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terça-feira, 27 de agosto de 2024

ADEGA DO BAIRRO (um conto de André Giusti)

 


Sempre achei que essas pessoas que adoram discursar sobre vinhos são uma fraude. Sim, antes que digam que isto é um exagero, esclareço que é uma opinião pessoal, portanto, passível de erro. O fato é que, ao envolver as papilas gustativas com o líquido, tenho dificuldade em sentir as notas de frutas que os especialistas declaram existir em uma determinada garrafa ou qual foi o tipo de barril em que a bebida foi armazenada. Aliás, para ser sincero, poucas vezes consigo perceber a diferença entre as uvas Cabernet Sauvignon e Touriga nacional. Entre a taça de uma e de outra, fico indiferente, tentando aproveitar os sabores, inclusive porque Meu interesse por vinhos se limita a bebê-los.

No conto Adega do Bairro, o narrador vai comprar uma garrafa de vinho em uma dessas lojas que vendem produtos diferenciados. Foi convidado para um evento e quer levar uma bebida melhor do que aquela que costuma comprar no supermercado. Foi atendido adequadamente. Pagou e foi embora.

Mas, e sempre tem um “mas” nessas histórias, aquele elemento que desequilibra o enredo; ou melhor, que cria o contraste entre o protagonista e o antagonista. O narrador percebeu um senhor encostado no balcão. É gordo, cara vermelha sanguinolenta, cabelo grosso, quase todo branco. Belo e bem tratado cabelo. Usa ray-ban tradicional, aquele de aviador. Mesmo dentro da loja, mantém os óculos. Lembra aqueles generais americanos dos filmes sobre a Guerra do Vietnã.

Nas outras vezes que o narrador volta a loja, o homem continua encostado no balcão, uma taça de vinho ao alcance da mão. Sem o menor constrangimento, o sujeito começa a emitir opiniões sobre o produto que está sendo adquirido. Aparenta ser um desses especialistas que compreendem as inúmeras sutilezas que envolvem a produção e o consumo do vinho. Pior ainda, possui cacife para comprar os melhores rótulos e safras. Por várias vezes, faz questão de desqualificar as escolhas do comprador: Esse aí que você pensa em levar deve ser para temperar a salada, né, amigo? Para limpar o frango antes de assar. Enfim, se diverte.

Vinho bom é aquele que ele está a degustar no balcão. Em determinado momento, faz questão de manifestar a sua superioridade econômica ao girar a bebida na taça e visualizar o efeito que a luz produz no cristal. Como se fosse um esgrimista, toca um ponto sensível do corpo do adversário com a espada do escárnio:

"Você deveria experimentar” e se volta para mim, só que é como se lamentasse cínica e maldosamente: “Mas sei que não tem como. 400. Não é isso?” E se volta para o que parece ser o dono, querendo confirmar o preço. “E 20. 420”, sem graça, o outro corrige.

A cena final do conto se aproxima da tragicomédia. O grau de tensão que foi criado no andamento narrativo não poderia resultar em algo mais suave. O leitor que simpatiza com o narrador não pode deixar de rir. Mas, é um riso amarelo, desses que parecem inadequados no mundo do politicamente correto. De qualquer forma, a ideia que prevalece é que se fez justiça (seja lá o que isso for).

Adega do Bairro, conto de André Giusti, foi construído em narração direta (começo, meio e fim – nesta ordem). E, para o bem e para o mal, desconstrói essa figura caricata que costuma atormentar o mundo com seus conhecimentos (duvidosos) em enologia.         



  

GIUSTI, André. As Filhas Moravam com Ele. Nova Lima (MG): Caos & Letras, 2023

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

ALAIN DELON

 


Três filmes fazem parte da interminável seleção que intitulei "os melhores que assisti”. São eles O Sol por Testemunha (Dir. René Clément, 1960), Rocco e seus Irmãos (Dir. Luchino Visconti, 1960) e O Leopardo (Dir. Luchino Visconti, 1963). Alain Delon está presente em todos.

Não lembro onde assisti esses filmes. Não importa se foi no cinema ou na televisão (em um desses canais de filmes “cult” ou em DVD). Provavelmente nos dois lugares – várias vezes. Aquele que foi considerado um dos homens mais bonitos da história do cinema, Alain Fabien Maurice Marcel Delon, morreu no domingo (18 de agosto de 2024) em Douchy-Montcorbon, Departamento de Loire, França. Tinha 88 anos.

Nos obituários publicados em revistas e jornais existem várias acusações sobre suas posições políticas. Também há aplausos pela defesa da causa animal. Inevitavelmente derramaram baldes de tinta (ou de pixels) sobre sua vida amorosa. Como acontece nesses casos, inventaram uma nova versão para a velha dicotomia entre mocinhos e bandidos. Como cada pessoa traz dentro de si um pouco de cada coisa, é possível que ele tenha sido santo em alguns momentos e demônio em outros.

