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domingo, 28 de maio de 2023

MOÇAMBIQUE COM Z DE ZAROLHO

 


Uma das síndromes mais complicadas da modernidade surge quando o colonizado deseja estar em igualdade de condições com o colonizador. Ele sabe que isso é impossível. No entanto, através de simulacros, aqueles que são saudosos da opressão não perdem a oportunidade para tentar reproduzir a estrutura social, econômica e cultural do inimigo. Um dos sintomas mais característicos dessas situações surge com o processo de apropriação da linguagem, que toma emprestado palavras e expressões da língua estrangeira e as incorpora ao vocabulário cotidiano. Essa contaminação costuma gerar complicações dramáticas.

Manuel Mutimucuio faz um recorte dessa movimentação em Moçambique com Z de Zarolho – texto que oscila entre a comédia e a tragédia. O país africano, preocupado com a inserção no mundo globalizado, resolve trocar a língua oficial. Ou seja, adota o inglês no lugar do português e das estruturas de comunicação do povo que mora no interior de Moçambique. A ideia básica dessa mudança está escorada na criação de facilidades para o ambiente comercial. Imaginam que as restrições para conseguir investimentos internacionais diminuirão quando forem eliminadas as barreiras linguísticas.

As consequências são imediatas para os dois personagens principais do romance.

Hohlo, empregado doméstico do deputado Djassi Costa, está estudando a língua portuguesa para tentar conseguir um emprego melhor – talvez em Portugal. Diante das circunstâncias, aquilo que, em determinado momento, consistia em um projeto de vida, resulta na perda das referências. Além disso, vítima de vários mal-entendidos, Hohlo é despedido e quase linchado. Sem emprego, sem possibilidade de obter algum benefício socioeconômico, vítima de diversas violências físicas, raciais e emocionais, ele representa o indivíduo que, em luta exaustiva contra o sistema – e sem perspectiva de obter um resultado favorável –, é impedido de mudar de classe social.

Em paralelo, o deputado Djassi Costa, que votou contra o Renascimento Moçambicano (o projeto que resultou na adoção do inglês), precisa enfrentar um dilema familiar. Além de ter colocado em risco o seu futuro como congressista, imagina que prejudicou o filho mais velho. Com a ascensão do inglês, o objetivo mudou. Mandar o rapaz para pátria colonizadora está fora de questão. A solução está em conseguir uma bolsa de estudo na Inglaterra. Antes de qualquer coisa, ele precisa descobrir qual é o preço político que terá que pagar.

 Com a desculpa de que age em nome da população e almeja o seu bem (seja lá o que isso for), o Estado subverte a máxima de que todo o poder emana do povo e, em determinado momento, sem qualquer tipo de consulta, determina um conjunto de proposições autoritárias. A vida dos indivíduos não constitui empecilho diante das necessidades do poder tentacular do sistema político. Eles são apenas massa de manobra.

Moçambique com Z de Zarolho, sátira cruel dos processos de contaminação cultural, espelha acontecimentos frequentes nos países de Terceiro Mundo – embora, na prática, ocorram de maneira lenta e insidiosa. Diante do abismo cultural, alguns grupos sociais e econômicos sofrem menos com a mudança; ou melhor, se adaptam com maior facilidade ao novo cenário. Inclusive porque, por diversos motivos (principalmente os financeiros), possuem as ferramentas adequadas para efetuar a transição sem grandes traumas. Os representantes do capitalismo desconhecem as surpresas – são eles que as promovem.

 

TRECHO ESCOLHIDO

O que começara como uma conversa quase romântica resvalou para uma briga de casal. Cada um parecia levantar a voz mais do que o outro.

– Deixa o meu filho ir a Portugal. Eu conheço muitas pessoas que estudaram na Rússia, no Vietname e agora estão de volta ao país e têm bons empregos. A língua do país onde a pessoa estuda não é nada, mas estudar no estrangeiro, aqui em Moçambique, é ouro.

Sem resposta imediata, Paloma reforçou o seu argumento.

– No mínimo, Quest terá emprego numa empresa portuguesa. Quem pensas que tem posições proeminentes em empresas portuguesas aqui em Moçambique?

Agora ela não esperava qualquer resposta do marido, porque a pergunta era retórica. Continuou o seu discurso como que a dizer “é assim que se faz. Eu no teu lugar teria ganho o argumento no Parlamento”.

– São portugueses ou moçambicanos que estudaram em Portugal. O mesmo acontece com os americanos, chineses, indianos. Isso não vai mudar porque Moçambique mandou passear a língua portuguesa. Pelo contrário, os tugas vão proteger os seus interesses, e isso inclui dar abrigo aos que entendem os seus interesses, e isso inclui dar abrigo aos que entendem a sua língua e cultura.

Depois de se certificar que o monólogo tinha chegado ao fim, o marido contra-argumentou:

– Paloma, escuta – tentou fazer-se ouvir –. Ao aceitarmos esta bolsa, estamos a prejudicar uma outra pessoa, que realmente tirará partido desta oportunidade. Nós temos capacidade de encontrar outra bolsa para o nosso filho num país de expressão inglesa.

Paloma não se deixou convencer.   

– Por que não encontramos até hoje? Quest anda como um marginal já faz oito meses e agora me vens dizer que consegues bolsas quando e onde quiseres? Por favor, manda o  miúdo para Portugal. Depois, quando conseguires a tua bolsa de Oxford ou Harvard, faremos a transferência.

Sem qualquer margem para consenso, Djassi saiu do quarto abruptamente, pegou nas chaves do carro e decidiu ir apanhar ar. Foi muito devagar, sem destino aparente, mas, quando deu pelos seus sentidos, estava na Avenida Friedrich Engels, com vista privilegiada para a baia de Maputo. Desligou o motor do carro e teve uma enorme explosão de emoção. Apesar de todo o esforço, não conseguiu impedir que se lhe caíssem lágrimas. Sem se importar se passava alguém, baixou o vidro e gritou para o silêncio da noite:

– De que serve a política se um indivíduo não pode ajudar a própria família?


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