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quinta-feira, 15 de agosto de 2024

PESSOAS DECENTES

 


O escritor cubano Leonardo Padura Fuentes costuma temperar os seus livros com o sabor dos mojitos, o aroma dos Cohibas, a visão marítima das Antilhas, o som das canções que encantam a ilha e o tatear dos corpos sedentos por sexo. São romances que despertam emoções sensoriais. E que rementem às profundezas da alma humana, seja por suas qualidades, seja por seus defeitos.

Tangenciando a História e a ficção, mergulhando no âmago da identidade cubana, sem esquecer que o destino dos personagens está ligado pelas questões políticas, Padura Fuentes, no romance policial Pessoas Decentes, ambiciona fazer um relato em que são atadas duas pontas de uma mesma questão. Ou seja, reescrever ficcionalmente o período em que Cuba vivia sob o medo que o cometa Halley se chocasse contra a Terra e o momento em que, como se fosse um furacão, Barack Obama e os Rolling Stones visitaram a ilha.

As duas histórias correm paralelas, fenômenos catastróficos que refletem um ao outro, mas, ao mesmo tempo, são infinitamente diferentes. Na que ocorre em 1910, narrada em primeira pessoa pelo oficial da polícia Arturo Saborit Amargó, duas prostitutas são assassinadas de forma brutal. Nesse cenário destaca-se Alberto Yarini y Ponce de León, um jovem empresário do lenocínio. Figura carismática, com aspirações políticas, parece ser uma espécie de Midas do Caribe. Mas, transformar tudo em ouro, como na lenda grega, não é um dom, é uma maldição.   

A segunda história, com narrador em terceira pessoa, acontece em março de 2016. São dois assassinatos com requintes de crueldade – sendo que um dos mortos desempenhou significativo papel na repressão de artistas no período pós-revolucionário. O chefe de polícia, ocupado com a visita do presidente estadunidense (20, 21 e 22 de março) e o show de rock (25 de março), convoca Mario Conte (que está aposentado) para ajudar na solução desses crimes.

Descobrir os autores dos quatro homicídios (e o que os motivou) é detalhe de menor importância para o enredo do livro. O grande personagem do romance é Havana, uma das cidades míticas da América Latina. Em suas ruas deslizam aqueles que constroem as relações de afeto e de ódio, que são movidos pela ambição e pela amizade. São as relações humanas que constroem a essência cubana. 

Se o momento atual reflete que algumas questões políticas mudaram em Cuba, se houve diminuição na tensão política, isso não significa que as cicatrizes desapareceram. O passado não pode ser apagado, nem esquecido. Nas palavras de Mário Conde (que ressoam como um desabafo, uma catarse): E estamos todos aqui felizes e contentes porque, apesar dos chutes na bunda, das distâncias, das ilusões perdidas, das lorotas que nos contaram e nos contam, das promessas que viraram poeira ao vento, como diz minha amiga Clara, merecemos isso porque trabalhamos para isso. Merecemos umas férias de tudo que é feio, ruim, fodido, perverso, da tristeza que nos persegue, da realidade do que não há, do que não é para você... Que história a nossa, porra, olha como nos foderam...! E, bem, hoje, agora, merecemos ser felizes... (...) Mas, cavalheiros, estou avisando: não se animem, porque o bom quase sempre acaba logo; entretanto, eu, que sou o mais inveterado pessimista, estou dizendo que vale a pena agarrar o que aparecer. E se agora nos sentimos felizes, vamos aproveitar, porque nós conquistamos isso, porque somos sobreviventes, porque não nos deixamos cobrir pela merda que nos atiraram e pelo ódio que nos fizeram respirar, porque somos uns idiotas obstinados”.       


Leonardo Padura Fuentes


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