De minha parte, guardarei a lembrança do jovem e impetuoso Tancredi Falconeri, sobrinho querido de Fabrizio Corbera, Príncipe de Salina. No romance Il Gattopardo (escrito por Giuseppe Tomasi, Príncipe de Lampedusa), a Itália está passando por profundas mudanças políticas e sociais. A tradição está morrendo e ninguém pode assegurar o que está por vir. Nesse momento de profunda instabilidade, onde tudo pode acontecer, inclusive nada, ao saber que Tancredi pretende se reunir com um grupo de revolucionários (contra a casa de Bourbon e à favor da casa de Saboia), o Príncipe fica preocupado e tenta fazer com que o rapaz desista. Recebe em troca uma lição política (talvez inspirada por Niccolò di Bernardo dei Machiavelli).  

Em uma das edições brasileiras, publicado pela Difusão Europeia do Livro (1963, p. 31-32), a cena é assim descrita:

– Estás louco, meu filho! Meter-se com aquela gente; são todos uma corja de bandidos e trapaceiros, um Falconeri deve estar conosco, do lado do rei.

Os olhos voltam a sorrir.

– Do lado do rei, com certeza, mas de que rei?

O rapaz teve um daqueles seus acessos de serenidade que o tornavam impenetrável e querido.

– Se nós não estivermos lá, eles fazem uma república. Se queremos que tudo fique como está é preciso que tudo mude. Expliquei-me bem?    

Esse trecho está na adaptação cinematográfica, que ganhou, em 1963, a Palma de Ouro do Festival de Cannes. No elenco, Burt Lancaster (Fabrizio Corbeta), Alain Delon (Tancredi Falconeri) e Claudia Cardinale (Angelica Sedara). É um filme magnífico e que consegue captar, com grande precisão, os ventos da transformação política italiana, o Risorgimento (1815-1870). A grande cena do baile e a exaustão de Fabrizio Corbeta – diante de um mundo diverso daquele que ele idealizou – são momentos que poucas realizações artísticas conseguiram atingir. Tancredi, herdeiro do legado do Príncipe, simboliza os novos tempos – mas que não são exatamente novos. A embalagem mudou, o conteúdo continua igual. E a vida segue o seu curso, independente da vontade de seus personagens.  

Enfim, mesmo que digam que o ator saiu de cena, o rapaz que tomou a identidade do amigo (O Sol por Testemunha, baseado no romance de Patricia Highsmith) e o irmão que tenta preservar as raízes familiares (Rocco e seus Irmãos, baseado em texto de Giovanni Testori), além daquele que propõe a revolução que não revoluciona, continuarão a existir no imaginário dos cinéfilos. 

 

Cena de "Il Gattopardo". No primeiro plano, Burt Lancaster
e Claudia Cardinale. Ao fundo, Alain Delon.

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

PESSOAS DECENTES

 


O escritor cubano Leonardo Padura Fuentes costuma temperar os seus livros com o sabor dos mojitos, o aroma dos Cohibas, a visão marítima das Antilhas, o som das canções que encantam a ilha e o tatear dos corpos sedentos por sexo. São romances que despertam emoções sensoriais. E que rementem às profundezas da alma humana, seja por suas qualidades, seja por seus defeitos.

Tangenciando a História e a ficção, mergulhando no âmago da identidade cubana, sem esquecer que o destino dos personagens está ligado pelas questões políticas, Padura Fuentes, no romance policial Pessoas Decentes, ambiciona fazer um relato em que são atadas duas pontas de uma mesma questão. Ou seja, reescrever ficcionalmente o período em que Cuba vivia sob o medo que o cometa Halley se chocasse contra a Terra e o momento em que, como se fosse um furacão, Barack Obama e os Rolling Stones visitaram a ilha.

As duas histórias correm paralelas, fenômenos catastróficos que refletem um ao outro, mas, ao mesmo tempo, são infinitamente diferentes. Na que ocorre em 1910, narrada em primeira pessoa pelo oficial da polícia Arturo Saborit Amargó, duas prostitutas são assassinadas de forma brutal. Nesse cenário destaca-se Alberto Yarini y Ponce de León, um jovem empresário do lenocínio. Figura carismática, com aspirações políticas, parece ser uma espécie de Midas do Caribe. Mas, transformar tudo em ouro, como na lenda grega, não é um dom, é uma maldição.   

A segunda história, com narrador em terceira pessoa, acontece em março de 2016. São dois assassinatos com requintes de crueldade – sendo que um dos mortos desempenhou significativo papel na repressão de artistas no período pós-revolucionário. O chefe de polícia, ocupado com a visita do presidente estadunidense (20, 21 e 22 de março) e o show de rock (25 de março), convoca Mario Conte (que está aposentado) para ajudar na solução desses crimes.

Descobrir os autores dos quatro homicídios (e o que os motivou) é detalhe de menor importância para o enredo do livro. O grande personagem do romance é Havana, uma das cidades míticas da América Latina. Em suas ruas deslizam aqueles que constroem as relações de afeto e de ódio, que são movidos pela ambição e pela amizade. São as relações humanas que constroem a essência cubana. 

Se o momento atual reflete que algumas questões políticas mudaram em Cuba, se houve diminuição na tensão política, isso não significa que as cicatrizes desapareceram. O passado não pode ser apagado, nem esquecido. Nas palavras de Mário Conde (que ressoam como um desabafo, uma catarse): E estamos todos aqui felizes e contentes porque, apesar dos chutes na bunda, das distâncias, das ilusões perdidas, das lorotas que nos contaram e nos contam, das promessas que viraram poeira ao vento, como diz minha amiga Clara, merecemos isso porque trabalhamos para isso. Merecemos umas férias de tudo que é feio, ruim, fodido, perverso, da tristeza que nos persegue, da realidade do que não há, do que não é para você... Que história a nossa, porra, olha como nos foderam...! E, bem, hoje, agora, merecemos ser felizes... (...) Mas, cavalheiros, estou avisando: não se animem, porque o bom quase sempre acaba logo; entretanto, eu, que sou o mais inveterado pessimista, estou dizendo que vale a pena agarrar o que aparecer. E se agora nos sentimos felizes, vamos aproveitar, porque nós conquistamos isso, porque somos sobreviventes, porque não nos deixamos cobrir pela merda que nos atiraram e pelo ódio que nos fizeram respirar, porque somos uns idiotas obstinados”.       


Leonardo Padura Fuentes


terça-feira, 6 de agosto de 2024

A MARCAÇÃO

 


Usando o discurso da segurança pública, em um futuro remoto (no entanto, mais próximo do que se imagina), o governo de Reykjavík está organizando um plebiscito para decidir se a população será submetida compulsoriamente a um teste de empatia. Querem prever comportamentos antissociais, crimes e movimentos contrários aos interesses do Estado. Em outras palavras, essa consulta popular é um mecanismo de dominação sobre os indivíduos.

O enredo de A Marcação (Editora Fósforo, 2023), romance da escritora islandesa Fríđa Ísberg, mostra a gênese do autoritarismo. A cadela do fascismo sempre está no cio, como dizia Bertolt Brecht. E nunca perde a oportunidade para reprimir o direito à diversidade, à discordância, à liberdade. Ambicionam estabelecer uma linha de conduta que apresenta soluções simplistas para problemas complexos. Isso significa que algumas decisões políticas (movidas por interesses outros que fogem da percepção imediata dos eleitores) são instrumentos corrosivos da democracia. 

Aqueles que não forem aprovados no teste precisam ser “reprogramados” através de consultas com psicólogos e o uso de algumas drogas legalizadas. Trata-se de uma forma “mais civilizada” de domesticar os dissidentes e de trazê-los para a “normalidade”. Em lugar de mandá-los para a Sibéria, as clinicas de reabilitação.

O argumento mais importante dos defensores do plebiscito apresenta como prioridade o controle das taxas de criminalidade. Sintomaticamente, esse é o seu ponto mais frágil. Os índices criminais na Islândia são quase insignificantes. Em 2022, cerca de 200 pessoas estavam encarceradas (segundo o Banco Mundial, a população da Islândia, em 2022, era de 382.003 pessoas). No entanto, o medo coletivo é mais forte do que a racionalidade. E todos aqueles, individualmente ou de forma coletiva, que se opõem a esse projeto repressivo são considerados inimigos. São essas pessoas que, de uma forma ou de outra, precisam ser "resgatadas" para que prevaleça a ordem social – ou seja, a norma jurídica.

Algumas questões vão sendo reveladas no decorrer das 272 páginas do livro. E muitas delas são derivadas do organismo econômico. A especulação imobiliária aparece como um dos fatores de segregação. Áreas “seguras” (monitorizadas pela polícia) são valorizadas pelo mercado. Nas regiões que se mostram contrárias ao plebiscito, muitos imóveis não despertam a atenção de quem necessita de moradia. Todos desejam morar em lugares que não ofereçam perigo. Consequentemente, os índices de adesão ao plebiscito aumentam. Simultaneamente, essa política territorial aumenta o processo de gentrificação (expulsão dos moradores originais para locais afastados e que não contam com planejamento urbano eficaz).

A evasão escolar, o uso de drogas ilegais, a ausência de vínculos afetivos e despersonalização imposta pela sociedade tecnológica são outros problemas apontados em um mecanismo social que propõe o bem-estar do cidadão, mas que adota a opressão diária como elemento de uniformização das práticas cotidianas.

Os que discordam da proposta governamental precisam encontrar algum tipo de trabalho não qualificado e que esteja fora da zona de influência do Estado. E isso, obviamente, origina outras formas de exploração da mão-de-obra.

É essa situação política, de visível inspiração da extrema direita, que o romance denuncia, embora o tema não seja novo. A Marcação possui semelhanças com o conto Minority Report, de Philip K. Dick (a versão cinematográfica, Minority Report – a nova lei, com Tom Cruise, foi dirigida por Steve Spielberg em 2002).


Fríđa Ísberg