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quarta-feira, 26 de julho de 2017

FERRUGEM


Escrever da maneira mais límpida possível. Sem truques de prestidigitação, sem dribles ou malabarismos desconcertantes, sem se estender desnecessariamente, sem sugerir que há alguma coisa escondida nas entrelinhas. O exercício da simplicidade. Menos é mais.

Oscilando entre o poético e o patético, entre as escolhas desafortunadas e as diversas cores que compõem as alegrias do existir, os 13 contos que integram Ferrugem, de Marcelo Moutinho, seguem esse proceder. Nos momentos em que ocorrem variações temáticas (futebol, família, adolescência, amores frustrados), a ideia é – apenas! – contar uma boa história.

Cabe ao leitor abrir o livro e deixar que as narrativas contaminem os olhos e a mente. Por exemplo, em um dos melhores contos do livro, Domingo no Maracanã, Bia descobre uma espécie particular de Aleph (um portal onde ela consegue visualizar acontecimentos que não se concretizaram). Contrastando com a vertente contemporânea que prefere se concentrar na “vida como ela é”, a narrativa abre espaço para a fantasia e o sonho. Nesse mesmo tom (uma perspectiva repleta de leveza e lirismo), Gandula apresenta um final verossímil e trivial. Mas, antes das últimas linhas, a vida de João – que parecia destinada às glórias futebolísticas – se consolida no ofício mais desvalorizado entre as quatro linhas do campo esportivo. Significativamente, não é um conto sobre o fracasso, é um relato sobre a redenção, sobre o caráter lúdico da vida.

O estranhamento também se faz presente em alguns contos. Jantar a Dois revela uma tessitura sutil. Em lugar de descrever o combate doméstico diário, onde imperam gritos e acusações sem substância, o leitor encontra uma imagem repleta de silêncios. A maneira com que o casal transformou suas vidas em rotina e falta de emoção é descrita com naturalidade. Eles estão unidos pela desunião. Ou pela ferrugem que corroeu o que havia de humano entre eles.

Todas as histórias de amor são ridículas, como comprovam 362 e As Praias Desertas. No primeiro, porque unilateral. Somente Custódio está apaixonado. Camila sequer sabe da existência dele. São encontros espaçados pelas idas e vindas do trabalho e comentados com o ceticismo da cobradora do ônibus – que narra a história. Aliás, em alguns momentos, parece que o desencontro está inserido no conto apenas para emoldurar a voz da cobradora – que é a personagem forte da narrativa. No segundo, o que está em jogo são as lembranças de um relacionamento que se perdeu no tempo. Enquanto espera por alguém que nunca vai chegar, a mulher vai espalhando fragmentos e ilusões na planície textual. 

Assim como o motorista que perde a direção e causa um desastre de proporções monumentais, a vida estruturada do professor de contabilidade é tragada pelo inimaginável. Como relato, Sauna está mais próximo do mundo concreto do que da ficção.

A violência (real, imaginária, simbólica) que acompanha a passagem da infância para a vida adulta está descrita em Xodó. Trata-se de um primeiro contato com a sexualidade e suas perversões. Também destaca as sutilezas que envolvem a cumplicidade entre irmãos – e que rompem a isonomia que deveria existir dentro do relacionamento fraterno.

Salvo engano, dois dos contos (e que gravitam em torno da música) foram publicados em outros livros. Something está em O Livro Branco – 19 contos inspirados em músicas dos Beatles + bônus track (organização de Henrique Rodrigues) e Três Apitos faz parte de Conversas de Botequim – 20 contos inspirados em canções de Noel Rosa (coletânea organizada por Henrique Rodriguez e Marcelo Moutinho).

Something estabelece a imprecisão dos sentimentos. Três Apitos reafirma esses equívocos. Enquanto em um há a procura pelos significados escondidos atrás da letra da canção dos Beatles, no outro há a desconstrução da lírica de Noel Rosa. Enquanto o primeiro estabelece a separação como complemento das relações amorosas, o segundo confirma que a felicidade de um casal está muito distante da vida cotidiana. De tudo, fica um pouco, comenta um dos personagens de Something. Compreendi que pouco importa de onde veio, por onde veio, se o preservativo furou. O HIV está dentro do meu corpo, constata a narradora de Três Apitos.

Outros três contos completam o livro: Caiu Uma Estrela na Minha Sala, Rei e Dezembros.


TRECHO ESCOLHIDO


Seu Chico não perguntou sobre o desempenho do filho. Nem Dona Dina. O semblante do garoto, ao chegar em casa, era um dicionário com todas as respostas possíveis.


João sabia que outro teste só dali a um ano. Que não dava para postergar o trabalho, o cursinho, em nome de treinamento. Se nas peladas ele era o tal, primeiro escolhido sempre, em clube profissional a música toca diferente. Todo mundo lá é solista, concluiu.


A dispensa doeu, mas doeu menos do que a ligação recebida três dias depois. O técnico explicava que o campeonato estadual começaria em um mês, que cada clube deveria indicar quatro garotos para trabalhar como gandulas, e que depois do teste pensou no nome dele, João, que era tão veloz, tão disciplinado.


O impulso inicial foi falar não. Mandar o treinador para o inferno. João no entanto respirou e pediu um tempo para pensar. Até amanhã respondo, ok? Ok, moleque.  

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