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segunda-feira, 23 de novembro de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA (CLXXV)

 


Dissolvi o domingo em jazz, crônicas da Marília Kubota, chocolate e alguns programas de Internet (Nei Lisboa, Ivana Arruda Leite, Eduardo Moreira,...) que, por diversos motivos, não me foi possível assistir durante a semana. Gosto de estar sozinho, ou melhor, gosto de estar com os meus livros, ouvindo música, escrevendo e lendo. Nesses momentos, dispenso companhia. No meu imaginário, isso me aproxima do paraíso (seja lá o que isso for!).

Tenho certeza de que muitas pessoas pensam que passar o dia assim constitui um desperdício. Ontem foi dia de sol, poderia aproveitar o tempo bom e caminhar pelas ruas do vilarejo, na tentativa de eliminar as teias de aranha que a inércia vai tecendo em torno de cada ser humano. Rejeitei a proposta, me enrolei em cobertor e passei parte da tarde deitado no sofá. Qualquer semelhança com Iliá Ilitch Oblomov, personagem criado por Ivan Alexándrovitch Gontcharóv, não deve ser considerada como uma mera coincidência.

Tenho várias teses sobre o ócio e, na medida do possível, tento colocá-las em prática. Infelizmente, a sociedade do pragmatismo produtivo e (ó céus, ó vida, ó azar) os credores me obrigam a romper com a imobilidade. Mesmo assim – a quem interessar possa e para os fins que se fizerem necessários –, costumo avisar que o discurso da servidão voluntária não está nos meus planos básicos. Esforço inútil. Quem deveria entender a mensagem mostra, digamos, algumas dificuldades. Um sujeito que, em outra época, foi o meu chefe, diante do argumento, disse que esses intelectuais inventam cada uma. E riu. Ou melhor, gargalhou.

Fiquei ofendido. Além de não ter sido considerado como alguém capaz de fornecer uma interpretação para o mundo, senti que havia sido envolvido pelo ar gélido do deboche. Imediatamente esbocei um entusiasmado palavrão, mero agrado às qualidades neuronais do sujeito. A prudência (essa amiga que nem sempre aparece nos momentos necessários) me impediu de pronunciar a frase em voz alta.

Na primeira oportunidade forneci o troco. E com requintes diversificados de crueldade. A melhor parte da brincadeira foi que a vítima só conseguiu entender os acontecimentos quando era tarde demais. Sim, sou um adepto do schadenfreude, que é aquela sensação de prazer, alegria ou satisfação quando alguém sofre algum infortúnio.

(Pausa explicativa: peço desculpas por ter usado a palavra infortúnio, que é definitivamente inadequada e não corresponde à situação. Como estou procurando, nestes tempos do politicamente correto, manter a elegância textual e comportamental, deixo de lado o baixo calão e, em nome da moral e dos bons costumes, adoto o vernáculo luso-brasileiro, em versão castiça).

Volto ao tema inicial: il dolce far niente. Em certa medida, essa postura improdutiva (pelos padrões do capitalismo) pode ser considerada como um sinônimo da filosofia (que é o ofício de nada concluir, enquanto elabora teorias e devaneios). Idêntica ocupação exerce o flaneur, um dos personagens mais amados por Walter Benjamim, e que, ao desempenhar a função de espectador do cotidiano, adota a estética como proposta de representação da vida. Por fim, há Garfield, o gato preguiçoso, egoísta e malvado das histórias em quadrinhos, que se recusa a contribuir com qualquer atividade que demande esforços. 

Existirmos, a que será que se destina?, pergunta o bardo baiano em música quase esquecida. Não tenho resposta, mas arrisco que é para ler bastante, pensar inutilidades e, em algumas ocasiões, dormir no meio da tarde.


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