Escrever da maneira mais límpida
possível. Sem truques de prestidigitação, sem dribles ou malabarismos
desconcertantes, sem se estender desnecessariamente, sem sugerir que há alguma
coisa escondida nas entrelinhas. O exercício da simplicidade. Menos é mais.
Oscilando entre o poético e o patético,
entre as escolhas desafortunadas e as diversas cores que compõem as alegrias do
existir, os 13 contos que integram Ferrugem, de Marcelo Moutinho, seguem esse
proceder. Nos momentos em que ocorrem variações temáticas (futebol,
família, adolescência, amores frustrados), a ideia é – apenas! – contar uma boa
história.
Cabe ao leitor abrir o livro e deixar que
as narrativas contaminem os olhos e a mente. Por exemplo, em um dos melhores
contos do livro, Domingo no Maracanã, Bia descobre uma espécie particular de Aleph (um portal onde ela consegue visualizar acontecimentos que não se
concretizaram). Contrastando com a vertente contemporânea que prefere se
concentrar na “vida como ela é”, a narrativa abre espaço para a fantasia e o
sonho. Nesse mesmo tom (uma perspectiva repleta de leveza e lirismo), Gandula apresenta um final verossímil e trivial. Mas, antes das últimas linhas, a vida
de João – que parecia destinada às glórias futebolísticas – se consolida no
ofício mais desvalorizado entre as quatro linhas do campo esportivo. Significativamente, não é um conto sobre o fracasso, é um relato sobre a redenção, sobre o caráter
lúdico da vida.
O estranhamento também se faz presente em
alguns contos. Jantar a Dois revela uma tessitura sutil. Em lugar de descrever
o combate doméstico diário, onde imperam gritos e acusações sem substância, o
leitor encontra uma imagem repleta de silêncios. A maneira com que o casal transformou
suas vidas em rotina e falta de emoção é descrita com naturalidade. Eles estão
unidos pela desunião. Ou pela ferrugem que corroeu o que havia de humano entre
eles.
Todas as histórias de amor são
ridículas, como comprovam 362 e As Praias Desertas. No primeiro, porque
unilateral. Somente Custódio está apaixonado. Camila sequer sabe da existência
dele. São encontros espaçados pelas idas e vindas do trabalho e comentados com o
ceticismo da cobradora do ônibus – que narra a história. Aliás, em alguns
momentos, parece que o desencontro está inserido no conto apenas para emoldurar a voz
da cobradora – que é a personagem forte da narrativa. No segundo, o que está em
jogo são as lembranças de um relacionamento que se perdeu no tempo. Enquanto
espera por alguém que nunca vai chegar, a mulher vai espalhando fragmentos e
ilusões na planície textual.
Assim como o motorista que perde a
direção e causa um desastre de proporções monumentais, a vida estruturada do
professor de contabilidade é tragada pelo inimaginável. Como relato, Sauna está mais próximo do mundo concreto do que da ficção.
A violência (real, imaginária, simbólica)
que acompanha a passagem da infância para a vida adulta está descrita em Xodó. Trata-se de um primeiro contato com a sexualidade e suas perversões.
Também destaca as sutilezas que envolvem a cumplicidade entre irmãos – e que rompem
a isonomia que deveria existir dentro do relacionamento fraterno.
Salvo engano, dois dos contos (e que
gravitam em torno da música) foram publicados em outros livros. Something está em O Livro Branco – 19 contos inspirados em músicas dos Beatles + bônus
track (organização de Henrique Rodrigues) e Três Apitos faz parte de Conversas de Botequim – 20 contos inspirados em canções de Noel Rosa (coletânea organizada por Henrique Rodriguez e Marcelo Moutinho).
Something estabelece a imprecisão dos
sentimentos. Três Apitos reafirma esses equívocos. Enquanto em um há a procura
pelos significados escondidos atrás da letra da canção dos Beatles, no outro há
a desconstrução da lírica de Noel Rosa. Enquanto o primeiro estabelece a
separação como complemento das relações amorosas, o segundo confirma que a
felicidade de um casal está muito distante da vida cotidiana. De tudo, fica um
pouco, comenta um dos personagens de Something. Compreendi que pouco
importa de onde veio, por onde veio, se o preservativo furou. O HIV está dentro
do meu corpo, constata a narradora de Três Apitos.
Outros três contos completam o livro: Caiu
Uma Estrela na Minha Sala, Rei e Dezembros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário