmente a boa literatura (seja lá o que isso
for!) é composta pela soma de isso com aquilo (embora a predominância de um ou
de outro se manifeste em diversos casos). Em outras palavras, o argumento mais
sólido usado nesse momento está relacionado com o entendimento de que a
modernidade e a literatura são líquidas (seguindo o pensamento de Zygmunt Bauman).
E, nesses termos, transgredindo a lição de Heráclito de Éfeso, cabe se banhar
dezenas de vezes nas águas de um mesmo rio. Só não vale afogamento (vá lá, alguns casos aconteceram!).
Se esse cinismo a-pós-a-moderna-idade
não for o canto das sereias suficiente para produzir o sebastianismo que todos
anseiam, urge lembrar que houve um tempo em que a música e a poesia eram irmãs
siamesas. Na antiguidade clássica e medieval, o ritmo sonoro estava intimamente
ligado com a versificação. Era um corpo indivisível. Nada conseguia separar as
duas formas artísticas.
Bob Dylan e Mohamed Ali |
Aedos, rapsodos, menestréis, trovadores
e bardos (cada qual no seu devido tempo histórico) seguiam de cidade em cidade cantando canções líricas e epopeias heroicas.
Sob a proteção de Orfeu, transmitiam oralmente as expressões da beleza. Eram os
responsáveis pela (como diria Walter Benjamin, vários séculos depois) faculdade
de intercambiar experiências. E, nessa festa constante, onde o lúcido estava
associado com o lúdico, mostravam ao mundo que as questões mais significativas
(amor, ódio, coragem, inteligência, inveja, morte) são universais. Poemas como Iliada e Odisséia, para ficarmos nos exemplos mais básicos, não chegariam até nós se
não fosse o trabalho desenvolvido por esses artistas itinerantes. Somente mais
tarde, muito mais tarde, quando Gutemberg (confirmando a fragilidade de
papiros, pergaminhos e manuscritos) aprimorou a impressão com tipos móveis, é que foi possível dizer que surgiu um suporte mais eficaz para a transmissão do conhecimento.
Bob Dylan e David Bowie |
O divórcio entre a música e a poesia
ocorreu em algum momento, embora ninguém consiga precisar quando. Como se
fossem formas estranhas e distantes, elas passaram a caminhar por estradas
paralelas, satisfeitas por nunca se encontrarem no infinito. A perda artística foi
inestimável. A partir dessa fratura, fomentou-se o preconceito de que a poesia era uma forma de arte "superior" e que as letras
de música (lyrics, na língua inglesa) não poderiam mais ser consideradas como
manifestação literária, pois estão destinadas somente – e tão somente – a ser acessórios
da estrutura melódica. Mesmo no mundo operístico, que consagra a união entre a
música e a palavra, costuma-se ignorar o libretto – como se ele fosse a parte menos
importante.
Bob Dylan e Bruce Springsteen |
Com relação à outra restrição, mesmos os
mais reacionários não conseguem negar o crescente interesse econômico da indústria
cultural (que procura cooptar tudo o que não consegue destruir). A era da
reprodutibilidade técnica (Walter Benjamin outra vez!) possibilitou que a
distinção entre originais e copias se perdesse no balcão de negócios que transformou
a arte em mercadoria. A fabricação de objetos em serie multiplicou a margem de
lucros. Nesse sentido, para o capitalismo literário, há significativa diferença
entre premiar, digamos, um poeta desconhecido do Vietnã e um grande astro
europeu ou estadunidense. No segundo caso há tantas vantagens, que “desovar”
estoques (que, de outra forma, estavam destinados a ocupar um espaço que poderia
ser utilizado com outro produto mais rentável) fica em segundo plano. O
entusiasmo de todos os participantes da engrenagem comercial se multiplica
diante da possibilidade de vender um produto antigo revestido por uma nova
embalagem (que fornece uma releitura aos conteúdos e cria algum tipo de
compulsão pelo consumo).
Cher, Sonny Bono e Bob Dylan |
Dito isso, cabe concluir que pouco
importa se Bob Dylan, um artista fora do cânone, ganhou um prêmio hipervalorizado
pela indústria cultural. Qualquer um que conheça o mínimo de literatura percebe
que qualidade (seja lá o que isso for!) e troféus poucas vezes são equivalentes.
O usual é a divergência.
Bob Dylan e Patti Smith |
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